Produção Independente escrita por Mary


Capítulo 3
3. Futuro incerto - Por Cuca


Notas iniciais do capítulo

Vou liberar mais um capítulo para que seja possível compreender o motivo da história a qual escrevi em dezembro de 2014 e reformulei entre abril e junho de 2016. Estou muito contente com a participação de uma leitora e os comentários dela me motivaram a postar.



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Era natural que um mês ou outro a natureza não fosse tão exata, mas aquele atraso fugia de qualquer protocolo. Recapitulando os acontecimentos daquelas seis semanas, a data exata era o Dia dos Namorados, ocasião em que Lia e eu convidamos alguns amigos em comum para acompanharmos a cerimônia de abertura e o jogo do Brasil em nossa casa. Entre eles, Herbert. 

Minha irmã mais nova foi contrária à ideia por crer que aquele sentimento mal resolvido pelo Herbert me mantinha presa a um empreendimento sem futuro. Todavia, naqueles tempos estávamos nos reaproximando, embora ele tenha chegado na metade do primeiro tempo e não se esforçasse nem o mínimo para socializar-se com os demais convidados da festinha. Pela hesitação, deixava claro que deveríamos manter nosso “relacionamento” em sigilo.  

Após termos vivido uma juventude bastante limitada financeiramente falando, minha irmã e eu hoje temos uma casa grande e aconchegante com muita natureza ao redor. Cada filho da Lia tem o seu dormitório, não falta comida, água, diversão, conforto e muito menos amor. O canto de trás, um incrível anexo, é meu. Tenho o cômodo que transformei em escritório onde preparo minhas aulas e estudo no andar de baixo, pois mandei construir uma escada recriando em meu quarto o ático que sempre foi um sonho pessoal. É lá que proseio com a lua nas minhas noites de insônia e viajo na leitura nos dias chuvosos.  

Ansiosa para mostrar a Herbert meus novos contos, levei-o para o escritório, apresentando-lhe o aposento reformado, com cheirinho de tinta fresca, piso de porcelanato, arrastando duas cadeiras para nos sentarmos em frente à minha mesa de trabalho, esperando que os textos o impressionassem, o que nunca acontecia. Ele não dava importância aos meus pormenores, mas estava essencialmente flertando

Mergulhar fundo nas entrelinhas me enlouquecia e eu me encontrava sempre no ponto inicial, incerta sobre aquele conhecido estranho (atentem para o paradoxo proposital) que me deixava nas nuvens e me derrubava de alturas estratosféricas no abismo da ausência. 

Naquela noite nós nos entregamos como se não fosse haver um amanhã. De fato, não houve. Nunca era prudente esperar telefonemas no dia seguinte, mensagens melosas de celular — o que geralmente se aguarda de alguém com quem se tem certo grau de intimidade —, com Herbert a incógnita maior era saber o que ele sentia enquanto estava presente, se amava ou fingia, ou se dissimulava tão bem que a indiferença fazia o papel de amor. 

Nos seguintes, nenhuma novidade. 

Lia preocupava-se com a minha choradeira e mais ainda com os sintomas nada comuns que me vinham tirando o sono. Menstruação atrasada, fortes enjoos matinais, dores de cabeça, dentre tantos outros incômodos que me induziram a comprar os afamados testes de farmácia para tirar a prova. Todos indicaram o resultado já esperado: positivo. Todavia, minha irmã mais nova me garantiu que o exame de sangue e uma visita ao ginecologista seriam bem mais esclarecedores, qualquer que fosse o resultado. 

Sou professora concursada da rede pública de ensino, pós-graduada, fluente em inglês e espanhol, com conhecimentos intermediários em francês e italiano, intérprete de Libras, sonhando ainda em realizar minha tese de mestrado. Leciono Língua Portuguesa em dois turnos na mesma escola onde me alfabetizei e me formei no Ensino Médio, portanto, a prioridade era procurar um médico que atendesse após as 18h. 

No folheto do plano de saúde, a busca rumava para um desastre, até que Lia comentou sobre o Dr. Fábio Duarte Aragão, cujo consultório ficava a quinze minutos do meu trabalho e não seria de todo fora de mão. Consegui um encaixe para o último horário daquele dia 29 de julho. 19h15. Não era novidade que eu fosse à única mulher grávida não acompanhada pelo cônjuge ou pela mãe. Não que isso me inferiorizasse perante as demais gestantes, contudo, era no mínimo inusitado. 

Ivan e Lia haviam combinado de fazer as compras do mês, programão para a criançada, que adora o passeio. Eu, portanto, estava sozinha, sozinha mesmo, pois além de mim e da recepcionista, na antessala não havia mais ninguém. A televisão encontrava-se desligada e uma pilha de revistas velhas amontoada numa mesa de centro. Eu olhava para elas fingindo achar graça naquela situação maluca, olhando as horas, o sofá de contorno, o quadro pintado a óleo por um artista de rua retratando uma cidade que não vivi para conhecer, quando um belo homem me chama pelo nome completo. 

Estando sozinha ali, sem mais, me levantei do sofá e ele muito gentilmente me cumprimentou se apresentando e encaminhando-me até sua sala, onde fechou a porta, indicando uma das duas cadeiras de couro que faziam um barulho estranho quando nos sentávamos, iniciando finalmente a consulta propriamente dita. 

Ele se chama Fábio Duarte Aragão. 

— Cuca Magalhães... — repetiu o médico, bastante assertivo e cavalheiro. Talvez tivesse um dia bastante cheio de consultas e poderia ainda ter uma noite de plantão, mas ostentava um sorriso sereno e procurava de todas as maneiras me deixar à vontade, conversando comigo como se eu já fosse uma paciente antiga, além de também demonstrar que se importava com os sintomas enquanto me sabatinava sobre menstruação, atividade sexual, dentre outras trivialidades de uma consulta comum, até chegarmos àquela hora que sempre me deixava um tanto quanto constrangida. 

O exame. 

— Vai ser tranquilo, não vai doer nada. — Prometeu ele indicando-me um biombo de vidro fosco e orientando-me. Em cima da maca havia uma camisola hospitalar descartável. 

Segui até o banheiro — super limpo, inclusive com cheiro de eucalipto — e olhando-me através do espelho que ficava em cima da pia, não pude deixar de focar meus seios levemente inchados e a pequena protuberância em meu ventre. O teste caseiro de gravidez havia confirmado as desconfianças, mas queria com toda a razão compreender o laudo do exame de sangue. 

Tudo correu bem, apesar da minha timidez sazonal, aquela que insiste em surgir em situações ditas novas e possivelmente constrangedoras. 

Depois de trocar a camisola azul clara, vesti a roupa em que estava e voltei a me sentar de frente para ele, que não deixou de me parabenizar com um sincero aperto de mão pela criança que estava a caminho. Eu estava grávida de nove semanas, ou seja, aproximadamente dois meses e meio. Considerando as expectativas de Fábio Aragão, o bebê nasceria antes de março. 

Meus olhos encheram-se de lágrimas e eu não consegui me conter diante do médico que empurrou discretamente uma caixinha com lenços de papel a fim de me tranquilizar, até porque os olhos dele vinham me chamando bastante à atenção. Eram castanhos e brilhantes, fixos na minha figura, além de ser obrigada a notar discretamente que aquele rapagão atraente não tinha aliança em nenhuma das duas mãos e tampouco porta-retrato com fotos pessoais, isso também se devia ao fato de o consultório pertencer ao pai dele em sociedade com um amigo, os três dividiam o espaço e também os pacientes, revezavam-se, pelo que entendi depois. 

Fábio atendia na parte da tarde às terças, quintas e sextas-feiras, nas segundas e quartas-feiras pela manhã, além de cumprir turnos em outros hospitais e viver viajando para assistir simpósios e congressos de medicina. 

— É seu primeiro filho, Cuca? — inquiriu ele, atencioso. 

— Sim, mas... 

Como eu poderia chegar para Fábio Aragão e dizer que o pai da criança me abandonou outra vez? 

— O pai da criança não sabe... — engoli em seco. — Ainda não sabe... 

— O papai coruja vai é ficar numa alegria só quando souber que a família vai aumentar. 

Embora não fosse da conta de ninguém, a confirmação da gravidez caiu com a mesma intensidade de uma bomba atômica sobre a minha cabeça. Eu não via o chão a um palmo do meu campo de visão. As memórias embaralharam-se. Eu não tinha para onde correr. 

— Eu realmente não estou acreditando! 

— Acredite que você está em boas mãos, Cuca. — Confortou o médico. — Vou te acompanhar do início ao fim. Apesar do medo que está sentindo, todas as suas dúvidas são aceitáveis e naturais. Vai dar tudo certo no final. 

Sorri por entre as lágrimas, procurando inutilmente manter um pouco da dignidade, mas acima de tudo desejando que fosse um alarme falso ou então que Herbert surgisse em minha porta dizendo que me amava e não queria mais viver sem mim. 

— Dê os parabéns a toda a sua família. Ela vai ficar maior no ano que vem. — Pediu Fábio Aragão dando a volta de sua mesa para me acompanhar até a recepção. Deixei marcado um retorno para dentro de três semanas, conseguindo sempre o último horário do dia, o que não era problema para o doutor, nos possibilitava um tempo maior de consulta e o estreitamento das relações entre médico e paciente. 

Ainda com a porta fechada, Fábio me surpreendeu com um abraço apertado, não aquele gesto trivial de um desconhecido, dava para perceber a compaixão dele no intento e então eu chorei um pouco. Presumo que ele tenha sido tocado pelo desespero de quem não tinha a menor ideia do que significava ser mãe ou porque talvez levantasse suspeitas de que o pai da criança não estava nem aí. 

Naquela noite Ivan colocou os pequenos para dormir, pois Lia ficou comigo no quarto. Eu me encontrava num estado tão lastimável que não teria condições físicas de dar aulas no dia seguinte, mas precisava juntar forças para não abandonar meus afazeres e demonstrar fraqueza quando mais precisava ser forte. 

Herbert nunca mais voltaria. A razão era simples até para um leigo: o motivo de ser bloqueada devia-se ao fato de estar casado com Marinete Montes. Não estou certa da melhor maneira de classificá-la, se como inimiga ou apenas uma idiota que finge ser amiga para não deixar tão óbvia a competição que desde os tempos de faculdade trava comigo. Que ela sempre quis tudo o que é meu, não tenho dúvidas, desde pulseiras a pretendentes. 

A utopia de consumar infinitamente o amor mal resolvido de juventude se esfarelou em minhas mãos. A revelação não alteraria em nada o rumo dos fatos. Se nada deu certo entre nós quando havia possibilidades concretas e palpáveis, insistir numa ilusão apenas me enfraqueceria.

Eu seria mãe solo. Sim, eu seria, sem escape. No entanto, não poderia esconder a gestação por muito tempo. 


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