O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 8
Capítulo 7: Sala de aula




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Capítulo 7

Sala de aula

— Bem, alunos, o que temos aqui é um robô-faxineiro Droid, modelo 9.75, fabricado em 2022. De fácil manuseio e manutenção, já é até considerado obsoleto em vários locais do mundo, o que explica a fácil aquisição por escolas para as aulas de Robótica.

O professor foi momentaneamente interrompido pelos risos de sua turma.

— Esta belezinha é tão fácil de ser reprogramada que até um bebê clonado daria conta do recado. Depois de tudo que ensinei, não quero que me façam rasgar os certificados dos cursos no Japão. Quem se habilita?

O garoto de cabelos loiros e porte altivo acomodado numa das cadeiras flutuantes mais próximas da mesa do professor foi rápido em erguer o braço:

— Eu!

Sem demonstrar surpresa, o responsável pela turma voltou o olhar na direção do aluno.

— OK, pode vir, Lucas.

Movendo uma das alavancas no braço do assento para redirecioná-lo acima do piso magnético, o rapaz deslocou-se para a frente da sala, detendo-se diante do móvel sobre o qual o robô-faxineiro, em seu formato de trapézio metálico com listras azuis, aguardava reparo. O painel de manutenção já fora aberto pelo professor, facilitando ainda mais o trabalho.

Certo, aquilo seria simples e só exigiria um pouco de concentração, todos os dados teóricos já frescos em sua mente graças a ter revisado os ebooks antes da aula. E era uma oportunidade inigualável para impressionar Valéria. Talvez a maior desde o início do ano, considerando que as outras matérias contavam com um nível de competição muito mais acirrado na turma e ele se esforçara muito para ficar à frente dos outros garotos em Robótica.

Se conseguisse sair com ela, a vida voltaria à tranquilidade por mais algum tempo. E as palavras do pai, pulsando nas veias de seu cérebro como se fossem estourá-las, seriam silenciadas.

Como assim você não tem uma namorada? Com quantas meninas saiu este ano? O que está acontecendo?

Não podia deixar que aquilo o atrapalhasse. Tampouco se permitir afetar pelo fato de o professor ter um cronômetro na mão. Retornando a atenção ao painel do robô, notou logo de início que o cabo secundário de força estava desencaixado – erro comum e que passava despercebido aos ignorantes funcionários da limpeza, queixando-se que a máquina só executava as funções primárias quando na verdade nem a haviam ligado direito. Plugou o fio rapidamente, aliviado por já diminuir as chances de fracasso.

Focou-se, em seguida, no pequeno teclado de comando. A tela acima deste exibia a mensagem de erro 772. Não decorara, logicamente, a lista inteira de panes do sistema, mas fixara bem os erros clássicos. E o 772, mesmo não sendo tão comum, era bem explicado no manual: conflito de licenças de uso, consequência quase sempre da instalação de software pirata no robô. A máquina inteira era travada ao detectá-lo.

Sem pestanejar, inseriu algumas sequências numéricas no teclado, os bipes reverberando pela sala – e, esperava, agindo feito feromônios sobre Valéria.

Quando terminou, uma luz verde se acendeu no topo do robô-faxineiro, conforme ativou seu sistema de flutuação e deslizou suavemente para fora da mesa, indo recolher um papel de bala num canto ao estender um de seus braços de metal similar a uma pinça.

— Trinta e dois segundos, temos um novo recorde aqui – o professor afirmou num meio sorriso enquanto checava o cronômetro. – Algo a acrescentar?

— Ele está operando a nível básico a partir de comandos numéricos que inseri no painel, sem usar o software de controle – explicou Lucas enquanto seu olhar percorria os colegas. – Não é uma medida definitiva: será preciso formatar o drive e reinstalar o software original e licenciado, ou ele travará novamente.

O garoto queria que sua visão se interrompesse sobre Valéria e as amigas, quando poderia encará-la e dar uma piscadela, erguida de sobrancelha ou qualquer outro gesto que soubera transmitir interesse ao sexo oposto. As garotas se curvariam entre risinhos, Valéria poderia enviar-lhe um emoticon sugestivo por mensagem e com sorte eles sairiam ainda aquela noite...

Isso se os olhos de Lucas não tivessem preferido focar Túlio e seus braços longos, atraentes de um modo inexplicável em sua palidez. Braços de quem jogava basquete, subindo até os ombros fortes e rijos sob as mangas curtas do uniforme escolar...

Pare, o que está fazendo?— sua própria voz interna assemelhava-se cada vez mais ao pai, talvez reflexo de estar terminando a puberdade e ela engrossar em tom similar ao dele. Tudo que não queria em sua vida.

— Não esperava menos de você! – uma mão do professor pousou em suas costas, quase o fazendo saltar de susto conforme era tragado de seus devaneios. – Pode voltar ao lugar, Lucas.

Ele retornou à cadeira magnética com a cabeça erguida, por mais que não quisesse mais olhar para os colegas. Enquanto se acomodava e empurrava uma alavanca para girar o assento, notou o olhar de Valéria sobre si. Um espasmo nervoso percorreu seu corpo, mas não comprometeu a reação rápida: correspondeu e abriu um sorriso.

Túlio, por sua vez, conversava com os amigos do basquete alheio a tudo – principalmente os sentimentos secretos que Lucas, para o próprio bem, deveria enterrar sob quinhentas camadas de titânio.

Dele, tinha certeza, ele jamais receberia um sorriso.

X – X – X

— Vocês já ouviram falar em "Teoria do Caos"? – perguntou o professor de Educação Social conforme a primeira página do ebook da matéria nova era transferida aos tablets dos alunos.

— Só na TV – respondeu José Augusto, mais distraído com a demora na barra de carregamento do computador do que interessado em descobrir o que era.

— Meu pai já falou disso em casa... – Patrícia deixou escapar com seu jeito abobado de sempre. – É algo ruim, não é?

O professor não alterou um centímetro de sua expressão conforme ouvia as respostas dos alunos, deixando claro lançar a pergunta à sala mais por convenção do que por se importar com os conhecimentos prévios que poderiam ter.

— A Teoria do Caos é um conceito matemático e filosófico capaz de ser observado, por exemplo, na Meteorologia – continuou. – Pesquisadores discutiam como uma pequena alteração no clima poderia colocar abaixo toda e qualquer previsão que pudesse ser feita sobre seu comportamento. Os serviços de medição podem afirmar que amanhã fará sol pelas circunstâncias atuais da temperatura e dos ventos, mas se uma pequena oscilação numa dessas condições ocorrer, uma mísera variação imprevista, o tempo poderá estar bem distante de permitir uma ida à praia amanhã...

Lucas tentava virar a cabeça para a carteira de Valéria sem dar à vista do professor ou dos colegas, porém não era o exemplo mais prático de discrição. Na segunda tentativa uma colega sentada atrás dela percebeu, cutucando-a rindo e apontando na direção do rapaz. Este foi rápido em voltar-se de novo para frente – desejando, ao mesmo tempo, que forçar-se a manifestar interesse pela menina não fosse algo tão penoso.

— Daí a ideia geral de que uma mínima alteração nas condições iniciais de um fenômeno, por aleatoriedade, pode trazer enormes mudanças às suas consequências – a explicação prosseguia. – O enunciado mais popular da Teoria do Caos é que "o bater de asas de uma borboleta pode causar um tufão do outro lado do mundo". Já pararam para pensar que até as escolhas mínimas do dia-a-dia podem repercutir de modo irreversível mais adiante em nossas vidas? É impossível prever, por isso a importância do zelo por nossa integridade moral. Posicionar-se corretamente diante do perigo das drogas. Das ideologias perniciosas. Um mero pensamento subversivo pode levar ao colapso da sociedade se não domado. Com isso conseguimos analisar a repercussão da Teoria do Caos nos estudos sociais. Quando falamos de pessoas, ela se tornou codinome para "Distúrbio Social Grave".

Começou a pensar nos próximos passos. OK, o flerte não era tão difícil assim, porém depois viria a parte de realmente sair com Valéria. Só de imaginar, sua pele gelava e os músculos ameaçavam travar tal qual o robô-faxineiro avariado na aula anterior. Ele precisava causar uma boa impressão, ou o que a garota mais cobiçada do colégio acharia? O que ela diria às amigas, e que inevitavelmente também chegaria aos ouvidos dos rapazes? "Por que ele não te beijou?". "Ele mal encostou em você, será que não gosta de mulher?".

E sim, seria questão de tempo até o pai também ouvir os comentários...

— Quando se desencadeou a Reconstrução a partir de 2016, este país estava entregue à Teoria do Caos em seu sentido mais amplo – o professor não aparentava se cansar, o timbre monótono que utilizava decerto contribuindo para isso. – Nosso governo e as corporações que o auxiliam procuram, hoje, evitar que essa situação de calamidade se repita. Sementes de rebelião, de desordem, precisam ser extintas antes que causem tufões. Um indivíduo defendendo que a polícia deve voltar a ser estatizada ou outro alegando que homossexuais precisam ser tratados como cidadãos comuns, a um olhar ingênuo, não causam mal. "Meras opiniões". Mas nós sabemos o que essas mentes perversas fizeram do país no passado. E, diante da aleatoriedade capaz de destruir um sistema social, conseguimos chegar a um modelo que garante a maior margem possível de certeza. De segurança.

Ensaiou dar uma nova olhadela na direção de Valéria. O som dos risinhos havia passado, ainda que mais por medo do professor do que para atraí-lo a uma segunda espiada. Antes de virar a cabeça, pousou por um instante os olhos nas costas de Túlio, a duas carteiras de distância, e sentiu a bile subir pela garganta e queimá-lo. Aquilo tudo já não era mais somente trair a si mesmo. Ele também o traía, ainda que o colega sequer pudesse imaginar...

— Ora, será que nosso amigo Lucas está um pouco distraído?

O garoto ficou subitamente estático. O professor de Educação Social sempre exigia o máximo de atenção dos alunos, seguindo o princípio de que um deslize mínimo levaria a sala toda à rebelião assim como na Teoria do Caos que tanto frisava. Além do mais, não doutrinar aqueles jovens direito botava em risco uma sociedade que preferia fingir que todos os homossexuais se convertiam em bons e quietos heteros. Lucas perguntou-se quantos mais deviam esconder o que eram ao seu redor, incluindo ali mesmo, naquela sala.

Bem, se agora era alvo, cabia cumprir o procedimento para deixar de sê-lo. O rapaz aguardou em silêncio a pergunta do professor.

— Sabe me dizer quais são os dizeres da Bandeira Nacional?

Ele não podia cair na tentação de espiar os mastros de pé ao canto da lousa digital, contendo as bandeiras da cidade e do estado do Rio, além da principal representando o Brasil ao centro das duas. Alguns já tinham caído naquela armadilha antes, e o castigo fora severo. O professor queria o lema gravado no cérebro de todos feito uma marca a laser.

— "Ordem e Verdade".

Certo, aquela havia sido nível fácil, e Lucas sabia estar sendo testado. As matérias de Exatas como Robótica sempre foram tranquilas nesse quesito, mas todos os professores de Humanas o pressionavam mais, além de usá-lo como modelo ideológico ao resto da turma. Sabiam muito bem de quem era filho, e o que o nome de seu pai representava à nação.

— Explique a origem da bandeira atual e o sentido desses dizeres – o desafio seguinte foi dado.

Lucas não titubeou. Dominava bem o conteúdo, mesmo que recentemente mais para conseguir saídas fáceis com garotas do que por patriotismo ou qualquer outra estupidez.

— A bandeira anterior continha os dizeres "Ordem e Progresso", lema do Positivismo, filosofia arcaica criada pelo ateísta Auguste Comte há duzentos anos. Essas palavras remetem aos desmandos e caos da antiga república e, por mais que contenham uma ilusão de verdade, são de autoria de um inimigo da religião e da verdadeira Ordem. Após a Reconstrução, nossa bandeira foi adaptada para um novo governo e uma nova sociedade. Tendo os dois lemas gravados numa cruz que representa a riqueza espiritual do país, a Ordem faz referência à natureza ordeira, conservadora e entusiasta do livre mercado que nosso povo possui. Já a Verdade é o caminho para o verdadeiro progresso revelado a todos os brasileiros a partir da Reconstrução. É a trilha da qual jamais devemos nos perder. É a raiz do desenvolvimento e moralidade.

OK, boa parte daquilo fora decorado a partir dos ebooks, porém ele acrescentara seu próprio toque poético. Você se esqueceu de mencionar que as dimensões simétricas da cruz representam a igualdade entre católicos e evangélicos, sendo todos cristãos... – reprovou-se logo em seguida, desejando que a omissão não fosse notada. O professor torceu os lábios numa expressão de mármore que, por costume, sabia significar um mínimo de satisfação. Na fileira das meninas, torcia para que estivessem suspirando admiradas – embora não tenha voltado a cabeça para conferir. Divertiu-se ao pensar que o governo poderia acabar de vez com os rebeldes se investisse em agentes de propaganda de rostinho bonito – e sim, soava patético.

Diante da sala, o professor recuou alguns passos e continuou sua vagarosa exposição. Só nesse momento Lucas de Almeida permitiu-se olhar de soslaio a Bandeira Nacional, os dizeres na cruz ao centro ilegíveis em meio às dobras do tecido. Mais uma enxurrada de mentiras vomitada para fora. Mais um dia na escola sendo filho do comandante da Polícia Unificada.

 


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