amai o senhor teu Deus sobre todas as coisas escrita por Astaroth


Capítulo 1
1 Samuel 18:01




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— Você não vai me deixar em paz nunca, né?

— Mas é claro que não — respondeu, sem dar muita importância para a pergunta. — Agora dá um sorriso, vai. Não, não, assim não, Davi. O mundo precisa ver esses dentes, cara.

O garoto forçou um sorriso torto e desconfortável, as câmeras nunca tinham sido muito amigáveis com ele. Atrás das lentes, Jonatas tentava conter o riso ao dar zoom em uma espinha que estava brotando na testa de Davi.

— Você vai ser jornalista, migo, não paparazzi — alfinetou Davi enquanto colocava uma mão no rosto e outra na câmera, para impedir a filmagem.

— Ué, é meu plano B. Eu não tenho grana pra pagar particular e pelos meus acertos no ENEM... Nem todo mundo tem pai rico pra pagar o curso, né?

— Se você soubesse o volume de boleto que veio no correio esse mês, Jô... — Davi riu ao observar a pequena centelha de raiva nos olhos de seu amigo, por trás dos óculos embaçados. Jô Soares era o apelido de Jonatas, que o odiava com todas as forças; mas, bem, verdade seja dita: os dois eram muito parecidos, ao menos até Jonatas começar a malhar no primeiro ano. Sério, quem leva frango pra comer no intervalo das aulas?

— Eu te odeio, sabia?

— E ainda assim não consegue parar de me gravar — brincou Davi. — Sério, viva os momentos. Cê tem a chance de ter alguns — disse, a tristeza quase imperceptível em suas palavras.

Jonatas suspirou, desligou a câmera e bagunçou os cabelos já bagunçados de Davi.

— Ei, você tá aqui agora, não tá? Essa viagem vai ser ótima, tô te falando. Eu não passei as férias inteiras vendendo brigadeiro pra esse negócio ser meia boca.

Antes que pudesse responder, uma voz em um autofalante pediu para que ajeitassem as poltronas e afivelassem os cintos; o avião estava prestes a decolar.

Davi olhou de soslaio para um Jonatas visivelmente ansioso. Quando o diretor da escola trouxe à turma a opção de um passeio ao invés de uma festa para a formatura dos terceiranistas, ele fora um dos primeiros a decidir que preferia viajar.

Sua família não tinha muito dinheiro, então ele só havia pisado duas vezes em um avião, ambas com as passagens pagas pela família de Davi. Dessa vez, porém, ele mesmo tinha arrecado a grana, capinando quintais e vendendo doces com uma pequena ajuda de seu amigo, que, diferente dele, sabia cozinhar. Não era de se espantar, portanto, que o garoto carregasse sua câmera para todo lado; estava muito animado e decidido a aproveitar aquela viagem.

— É, não passou. — Sorriu. — Aliás, você conseguiu vender aqueles que queimei?

— Com um descontinho — Jonatas respondeu, piscando um dos olhos.

A decolagem ocorreu e, após algum tempo, Davi viu pela janela a sua cidade natal ficando cada vais mais pequena, distante. Nítidas, as palavras de sua mãe ecoavam em seus ouvidos, mesmo com o headphone tocando uma música qualquer do Aerosmith em volume máximo.

“Amamos você, meu filho. Toma cuidado, liga pra gente quando chegar e vê se mantém esse celular carregado, pelo amor de Deus.”

A voz do pai, porém, veio como uma navalha: “Juízo, garoto. Não faça com que eu me arrependa.”

Davi respirou fundo, reclinou a poltrona e tentou, em vão, aumentar ainda mais o volume. Não iria deixar que ele arruinasse aquela semana. Não dessa vez. Observou Jonatas cair no sono lentamente no assento ao lado enquanto se concentrava no que ele tinha lhe dito há pouco tempo: “essa viagem vai ser ótima, tô te falando.”

Não sabia o motivo, mas ele sempre conseguia o acalmar, até mesmo quando o chá de camomila não surtia efeito; e Davi adorava chá de camomila.

Adorava Jonatas mais, porém.

***

Davi estava morto.

— Oito horas em um voo sem escala, isso não existe — murmurou, jogando-se em uma das camas de seu quarto temporário depois de arrumar suas malas em um canto qualquer. Tinham acabado de sair de um sermão enorme sobre as regras de comportamento durante a semana que passariam em Florianópolis, mas suas costas estavam doendo tanto que não tinha conseguido absorver nada.

— Nem me fala, cara — respondeu seu colega de quarto, Marcos, seus cabelos ruivos cobrindo parcialmente os olhos cansados.

Nem todos os alunos da turma tinham decidido viajar, então o número de pessoas em cada cômodo era bem baixo. Além dos dois, havia apenas outro moço, Rodrigo, que tinha ido ao banheiro. Mesmo exausto, Davi estava muito animado. Eram apenas sete dias, somente sete dias, e ele planejava aproveitar tudo o que pudesse.

Assim que Rodrigo saiu, Davi entrou no banheiro e tomou um banho merecido. Tentou lembrar-se do que o diretor tinha falado mais cedo, mas nada vinha à sua mente. Nada, exceto...

Liga pra gente quando chegar.

Merda, tinha esquecido completamente disso. Saiu do box, enxugou-se, colocou uma roupa qualquer e sentou de pernas cruzadas na cama, abrindo o computador.

— Marcos, a senha do wifi. Qual é mesmo?

— Tá no panfleto que deram pra gente, aqui, ó — entregou, enquanto enxugava os cabelos e fechava o zíper da calça. — Eu e Rodrigo já estamos indo jantar, você não vem?

— Nah. Cheguei com tanta fome que comi no aeroporto — riu, nervoso, lembrando-se do dinheiro que tinha gastado. Nunca mais compraria comida lá, aquilo era um roubo. — Avisa o pessoal, tá bom?

— Tá ok. Té mais.

Assim que saíram, Davi penteou o cabelo e arrumou a cama — ao menos a parte que o Skype iria deixar visível para sua família. Sua mãe já estava online, e assim que ele entrou, ela ligou para ele.

— Eu nunca sei como fazer isso — falou ela, o rosto afastado da tela do celular por dois braços esticados e as testas franzidas, tecnologia nunca tinha sido seu forte. — Amor, me ajuda aqui, o Davi entrou.

— Você tá fazendo errado de novo — a voz dura costumeira penetrou seus ouvidos, e um homem de mais ou menos quarenta anos entrou em seu campo de visão. Óculos quadrados, camisa social, cabelo penteado. Típico pastor de classe média. — Não afasta muito a câmera, nada vai explodir.

— DAVI — gritou ela, como se estivesse falando de outro lado de um túnel. — EU VEJO VOCÊ! VOCÊ CONSEGUE ME VER?

— Mulher...

— Consigo, mãe — respondeu, acenando.

— Ah, meu filho, a casa fica tão grande sem você — declarou a mãe, com uma das mãos no peito. — A geladeira nunca esteve tão cheia de comida. Como você está?

— Eu tô bem, não se preocupe. Chegamos há algum tempo... Amanhã vamos para a praia...

E conversaram por algum tempo. Davi tentou tranquilizar a mãe, que viu no jornal que o número de assaltos no Brasil tinha aumentado e sentia que algo ruim ia acontecer. Seu pai, no entanto, ficou sério a ligação inteira. Balbuciava algumas coisas aqui e ali, então quando ele falou uma frase inteira, já ao fim da conversa, surpreendeu a todos.

— Não se esqueça de seus deveres. Eu mandei você colocar a sua bíblia e o livro da meditação diária na sua mala. Você o fez? — perguntou.

— Sim, senhor. — Desviou rapidamente os olhos para sua mala. Ele tinha trazido a bíblia? Que memória horrível, Davi.

— Você precisa estar com todos esses estudos em dia, sabe disso. Sendo meu filho, há muita expectativa da comunidade. Eu sei que as coisas devem ser movimentadas por aí, e eu quero que se divirta. Mas a salvação é diária. Não perca a sua coroa, garoto.

— André, o horário. Precisamos ir — avisou a mãe. — Se cuida, viu, meu amor? Beijo, te amamos muito. Vou desligar, tá bom?

— Boa noite, amo vocês também.

— Ahn... como que desliga isso mesmo?

***

Davi estava muito cansado, mas não conseguia dormir. Tinha até pegado a meditação pra dar uma lida, mas não teve saco para aquilo naquele momento. Deitado e de olhos fechados, não sabia exatamente quanto tempo havia se passado desde que tinha parado de conversar com seus pais.

Não perca a sua coroa, garoto.

Ah, se ele soubesse...

— Ei — chamou uma voz fora do quarto, seguida por três batidas rápidas —, tá ai?

— Tô sim, pode entrar.

— Eu falei pra não comer no aeroporto, não falei? — comentou Jonatas, entrando e sentando ao lado de Davi na cama.

— Você tá filmando? — perguntou, sem abrir os olhos.

— Não, cara, relaxa — defendeu-se. — Deixei a câmera no quarto quando voltei. Tá tendo campeonato de sinuca lá embaixo, você quer ir? Marcos tá acabando com todo mundo.

Sinuca? Ele era péssimo nisso. Mas até que era divertido.

— Desculpa, as minhas costas tão me matando.

Jonatas levantou uma sobrancelha.

— O que tá acontecendo?

Davi sentiu umas mãos calejadas afagarem seus cabelos escuros. Institivamente, moveu-se e colocou sua cabeça sobre as coxas do outro. Abriu os olhos e avistou um sorriso conhecido.

— Eu sempre amei seu sorriso. Seria bom filmar ele ao invés da minha espinha de vez em quando.

 Jonatas deu uma rápida risada, mas não deixou com que o assunto fosse desviado:

— Eu sei que você não tá bem. Desembucha.

— Não — afirmou, seco. — Não vamos falar sobre meu pai hoje.

Claro que era o pai.

Permanecerem em silêncio por um tempo, os dedos de Jonatas fazendo redemoinhos em seus cabelos, até que Jonatas pronunciou:

— O que será que o pastor André, um homem do senhor, servo de Deus, pai compromissado... — falou, abaixando o rosto até seus lábios estarem próximos dos do outro — faria se visse a gente agora?

E o beijou.

— Ah, ele te mataria — respondeu Davi, levantando-se do conforto de Jonatas e o beijando novamente, dessa vez, no entanto, com mais vigor, puxando a camisa dele para que seus corpos se encontrassem. Jonatas não perdeu tempo, empurrando seu amigo e ficando por cima dele na cama.

— Atiraria no namorado do filho dele? Mas olha como você tá feliz — ironizou, passando a mão em um crescente volume nas calças de Davi.

— Não somos namorados.

O beijo se tornou mais intenso, as bocas deslizaram para os pescoços e as mãos entraram para debaixo das peças. Jonatas arfou quando seu melhor amigo mordeu seu lábio inferior.

— Não somos porque tu não quer.

— Não somos porque eu tenho juízo — Davi gentilmente separou os corpos dos dois, sentando-se na cama e apoiando a cabeça nas mãos. — A minha família é... complicada. Cê sabe melhor que ninguém...

— Eles não precisam saber agora. E, caso descubram, a sua mãe me adora...

— ...e você não é exatamente do tipo monogâmico. Mês passado cê não tava pegando a tal da Ângela?

Jonatas se aproximou, colocou a mão na cabeça de Davi e olhou fundo em seus olhos.

— Ei — começou. — Eu deixaria todos esses contatinhos por você, meu bem. Qual é, eu sou seu melhor amigo, te conheço desde os três anos. — Diminuiu o tom de voz e continuou, sussurrando: — E beijo essa tua boca desde os quinze. — Sorriu, passando o polegar pelos lábios dele. — Por que você não tira um tempo pra pensar nisso?

Davi ouviu o barulho de alguém mexendo na maçaneta e logo se afastou.

— Jonatas, pro seu quarto — disse um professor, Rodrigo e Marcos sendo empurrados para dentro do quarto. — Amanhã partiremos cedo para a praia, sem atrasos.

— Eu já estava de saída de qualquer forma, Simon — mentiu, limpando a poeira da calça e se levantando. — Até mais, pessoal.

— Anda logo — chamou Simon.

Marcos balbuciou alguma coisa que entrou por um ouvido de Davi e passou por outro.

Namorar Jonatas, hein?

A ideia não era de fato ruim, os dois tinham passado por tanta coisa... Mas não. Namoro era diferente de umas pegações casuais. As coisas estavam indo bem assim, não iria correr o risco de estragar tudo. A verdade sempre vem à tona, afinal...

Davi acabou adormecendo, de calça e tudo, e, cansado como estava, dormiu um sono sem sonhos.

Aquela seria uma longa semana.


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Notas finais do capítulo

Ainda tem mais dois capítulos, não desiste de mim, não. Calma que o angst chega. ♥