Produção Independente escrita por Mary


Capítulo 9
9. Medicando o coração partido - Por Cuca




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Foi em Fábio Aragão que encontrei um confidente. Na segunda consulta com ele, em meados de agosto, contei superficialmente sobre o “relacionamento” com Herbert e assumi a decisão de levar a gravidez adiante sem pedir ajuda ao ilusionista emocional.

O médico, porém, manifestou que na posição dele me auxiliaria. Mesmo não sendo psicanalista, permitia que eu me abrisse sem interromper para sugerir sandices e vir com lições de moral. Sua cabeça ora balançava para um lado ora para o outro. Às vezes eu não me continha, a voz embargava, eu me desculpava e recebia um lenço de papel.

— De onde você tira tanta força para continuar?

— Agora eu tenho alguém que depende muito de mim e se alimenta da minha força — ainda que eu duvide tê-la.

— Você a tem.

— Às vezes eu me indago se o que me mantém de pé é o otimismo sobrevivente ao fel ou apenas teimosia. Qualquer que seja a resposta, não há como voltar atrás nem fazer de conta que nada está acontecendo.

— Você vai se ofender com o que eu vou perguntar?

Dei de ombros.

— Posso te abraçar? — sorriu Fábio com os olhos vermelhos, colocando-se de pé para me abraçar.

Fábio não sabia que embora eu amanhecesse linda e pronta para outro dia excruciante de trabalho, eu costumava chorar muito antes de dormir. Alisava a barriga em crescimento, conversava baixinho com a minha pequena, prometia-lhe que acontecesse o que fosse eu nunca desistiria dela. Tínhamos a uma a outra, retroalimentando as forças para crescermos e passarmos por todas as provações sempre juntas.

 Consegui com algum sucesso esconder a gravidez de todos até o início do quarto mês, depois não houve mais jeito, o meu corpo passou a ditar as regras e eu só respondia para quem me perguntava, não por maldade ou por almejar algum tratamento especial.

Àquelas alturas eu havia desistido de ser mãe por crer que já estava entrando nos quarenta e cinco do segundo tempo do relógio biológico, mal pude imaginar que um dia dos namorados me traria no fim das contas o maior presente de todos.

Tão habituada a ser tia, madrinha, amiga dos meus alunos, terapeuta por correspondência das minhas amigas, teria enfim a minha própria experiência com a maternidade, decidindo ressuscitar aqueles diários de adolescente onde eu escrevia sem me importar com concordância, tempos verbais e apreciação literária, até porque por uma breve fase da mocidade os hormônios venceram e eu passava bem longe dos livros grossos.

Os melhores imprevistos são aqueles que nos tiram o fôlego.

Alguns, evidentemente, escrevem o nosso destino na contramão do que pregávamos, e assim sendo, ditam o novo ritmo das batidas do coração. Pode ser uma combinação estranha e também divertida e pode ser também um bolero triste sem ensaio.

 Dependendo ou não das nossas escolhas, é preciso seguir o compasso, as placas, localizar um ponto para focar, mentalizar toda a positividade de que puder se cercar. Contrariedades não faltam. Falar apenas o que alguém já falou. De um jeito que os dedos dos versos tamborilem e encontrem conforto na superfície.

Três tirinhas azuis. Manhãs tempestuosas, mudanças silenciosas, gradativas, perceptíveis e se meu corpo é um berço provisório, a sentença é definitiva, pelo menos se eu me dispuser a elucidar minha metamorfose, aquele sonho que eu desdenhei na mocidade por julgar que era paralelo a minha realidade.

Correm as dúvidas ao alcance do papel. É outra noite que não vou dormir. Faço questão de não estar certa. Honrosamente admitir que prefiro consolar a ser consolada, que poderia ter feito as coisas de um jeito diferente ou simplesmente não tê-las feito.

Poderia ter mergulhado mais fundo ou então me afogado ou em última instância, nunca ter colocado meus pés naquele mar gelado e antipático. Poderia também não ter me atolado a preocupações que hoje representam cinzas invisíveis.

Aquela ambição distante é a bomba que explodiu sob o meu metodismo docente.

Deixei-o ir, com a condição de que retornasse, se meu nunca tivesse deixado de ser. Teimei que sim, que ele seria meu de qualquer jeito, e que eu não seria totalmente eu sem ele. De fato, não era a melhor hora para deixá-lo partir do meu coração também, por maior que fosse a vontade de escrever o contrário, um final digno de comédia romântica.

Ninguém pertence a ninguém.

Eu não interpretava um papel adequado dentro dele, nunca tomaria o posto principal, nem seria a escolhida. Eu era querida, só não na mesma proporção sonhada.

Se meu corpo é provisório e eu mal sei quando prescrevem os meus pecados nem a minha passagem nesse trem-bala repleto de estradas insanas e paradas periódicas, não me interessa usar outra algema.

Tem o medo.

Tenho medo.

Ele segue calado a me observar de longe, desinteressado. Mas ainda assim presente.

Pela primeira vez, conforme as lágrimas molham o meu rosto sem indícios de maquiagem e profissionalismo, reconheço que não sei o que vou fazer daqui em diante...

E não falo vagamente...

Eu não sei o que vou fazer!

 

Nas proximidades das consultas em que Fábio Aragão avaliava o desenvolvimento da gestação, vinha notando o quanto me afeiçoei a ele, não somente pela gentileza que fazia parte do comportamento médico-paciente, mas pela atenção com que se dispunha a sanar todas as dúvidas de uma desastrada mãe de primeira viagem, ainda confusa com os desejos, ansiosa, chorosa. Mais do que isso: pensar nele, apesar da culpa que sentia, era inevitável. Aquele homem estava se tornando um amigo e demonstrava se importar mais com o meu bebê do que o próprio pai se tivesse honradez o faria.

Aquela voz grave, sonora, que me fazia prestar atenção a cada movimento de suas cordas vocais. Aqueles olhos castanho-esverdeados propositalmente indecisos, aquele cabelo castanho encaracolado e curtinho, rosto barbeado. Aquela prestatividade desprendida. A didática. Sem sensacionalismo, sem puxa-saquismo. Um profissional, acima de toda e qualquer expectativa, que a cada consulta mostrava-se atento a detalhes que eu mesma pudesse ter me esquecido em meio a esse vai-e-vem de desejos doidos, chutes na barriga, medidas aumentando, crises de choro, nenhuma posição ser confortável no descanso.

Ele estava ali anotando no meu prontuário tudo que eu lhe relatava, me examinando com cuidado, dizendo que eu devia contatá-lo assim que me sentisse mal, fosse por conta de um enjoo mais forte ou por solidão.

― Quando precisar é só me ligar, não importa a que horas seja. ― justificou Fábio anotando número por número soletrado em seu Iphone cuja capa era dourada.

Sem alianças nas mãos, sem porta-retratos com crianças fotogênicas e uma esposa dedicada, decidi procurar por seu perfil no facebook. Não era casado nem noivo nem estava “em um relacionamento sério”. Como se espera de um solteirão cobiçado, as mulheres flertavam descaradamente nos comentários das fotos postadas.

Formado na PUC na turma de 2000, esforçado a ponto de conseguir residência na área pretendida logo após sair da faculdade. Especialista, atualizado, curioso, dedicado. Nada mais natural que muitas desejassem ser a “Sra. Fábio Aragão”. Foi tão estranho sentir ciúmes de todo aquele assédio se ele e eu não passávamos de amigos, se eu era apenas uma paciente. Nada o impedia de ser feliz em um futuro casamento, o mesmo não me devia satisfações de nada.

Apesar de ser viajado, Fábio não fazia o gênero metido, ainda que entre um recesso e outro conhecesse praticamente o mundo inteiro. Vi fotos dele em Mônaco, em Bali, no Vaticano, em Acapulco, nos Andes, no Nepal. Senti até um pouco de receio de que ele me considerasse “simples” demais. Ele tinha (como tem) um padrão de vida infinitamente maior que o meu. Viajar para a França é o mesmo que eu ir ao cinema, por exemplo.

Não desmereço em nenhum momento as minhas lembranças de mochileira, economizando bastante para me presentear com alguns dias de folga. Campo Grande, Bombinhas, Montevidéu, Buenos Aires, Salvador, Brasília, Recife. Não conheço a Europa pessoalmente ainda, mas pretendo algum dia, quando minha filha estiver crescida, leva-la comigo para as andanças no velho continente e também pelo nosso Brasil também.

Fábio Aragão era apenas o médico que me atendia, eu não deveria forçar uma aproximação, uma intimidade, não seria certo, pelo menos não ao meu julgamento. Não almejava ser apenas um número esquecido no Whatsapp dele que podia me colocar nos contatos, ainda assim não era garantia de nada, até porque não havia nada que não fosse profissional, nada que comprovasse que pudesse haver (talvez) uma amizade.  Eu estava “stalkeando” por pura curiosidade, não por maldade. Pensei em adicioná-lo, depois desconsiderei, mas ele fez a solicitação ao final daquele mesmo dia e eu aceitei.

Tudo começou com um afinado “Oi, tudo bem?”, o qual eu educadamente respondi que sim e lancei lhe a mesma pergunta.

Temia estar distorcendo a relação médico-paciente, mas me fazia bem um bocado conversar com Fábio e sabia que ele também gostava de mim, de passar muitas horas conversando, trocando ideias, confidências. Era como se nós nos conhecêssemos por uma vida inteira, muito antes daquela primeira consulta a qual eu parecia a menina Letícia quando precisava apresentar um seminário para a turma toda.

Eu estava gostando de pensar em Fábio. Era um prazer diferente, apetitoso. Eu apreciava estar com ele, aquele friozinho na barriga quando ouvia “alô” do outro lado da linha, quando eu nem me dava conta das horas porque sabia que quando elas acabassem, voltariam.

Mensagens de bom dia, boa noite, bom apetite

Sua entonação era a de um amigo muito zeloso, com quem eu podia tratar de assuntos que não dividiria com Letícia ― não por não confiar nela, mas porque ela ainda era muito nova para se envolver. Amigo esse que eu, Cuca Magalhães, estava vendo com outros olhos que não os de amiga.


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