O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 10
Capítulo 9: Darwin e Einstein




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/720641/chapter/10

Capítulo 9

Darwin e Einstein

— Por que você fala tão mal da época em que trabalhou para o Fonseca? – o primeiro homem de jaleco e gravata indagou, olhando impaciente ao redor devido à demora do café.

— Fonseca era um sádico. Um açougueiro – o segundo sujeito, vestido no mesmo padrão, respondeu do outro lado da mesa. – Há anos é comprovado que os biochips devem ser fabricados com carbeto de silício. O material não degrada, é semicondutor e não causa qualquer reação adversa por parte do corpo. Fonseca fazia experiências com chips de silicone, na justificativa de encontrar um material alternativo que pudesse ser usado como reserva. Cortar custos. Todas as cobaias morreram devido à rejeição pelo tecido cerebral. O maldito não é um pesquisador, é um ideólogo. Esquecia o fato de que as cobaias humanas fornecidas pelo governo serem dissidentes políticos é circunstancial. Ao invés de fazer seu trabalho, Fonseca estava mais preocupado em garantir que sofressem.

— Você vive com esse papo de encarar com neutralidade as cobaias que recebemos, mas insiste nessa loucura de não poder usar um dissidente para o Projeto Minerva... – o primeiro homem continuava inquieto, e agora se arrependia de terem escolhido um lugar tão público para tratar de pesquisas confidenciais.

— A mim parece bastante óbvio. Prometeu teria concedido o fogo aos Titãs presos no Tártaro? Por mais que não façamos questão de torturar os Titãs como Fonseca fazia, um poder tão grande não pode ser dado aos inimigos do Estado. Seria muito perigoso, e nossas próprias cabeças acabariam colocadas a prêmio...

— O governo vai querer nossas cabeças, na verdade, quando souber que você ignorou os protocolos e buscou uma cobaia não autorizada... – o outro suspirou. – O Exército cuida da segurança nas instalações de pesquisa, e qualquer prisioneiro que queira dar uma de sabichão com Minerva implantado no cérebro será fuzilado sem qualquer risco. Seus motivos são outros. Deseja a sensação de poder ao conceder um dom desse porte a uma pessoa de sua escolha da sociedade. Está querendo brincar de Deus...

— Talvez o que eu deseje fazer seja a contribuição definitiva à Reconstrução. O governo deveria enxergar dessa maneira. Imagine um professor que consiga detectar mentiras de seus alunos. Rastrear os dissidentes ainda bem cedo, antes de se esconderem nos esgotos com um AK-102 numa mão e os ensinamentos de guerrilha do Che Guevara na outra. Ou um funcionário da burocracia distinguindo pelo mero olhar quais subordinados desejam contribuir com o novo país e quais tramam contra este pelas costas. Tudo começaria a partir de um cidadão exemplar selecionado para portar a dádiva. Ele serviria de exemplo e guia a todos os demais agentes sociais que quiserem também receber o chip.

— É um ingênuo ao imaginar a implementação do chip de maneira tão democrática – os olhares do nervoso pesquisador não percorriam mais todo o estabelecimento, focando-se apenas no balcão de onde, esperava, os cafés ainda pudessem surgir. – Se ele realmente funcionar, o governo escolherá a dedo quem o receberá ou não. Será criada uma nova burocracia especializada em detectar mentiras, e você não terá influência alguma na seleção dela. Nós tampouco seremos membros.

— Quando o governo perceber os benefícios de minha escolha quanto à primeira cobaia, mudará de ideia. Eu garanto. Darwin e Einstein quebraram alguns ovos para quebrarem os paradigmas de sua época. Estamos fazendo o mesmo por um bem maior.

O sujeito parecia convicto, e seu colega a essa altura só desejava permanecer vivo para testemunhar sua glória ou destruição. Ainda que quisesse pular fora, já era tarde. Sabia demais a respeito das experiências secretas realizadas a mando de Brasília, e seus contratantes garantiram que só continuaria a exercer o trabalho de neurocientista se contribuísse exclusivamente com o governo. As opções de livrar-se de tudo aquilo eram ser dispensado de bom grado pelos superiores, ou ser lacrado a vácuo dentro de um saco plástico preto. Com a megalomania de seu parceiro, a segunda opção acabava a cada dia se tornando mais certa. Ainda mais se alguém do governo o ouvisse falando que Darwin estava certo em alguma coisa.

E ele só queria logo o café para poder acalmar os nervos...

— Tudo bem, vamos entrar no seu jogo – disse ao colega enquanto procurava distrair a própria mente. – Como seria essa sua cobaia perfeita?

— Um homem de respeito e influência na sociedade. Ligado ao governo e seus ideais, mas não totalmente concordante com suas práticas. Alguém que saiba enxergar e considerar o outro lado.

— Por que não uma mulher?

O segundo pesquisador bufou, esticando-se na cadeira por um momento entre o que parecia um espreguiçar e um deboche.

— Você acredita mesmo que uma mulher saberia usar uma habilidade tão importante, que antes se acreditava só Deus poder ter? – riu ele. – Quem pode entendê-las? As novas leis criadas pelo governo procuram controlar principalmente o comportamento delas, visto que nem elas mesmas se controlam. Múltiplos parceiros. Querer ter os mesmos direitos que os homens. A maioria das mulheres não vale a dieta de vitaminas que consome diariamente...

Aquele era o problema com o parceiro, como o primeiro cientista há tempos observava. Um machista e misógino convicto, contrário a tudo que favorecesse o sexo oposto provavelmente por conta de sua frustração pessoal quanto a ser solteiro. Tinha vontade de dar-lhe algumas boas explicações sobre dignidade e respeito, mas o governo sempre estava à escuta e poderia classificá-lo como "defensor de ideologia de gênero", considerada parte das ideologias vermelhas. De pesquisador, acabaria transformado em cobaia do colega paladino das garantias dos homens.

Mas não, não podia deixar a oportunidade passar sem uma mínima alfinetada:

— Você está tentando criar um detector de mentiras ambulante. Um polígrafo neural em forma de biochip. Deve saber que quem auxiliou a criação do polígrafo original foi um psicólogo chamado William Moulton Marston. Ele também ficou conhecido por ser o criador da personagem Mulher-Maravilha.

— Um inventor e roteirista de quadrinhos? – o parceiro ironizou. – Dou o crédito de antes as pessoas serem muito mais criativas...

— Nunca leu um maldito gibi na sua infância? – o primeiro pesquisador não sabia se ria de surpresa ou raiva. – A Mulher-Maravilha ter um laço da verdade reflete a própria criação de Marston no mundo real. Ele e você são iguais quanto a tentar criar um método infalível de descobrir mentiras. Quem diria pensarem de modo tão diferente sobre as mulheres...

— Se o chip Minerva funcionar, ao menos poderemos desmascarar também as mentiras das feministas – o segundo cientista sorriu debochado. – Isso o satisfaz?

Um zunido próximo à mesa revelou o drone-garçom chegar com os dois cafés expressos sobre uma bandeja de plástico, o flutuador do robô aparentando estar levemente desregulado ao atrair pedaços de guardanapo e restos de comida jogados pelo chão. Se dependesse do primeiro pesquisador, a máquina poderia até levar embora seus sapatos se isso significasse parar de ouvir tanta besteira.

Apanharam os copos e tragaram o café. Grãos transgênicos cultivados na Colômbia numa das fazendas pioneiras da parceria governo-FARCs após o cessar-fogo entre ambos, conforme inscrito nos recipientes junto ao desenho malfeito de uma pomba da paz. Seria engraçado, e merecido, se o pássaro não fosse apenas uma metáfora e tivesse deixado uma surpresinha ao colega dentro de sua bebida.

— E esse "homem de respeito e influência", você já tem um nome definido? – resolveu jogar verde.

— Na verdade sim – o outro replicou após mais um gole do café. – Planejo visitá-lo em breve. Vive num apartamento na Barra da Tijuca. Você gosta daquela área da cidade, não gosta? Talvez a umidade das lagoas esfrie esse seu cérebro esquentado...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Juiz da Verdade" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.