O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 9
Capítulo 8: Névoa




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Capítulo 8

Névoa

Carlos mal sentia os próprios braços quando, a muito custo, empurrou a porta semiaberta do quarto. A tranca danificada emitia um fedor de queimado que entorpeceu ainda mais seu cérebro ainda afetado pelos resquícios da droga.

Cada passo aparentava ser dado no vazio, os pés flutuando antes de atingirem o chão, tal qual não houvesse gravidade – e o rapaz perguntou-se se o primeiro homem em Marte vivera a mesma experiência. Desejou parar, tomar impulso com as pernas e permanecer pairando deitado no alto do corredor, o rosto roçando o teto. Mas agora a gravidade o traíra e puxava-o firme ao chão, os pés recuperando o peso de antes para que pudessem levá-lo até a sala, onde residia o desafio. O embate. A necessidade de satisfações.

As figuras do pai e da namorada tomaram forma em meio à névoa, sentadas em sofás diferentes. Já o aguardavam há algum tempo, conservando um silêncio fúnebre condizente com o velório de alguém ainda vivo. Jéssica tinha os olhos irritados e a face marcada pelas lágrimas, causando um aperto no coração de Carlos. Ainda assim ergueu os braços para ele tão logo o viu, ensaiando levantar-se do sofá para acolhê-lo. Sabia não merecê-la, sabia estar fazendo-a sofrer, porém correspondeu – criatura miserável e necessitada havia se tornado. Quando estava a meio metro da amada e seu abraço, no entanto, o implacável som do engatilhar alterou a atmosfera da sala, travando seus músculos. Imóvel feito estátua, o olhar confuso tentando encontrar respostas na ainda mais atordoada Jéssica, Carlos por fim voltou a cabeça para o pai...

...que apontava uma pistola Smithney calibre 45 em sua direção, a mira laser movendo-se em círculo sobre a testa do jovem.

Os punhos de Carlos se fecharam. O corpo estremeceu. Um tipo de força primordial, que nem sabia ainda possuir, aflorou de seu íntimo num misto de raiva e ímpeto de sobrevivência. Jéssica adiantou-se, saltando do sofá para colocar-se em proteção diante do namorado e estendendo as mãos desesperada ao juiz:

— Não, senhor Castro, por favor, não!

— Saia do caminho, Jéssica – o pai de Carlos respondeu com extrema frieza, sem abaixar a arma mesmo com a moça na linha de tiro. – Isso é entre eu e meu filho.

— Resolveu finalmente terminar o serviço de acabar com a minha vida? – Carlos exclamou provocador. – Deve ter parado de mentir a si mesmo e entendido que conviver com todos aqueles canalhas do governo o transformou em um deles! Faça rápido, então, e não erre!

— Você me acusa de arruinar sua vida quando sempre fez isso sozinho... – Pedro sequer piscava, punhos e mira firmes. – Tornou-se um perigo a si mesmo e aos outros. Olhe só o estado de sua namorada! O que a obrigou a aguentar! Já que embarcou numa estrada terminando inevitavelmente com a sua morte, parece me pedir, a cada ato seu, que eu a encurte para seu bem e de todos os outros que o amam! Pense bem: esse é o papel que um pai merece?

— Quão confortável é poder jogar toda a culpa no filho drogado! – Carlos se alterava cada vez mais, as mãos de Jéssica voltadas agora para ele enquanto o feixe vermelho continuava pairando em sua cabeça. – Primeiro deixou minha mãe morrer. Depois passou a achar que poderia preencher o vazio que ela deixou em mim com presentinhos e a promessa de que eu me realizaria seguindo a sua carreira!

— Então é isso? – pela primeira vez Pedro pareceu hesitar, as mãos tremendo de leve. – Foi para isso que me enviou aquela mensagem de madrugada também? Para que eu viesse aqui e jogasse na minha cara, de novo, que sou culpado pela morte da sua mãe?

Carlos sentiu sua mente revirar-se. Agora parecia ter ocorrido há um século, mas sim, ele realmente contatara o pai aquela madrugada, gravando uma mensagem pela secretária holográfica. O fato fora sepultado em seus pensamentos, de certo por achar que o tão honorável juiz Castro ignoraria o chamado, porém ali estava ele. Não viera ao apartamento sabendo que o filho teria mais uma crise alucinógena por conta da Perestroika. Viera para conversar. Saber do que precisava.

A sensação de ter sido injusto com o pai passou a torturá-lo tanto quanto o arrependimento por submeter Jéssica a tudo aquilo. Talvez mais.

Procurando afastar a neblina de sua memória, reconstituiu o que ocorrera na noite anterior...

X – X – X

Atravessou a porta do apartamento sem causar o mínimo ruído, a tranca eletrônica já configurada no modo silencioso. Tudo que menos queria era acordar Jéssica, ainda mais por aquilo tornar evidente que ele insistia em suas saídas noturnas.

Tampouco acendeu as luzes, caminhando pelos cômodos em meio à penumbra azulada gerada pela claridade dos prédios vizinhos. Sua professora de Antropologia na faculdade explicara, certa vez, como andar em casa no escuro contribuía para aprimorar a percepção sensorial. Segundo se falava, o governo a prendera por supostas ligações com os anarquistas e a trancafiara numa cela sem qualquer luz. Era triste pensar que, nesse caso, seus sentidos se tornaram mesmo mais agudos, mas por conta das torturas que devia ter sofrido...

A cabeça estava meio alta por conta dos drinques tomados no barzinho, e sentia que o corpo logo começaria a entrar em abstinência de Perestroika pelas dezoito horas sem a droga – o recorde anterior sendo vinte e duas. Teria de ir atrás do "Maleta", como chamavam o traficante mais requisitado da região de Copacabana, tão logo o sol raiasse. E não falavam bem do sujeito nem no meio dos viciados. Ao que parecia, ele tinha um pé na Lapa. Já mexia com coisa maior, talvez até com política.

Olhou através dos vidros da janela panorâmica circundando a sala de estar. Nuvens escuras tomavam o céu, e ao longe já piscavam clarões de relâmpagos. Teria de ir atrás de mais droga na chuva. Como uma pontada em sua cabeça, veio a lembrança de que aquele era o dia marcado para sair o resultado da OAB. Esse, sim, cairia sobre si feito um raio... Dois anos de cursinho jogados no lixo; e haveria, é claro, todo o falatório por conta de Jéssica e do pai...

Atirou-se sobre um sofá bufando. Pensou em ligar o streaming para cair no sono embalado pelo som de algum filme, quando sua linha de visão cruzou a caixa de correio à varanda. No topo do recipiente metálico parecendo uma caixa-preta de avião, a luz verde indicando haver nova entrega estava acesa.

Foi o suficiente para despertá-lo. A coisa era bem estranha por jurar não haver nada na caixa quando deixara o apartamento horas antes, e os drones-entregadores não funcionavam naquele horário. Devia ser algum recebimento atrasado ou serviço especial, com sorte o novo roteador da BrazilNet que há tempos esperavam. Levantando-se do sofá, achou ser bom retirar a encomenda da caixa antes que começasse a chover.

Abriu a portinhola levando à varanda, pisando as pedras do revestimento com os pés descalços. Aproximou-se da caixa de correio, inseriu a senha de segurança no pequeno painel e liberou a tampa pressurizada num ruído gasoso. Dentro havia outra caixa, de papelão, formato retangular. Carlos nem imaginava ainda usarem aquilo como material, apanhando o pacote com ambas as mãos cheias de crescente curiosidade.

No trajeto de volta à sala, percorreu o recipiente com os olhos em busca de alguma etiqueta, código de barras ou QR code que pudessem identificar o remetente, porém nada havia. Também não encontrou indicadores de seu próprio endereço, perguntando-se como diabos aquilo fora parar em seu apartamento.

Colocou o embrulho sobre uma mesa, rasgou as fitas que selavam a tampa e, sem demora, retirou de dentro o misterioso conteúdo.

Para sua surpresa, um livro impresso deslizou fora da caixa, capa e acabamento razoavelmente conservados – algo difícil de encontrar naqueles dias. Um tremor percorreu seu corpo ao ler o título da obra: "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida. Censurada pelo governo. Ouvira falar daquele livro no colegial, bem na época em que deixava de ser adotado como texto nas aulas de Literatura por "ferir a boa moral". Poderia passar o resto de seus dias na Amazônia se o exemplar fosse descoberto em sua casa.

Mas não parava aí: algo mais rolou sobre a mesa quando agitou a caixa pela segunda vez. Um pequeno frasco plástico de comprimidos, logo apanhado por sua mão para que não caísse no piso. Não existia etiqueta, e um breve exame das cápsulas revelou possuírem coloração branca e azul. Carlos sentiu-se tenso conforme as peças se encaixavam, e o bilhete escrito a mão que finalmente escapuliu do embrulho serviu para coroar seus receios:

Hoje todos os seus sonhos irão se realizar

Era a confirmação do burburinho nos bares e do papo nos becos que vinham tomando intensidade nas últimas semanas. A droga nova enviada a alguns poucos escolhidos, os traficantes realizando verdadeiro processo de seleção quanto a quem seria digno de experimentá-la: X-Mind. A química das químicas. A viagem das viagens.

Carlos começou a suar. Quem poderia ter-lhe enviado aquilo? O "Maleta"? Por mais que precisasse saber, não poderia indagá-lo diretamente. Se não fosse ele, o suprimento de Perestroika seria cortado quando descobrisse estar concorrendo com outro traficante. Além do mais, quem providenciara o pacote queria vê-lo dependente de algo mais destruidor. A droga que já virara prioridade de combate pelo governo, disposto a aniquilar tanto os fornecedores quanto os usuários usando a PU.

No início achou uma ideia ridícula, mas talvez a melhor decisão fosse contatar seu pai. Algo tão perigoso e visado poderia ser encaminhado ao Ministério Público, e eles iniciariam os procedimentos necessários para eliminar os traficantes. Dessa maneira, quem queria tragar Carlos ao novo vício seria tirado de sua cola, ao mesmo tempo em que não ficava comprometido seu fornecimento de Perestroika pelos peixes pequenos. Uma atitude covarde e individualista? Bem, o rapaz já desistira de tentar viver guiado de outra maneira...

Guardou cuidadosamente livro, frasco e bilhete de volta na caixa, ergueu-se do sofá e, num comando de voz, acionou a secretária eletrônica holográfica, os projetores de luz deslocando-se pelas paredes conforme triangulavam sua posição e iniciavam a gravação da mensagem.

— Pai, eu preciso falar com o senhor...

X – X – X

— Onde está essa nova droga? – Pedro mantinha a Smithney apontada ao filho, tendo ouvido todo o relato sem demonstrar emoção. – Parece que sua irresponsabilidade e vontade de morrer envolvendo-se no submundo do Rio de Janeiro chegaram longe demais desta vez...

— Eu não pedi por essa porcaria, está bem? – Carlos estava com pouco fôlego, o corpo latejava e mal conseguia continuar demonstrando sua irritação. – Não quero o governo atrás de mim. O senhor é a única pessoa que pode fazer alguma coisa. Agora que estou na lista da X-Mind, eles continuarão me importunando até usar os comprimidos!

— Talvez eu devesse deixar você se enforcar na própria corda que amarrou... – o pai murmurou amargo.

— Senhor Castro, não!— Jéssica, exausta, ainda tentava evitar que o confronto entre os dois levasse a algo irreparável.

A sequência de ações transcorreu em poucos segundos. Num berro com toda a força de sua garganta, Carlos jogou-se em cima de um dos sofás da sala. A mira do pai perdeu-o, e este acabou por arremessar a pistola longe enquanto se punha a correr na direção do filho, tentando contê-lo. Jéssica fez o mesmo, saltando na direção do namorado e segurando-o por um dos braços – no que foi repelida com uma cotovelada em seu estômago. A moça voou para trás, caindo sentada no carpete gemendo de dor e frustração.

Aterrissando no sofá, Carlos removeu uma das almofadas e atirou-a ao chão, revelando o frasco de comprimidos embaixo de onde antes estivera. O pai já estava sobre si, estendendo as mãos para agarrá-lo. Os pés calçando coturnos reagiram rápido conforme o afastaram numa série de chutes. Quando Pedro recuou, o filho teve brecha suficiente para apanhar o frasco, arrancar a tampa e apanhar uma das cápsulas.

Encarando o pai e a namorada com seus semblantes transtornados e abandonando qualquer esperança, Carlos engoliu o comprimido.


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