Afrodite escrita por Alice Pereira


Capítulo 2
Alecto, a Implacável


Notas iniciais do capítulo

Finalmente tomei vergonha na cara e postei o primeiro capítulo, que graças ao Carnaval consegui terminar. Perdoem qualquer erro e boa leitura! Mesmo que até agora só uma pessoa acompanhe Afrodite, falo no plural pois tenho esperanças de que outras se juntem a ela no futuro ♥



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Being Hunted, primeira etapa.

O alarme de incêndio soava estridente em seus ouvidos, impedindo-a de raciocinar. O véu de fumaça acinzentada a desorientava, dançando em frente aos seus olhos e invadindo seus pulmões. Em meio à confusão, uma mão agarrou a áspera camisa branca que ela usava.

— Afrodite! — Maus presságios, era o que aquela voz sempre trazia. Sua dona se assemelhava muito a Dolores Umbridge, exceto por um hábito preto substituindo os trajes rosa francês. De qualquer forma, ela era tão desprezível quanto a bruxa e utilizava métodos parecidos para “consertar”, como dizia ela, as “garotas problema”. Seus sorrisos dissimulados apareciam com a mesma frequência com que as alunas aprontavam, entretanto por que ela estava sorrindo quando a garota se virou? Seria ela tão perversa a ponto de não se importar em ver sua escola queimar, contanto que pudesse castigar alguém?

— Pois não, Madre Esther? — “Corra!”, algo dentro dela dizia, porém Afrodite continuou parada, respirando a fumaça e sentindo o calor aumentar cada vez mais. O incêndio? Dos males, o menor. Naquele momento, a causa de seu medo era a atarracada mulher sorrindo maleficamente para ela. Não se tratava dos castigos medonhos, na verdade a garota jamais temeu isso, o problema era outra coisa, algo oculto, uma simples sensação de perigo.

— Acredito que você seja a última estudante no prédio. Ajudou as outras a saírem? – A calma com que as palavras foram pronunciadas era perturbadora. Ela não tinha medo do fogo? Fogo esse que consumia o segundo andar e logo chegaria ao primeiro, onde elas estavam. Sua garganta ardia e os olhos lacrimejavam devido à fumaça, já a freira não parecia ser afetada de forma alguma.

— Ajudei. — As menores, as poucas monstrinhas de 7 ou 8 anos que foram parar naquele inferno complicaram bastante a evacuação do prédio, cada uma à seu jeito. Algumas choravam, outras tentavam resgatar os poucos pertences que tinham trazido, enquanto havia as que se recusavam a se mexer. As freiras, no meio daquele caos, já não estavam dando conta de reunir todas as alunas como geralmente faziam.

Afrodite tinha acabado de conduzir Jamillah, uma garota de aparência inocente, incrivelmente quieta e dona de uma mente diabólica para a saída quando Madre Esther apareceu. A saída, a alguns metros de distância agora parecia inalcançável, especialmente pelo fato da mulher não dar sinais de que pretendia sair.

As tremulações do ar, agora visíveis devido ao calor intenso, ajudavam a fumaça a deixá-la tonta. Em busca de ar fresco, ela se dirigiu para a porta, hesitante, porém aquela mesma pegada surpreendentemente forte de antes a impediu.

— Para que a pressa, minha flor? — A mulher se aproximou, agora sem mais sorrir.

— Não seria melhor sairmos do prédio? ­ — Ofegou a garota, suando dentro do pesado uniforme.

— Não há por que temer o fogo, semideusa. — Antes que sua mente confusa conseguisse compreender do que havia sido chamada, algo perturbador aconteceu: o véu da diretora caiu, revelando cobras semelhantes às de Medusa, enquanto o hábito começou a se transformar em um par de horrendas asas de morcego.

Numa batida, a criatura se alçou ao teto, fazendo com que o denso ar se deslocasse e derrubasse a garota. Soltou um ensurdecedor grito ao se abater contra ela, as garras em direção ao seu pescoço descoberto. Sua fúria era visível nos avermelhados olhos e mesmo na boca arreganhada que mumurava palavras e mais palavras, que apesar de não serem compreendidas faziam lágrimas subirem aos olhos da garota.

Tentou de todas as formas atingir o corpo coberto de sua agressora, porém seus golpes não a alcançavam. Então, os enrugados dedos se abriram, ela estava caindo. A queda não pareceu demorar um século, como costumam retratar essas coisas nos livros, em um instante o baque veio.

Uma onda de dor reverberou pelo seu corpo, partindo da coluna, e sua visão começou a embaçar. Antes que perdesse completamente os sentidos, pode ouvir uma melódica voz ecoar pelo espaço:

— Pare, Alecto! Esta devemos deixar ir.

Pouco depois sua visão escureceu por completo e os sons emudeceram, sem que pudesse ver a dona da voz. Alheia ao que se passava ao seu redor, tampouco percebia sua falta de consciência, imersa num sonho que significava mais do que ela poderia imaginar.

Estava em um pequeno hall de entrada que jamais havia visto antes, sem ninguém a vista. Ao seu lado, um espelho cobria a parede, mostrando-lhe sua lastimável aparência. Não se importou, porém não pode deixar de estranhar o fato de não sentir as feridas que via em seu pescoço.

No fim da parede, onde o hall se abria para uma espaçosa sala de estar, um par de vasos gregos era a única decoração do espaço. Não teve a curiosidade de observar as cenas neles pintadas, para a decepção de seu anfitrião, que calmamente entrou em seu campo de visão.

— Afrodite — exclamou, retorcendo levemente a boca —, venho lhe observando há tempos. Mas devo dizer que esperava mais de você, me decepcionou sua derrota contra a Erínia.

“Jamais demonstre fraqueza”, lhe disse a mãe, antes de ir para o internato. Fora o que a salvara dentre as freiras, porém de que adiantaria ali? O ar gelado lambia sua pele, confortando-a após o calor sufocante do incêndio, desligando-a da sensação de perigo que ainda apitava em suas entranhas. Mesmo assim, esforçou-se para colocar toda a sua força na voz ao dizer:

— Quem é você?                                   

O homem se limitou a rir, escarnecendo de seu tom autoritário. Sua aparência não era das melhores, o nariz desproporcional à face era ressaltado pela hirsuta barba, e seus cabelos encaracolados tinham aparência oleosa, como se pouca atenção fosse dedicada a eles. Porém seus pomposos trajes denunciavam que havia ao menos um pouco de vaidade no corpulento homem.

— Paciência, semideusa, é a palavra-chave para o poder — respondeu, fitando-a com duros olhos que não revelavam o que se passava em seu interior.

Afrodite reconheceu o termo como o usado por Madre Esther, antes que se transformasse na... criatura. Gostaria de acreditar que tudo não passara de uma alucinação, ou um sonho, mesmo que nesse caso ele provavelmente estivesse zombando dela — se fosse real, algo que um pedaço insistia em acreditar, murmurando sobre recordações distantes, há muito varridas para o canto de sua memória.

Tentou resgatá-las, sem resultado, ainda assim estava convencida de que estavam relacionadas ao que lhe acontecia naquele momento. Coçou a palma da mão esquerda, imaginando se ele responderia se perguntasse.

— O que é isso? “Semideusa” — tentou, mantendo o tom de voz tão firme quanto o dele.

— É o que você é, o que eu sou — gesticulou entusiasticamente ao dizer essas palavras, mesmo que seus olhos não demonstrassem o mesmo entusiasmo —, filhos de deuses com humanos. Longe de ter o mesmo poder dos nossos pais divinos, na verdade alguns de nós pouco se diferem de meros mortais.

— Deuses? — Indagou, porém sua interrupção foi ignorada.

— Você, Afrodite, não tem poderes, apenas uma leve facilidade para a luta e o incômodo TDAH. Mas agora que te encontraram, vai ter que fugir, viver no Acampamento Meio-Sangue — um sorriso maldoso nasceu em seus olhos e brotou na boca, ressaltando sua feiura —, longe de sua cidade, de sua mãe e felizmente de seu colégio. Mas não precisa de poderes, caso se junte a mim: você tem potencial, eu vejo isso, só não sei dizer se Quíron também o fará.

Num instante, o sonho desapareceu e abriu espaço para que enxergasse o que se passava ao seu redor, seu coração e pensamentos acelerados dificultando a adaptação ao novo ambiente. Um teto branco foi a primeira coisa que entrou em seu campo de visão, seguido por sua mãe, que veio lhe acudir quando a falha tentativa de virar a cabeça fez com que gemesse de dor. Em seguida, Madre Esther aproximou-se do leito, não mais monstruosa e horripilante que o normal.

— Vou chamar uma enfermeira — murmurou Kelly em sua testa, enquanto acariciava seus cabelos curtos, causadores de muitos dos castigos que a jovem recebeu ao longo dos anos. Não queria ficar sozinha com a freira, mas seus pensamentos perdidos no sonho a impediram de rebater. Assim que a mulher saiu do recinto, a diretora fitou-a com seus pequenos olhos de porco e cuspiu:

— Da próxima vez que a tiver em mãos não escapará.

Estremeceu diante da afirmação, perguntando-se se estava relacionada ao que acreditava ter acontecido. Estava num hospital, afinal! E nele permaneceu por muito tempo, graças à suposta queda do segundo andar que todos pareciam acreditar ter sido a causa de seus machucados. Preferiu não dividir com ninguém suas alucinações, já era mais que suficiente ela mesma acreditar estar ficando louca, não precisava que outros também o fizessem. Além disso, se não pensasse no assunto talvez não voltasse a ocorrer, ela dizia para si mesma.

Para o bem de seu equilíbrio, nenhum ser mitológico veio perturbá-la durante esse período, exceto por sonhos que não passavam disso e na manhã seguinte se embaralhavam e desapareciam de sua memória. Madre Esther não voltou a aparecer, tampouco a voz que a salvou ou o hediondo homem do hall de entrada, e parecia que as coisas iam finalmente acontecer como ela desejava, porém o branco do lugar a sufocava e ameaçava trazer reais miragens.

Não era mais capaz de aguentar o estéril e impecável ambiente, queria sujar as mãos e o rosto de terra e enfurecer as freiras por entrar na escola com sapatos enlameados, queria ficar exausta de tanto estudar para garantir que não ficaria mais tempo naquele lugar e sentir a euforia de por em prática os terríveis planos de fuga de Mildred, se meter em brigas e sentir o gosto metálico do sangue em sua boca, com um punhado de cabelos arrancados da oponente em mãos.

Jamais imaginou que sentiria falta daquele inferno cheio de almas vis, no entanto daria de tudo para voltar para lá se isso significasse sair do hospital. Não era um desejo muito prudente considerando a ameaça de Alecto (Ἀληκτώ), a implacável, mas a jovem semideusa nada sabia sobre deuses e monstros, quem pode culpá-la?


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Notas finais do capítulo

Ficaria feliz em saber o que acharam ♥ Até o próximo capítulo!