Produção Independente escrita por Mary


Capítulo 13
13. Reencontro indesejável - Por Cuca




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Logo que a escola retornou do recesso de final do ano formalizei a licença-maternidade, em vigor até o mês de julho. Minha substituta durante este período seria logo a Marinete Montes, esposa de Herbert e ex-colega de classe na faculdade. 

Para os alunos habituados com a minha didática seria um baque e tanto, uma vez que Marinete é aquela típica professora tirana de jalecos que detesta ser contestada, não aceita ideias diferentes e espera que todos os seus estudantes apenas fiquem calados ouvindo-a.

Esperava, com otimismo, que corresse tudo bem ao longo daquele semestre.

Na última sexta-feira de janeiro recebi um telefonema da secretária de Fábio avisando que a consulta marcada para o dia três de fevereiro não seria com ele que me transferiu para ser atendida pelo amigo dele, o Dr. Leonardo que apesar de ser igualmente prestativo e estar a par do meu prontuário, me deixou com grilos na cabeça.

Fábio visitava meu blog de ataques artísticos, curtia as minhas publicações no facebook, sem entrar em detalhes do que ocorreu e menos ainda eu tinha coragem de peitá-lo. Estávamos, portanto, dentro de um impasse. Diante da Lia não esbocei tristeza, mas chorei bastante à noite. Chorei como se fosse aquela adolescente que se apaixonou platonicamente pelo professor de Português e ele saiu da escola sem dar satisfações.

Minha irmã, entretanto, não deixou aquele fato passar despercebido e quis satisfações:

— Cuca, tem alguma coisa te incomodando? — inquiriu ela quando estávamos na cozinha antes de as crianças serem chamadas para o jantar.

— Por que a pergunta?

Lia me ofereceu um copo com suco de couve que segundo ela era uma maravilha para a saúde.

— Você voltou tão diferente da consulta.

— Fábio não é mais meu médico. — contei.

— Ah! Agora está explicada a deprê, mas vem cá, irmã: vai ficar no 0x0 até quando? Não acha que deveria se declarar pra ele de uma vez por todas e tirar esse peso do peito?

— Com quase nove meses de gravidez?

— Pelo menos se não for o que você pensa, é bom pra desencanar. Às vezes é até bom desencantar. Vida que segue. Ruim é ficar com dúvidas.

— Preciso pensar.

— Isso quer dizer que você gosta.

— Lógico que eu gosto dele, Lia. Eu amo o Fábio, mas o que ele veria em mim?

— O que ele já viu: que você é uma mulher fantástica.

Pouco depois do Carnaval, Fábio embarcou para Lima, no Peru, para participar de um simpósio importantíssimo. Se porventura minha filha viesse ao mundo dentro daqueles dias, o meu parto ou seria feito pelo Dr. Leonardo Palhares que apesar do jeitinho soberbo e irônico inspirava confiança, ou pelo renomado e prestigiado Dr. Francisco Aragão, um obstetra que devia ter feito ao longo da carreira mais de dez mil partos, numa estimativa aproximada para mais ou para menos, o que não importa.

O filho caçula, o único que mostrou gosto pela especialidade do pai, já tinha uma reputação respeitável naquele meio. Não mentirei que não fiquei desapontada por não ter o meu amado ao meu lado naquele momento importante, porque fiquei. E muito.

Às vezes eu temia não dar conta dessa responsabilidade e tinha inúmeros pesadelos com o parto, embora soubesse que essa insegurança era inerente a uma mãe de primeira viagem que alimentava dezenas de expectativas e preocupações, no entanto tendo a sorte de poder contar com os conselhos de Lia que foi mãe bem mais jovem e é alguém que eu muito admiro. Nunca pensei que o papagaio punk depenado seria a mamãe coruja, zelosa que só, leoa quando alguém os fere; melosa quando quer.

Quando a Nathália falou “mamãe” pela primeira vez, Lia chorou e beijou-a repetidas vezes nas bochechas, solicitando para que repetisse, gravando o áudio no celular a fim de que Ivan escutasse quando voltasse para casa depois do trabalho.

Quando Benício finalmente aprendeu a engatinhar, ela estava gravando um vídeo da Nathy dançando e registrou um feito que ficará para a posteridade. Ele apoiando uma perninha, depois a outra, batendo com o bumbum no chão acarpetado, depois tentando de novo, até, por fim, se equilibrar e sair andando.

Quando Jacques desenhou a família toda com giz de cera em uma folha de papel sulfite, o desenho ficou pregado na porta da geladeira por meses.

As aulas dos pequenos retornaram no dia 02 de fevereiro. Nathália estava indo para o quarto ano do Ensino Fundamental, Benício para o segundo ano e Jacques ainda brincava muito no jardim de infância, certo de ser o xodó da casa.

Meu telefone soou. Na tela, um número privado. Por recomendação eu não deveria atender, mas a pessoa em questão era insistente e tentou pelo menos outras três vezes.

― Cuca, meu amor...

Era a voz grossa e nasalada do Herbert.

― Oi, Herbert. ― Pela minha entonação era bem possível de saber que eu não gostei muito daquela surpresa. Ou melhor, não gostei nem um pouco. Definitivamente, como dizem os conectados, descurti. Desde que nos conhecíamos, nunca me lembro de vê-lo ficar com um mesmo número de telefone por muito tempo.

― Não está me reconhecendo, querida? ― insistiu ele como se eu tivesse simplesmente “parado” a minha vida durante o período em que ficou ausente.

― Não pensei que fosse você. ― respondi demonstrando que a surpresa não foi agradável.

― Estou incomodando, é isso?

― Não diria que você está incomodando, mas não estava esperando que você fosse me telefonar.

― Não se trata de uma surpresa boa, meu bem?

― Por gentileza, não me chame de meu bem, pois eu não sou. ― Eu não gosto de ser ríspida, mas se por anos eu esperava ser chamada de meu bem, não me interessava mais àquela ladainha de fazer amor com ele numa noite e depois passar o restante dos meses remontando as peças daquele quebra-cabeça sombrio e insondável.

― Cuca, você está legal?

Herbert era assim, gostava de conquistar pelas beiradas, de dizer o que se gostaria de ouvir, só não sei se ele dizia por sentir ou apenas para movimentar os lábios e soar convincente, conquistador, o tipo que toda mulher sonha. No início, talvez. Quando você é inocente a ponto de acreditar que é a única. Depois, passa. Como a chuva de verão. Passa. E o que fica de saldo é a devastação.

― Você não me parece bem.

Em outra ocasião eu iria aceitar o horário daquele encontro, não chegar com antecedência porque ele sempre estava atrasado.

― Herbert, eu realmente não posso falar agora. ― O Dr. Leonardo recomendou-me fugir de emoções muito fortes, pois poderiam elevar a minha pressão arterial e prejudicar o bebê.

― Eu insisto, Cuca, preciso falar com você. ― repetiu ele usando aquele tom de voz cínico, de quem queria passar por vítima da situação. Aposto como nem desconfiava de que a filha que eu carregava no ventre fosse dele.

― Eu não tenho nada pra falar com você.

― Diga-me isso pessoalmente.

― Já disse que não quero, Herbert. Não quero mais ver você.

― Você vai me dizer isso pessoalmente.

― Eu realmente preciso desligar. Desculpe-me, mas não tenho mais nada a tratar com você.

Ele não aceitou a resposta negativa e definitiva. Herbert era um conformista condicional. Naquele caso, com certeza, o meu não era um desrespeito ao seu ego.

Lia nunca gostou que eu saísse sem avisar. Se sem um bebê na barriga ela já ficava uma fera quando eu não dizia para onde ia, imagine eu grávida de praticamente nove meses saindo para conversar com o pai da criança que só serviu mesmo para me fertilizar porque bem dizendo não teve nenhuma contribuição, não telefonou nenhuma vez ao longo daqueles meses, não participou de cada fase que eu dividia com aquela criança, nunca ouviu o coração dela bater, nem sentiu os chutes que ela me dava de vez em quando para avisar que estava bem.

Herbert nunca fez parte da minha vida.

Eu sempre gostei da ideia de gostar dele, de me enganar acreditando que ele era quem eu sempre sonhei em encontrar. Eu gostava de não ter um relacionamento sério e ao mesmo tempo ter alguém ao meu lado, no entanto nunca estivemos na mesma sintonia. Nunca fomos “compatíveis”. Eu seria sempre sua última opção, nunca a primeira, nunca a única.

Ele gosta somente do início do namoro, da época das máscaras, do encantamento, da conquista em si, fugindo quando as mulheres mostram quem são, assumem os medos, destravam o choro, as fantasias.

Herbert é o tipo que diz que ama sem nem sequer saber o que é amar.

Quantas vezes pensamos que amamos e apenas estamos agarrados à ideia de amar alguém?

Não os julgo se assim proceder. Estaria, sobretudo, julgando a mim mesma. Como bem sabem, passei a minha vida inteira fazendo isso.

Antes de ver Herbert pousando sua jaqueta jeans na cadeira ao lado da minha na praça de alimentação do shopping (só aquele cheiro de comida me deixava nauseada, tudo ultimamente vinha me deixando cansada e enjoada) pude olhar dentro de seus olhos e confirmar que ele não existia mais no meu coração.

― Oi, meu docinho. Quanto tempo! ― Ele aproximou seu corpo do meu e tentou me beijar, mas eu me afastei, recusando qualquer tipo de carícia. Estava sem a aliança de casado.

― Olá! ― cumprimentei áspera.

― Fico feliz que você não tenha me dado um bolo. ― brincou ele e eu não esbocei nem mesmo um sorriso falso. Apenas olhei para o porta-guardanapo.

― Pensei seriamente em dar.

Ele finalmente percebeu a protuberância na barriga quando me sentei com muita dificuldade.

― Nossa! Cuca, por que não me contou? — exclamou o canalha.

― Você não quis saber.

― Você nem me contou. ― Ele não sabia o que dizer. ― É menino ou menina?

― Menina. ― redargui.

― Eu adoraria ter um menino. ― Ele suspirou, procurando alguma coisa para prolongar a conversa. O silêncio naquele instante somente acentuaria o já decretado impasse entre nós, impasse esse que sempre foi atenuado pelas minhas desculpas bobas para a falta de comprometimento dele. Ia ficando claro que nós nunca daríamos certo.

― Eu adoraria ter uma menina. E terei.

― E o pai dela já sabe?

― O pai dela está à minha frente.

Ele devolveu o copo de chope à mesa. Mostrou-se transtornado, incrédulo, olhando para mim como se eu tivesse narrado à piada mais malcriada do século.

― Você está grávida?

― Usando um travesseiro debaixo da roupa é que eu não estou.

― Sempre irônica, Cuca. Sempre com uma resposta afiada debaixo da língua.

― O que você quer comigo, Herbert?

― Eu estava com saudades.

— Saudade? Saudade do quê?

― Da gente. Sei lá, bateu uma saudade.

― Eu não tenho saudades, não vivi nada de verdade com você para ter saudade!

― Eu fiz alguma coisa que te magoou, Cuca?

― Não custa fazer uma análise com a sua consciência, meu caro.

― Hei! Eu sou o pai dessa criança? ― Indagou Herbert ainda querendo que crer que eu estava pregando-lhe uma peça ou coisa do tipo, achando até que eu iria tirar de dentro da barriga uma almofada enorme, apontar com o dedo indicador em riste para o seu rosto e cair na gargalhada.

― Fertilizar é uma coisa, ser pai é outra.

― Você me pegou num mau momento, Cuca. ― Herbert coçou a cabeça. ― Marinete também está grávida.

― Que bom pra vocês. ― aquiesci com ironia. Não era a primeira vez que Marinete ficava com algum affair meu e se sentia superior por supostamente me vencer na competição imaginária enquanto na esfera profissional, sem querer me gabar, eu estava mil anos-luz à frente dela, conquistando tudo pelos meus próprios méritos, sem precisar ser “a mulher de ninguém” para acontecer. Isso me orgulhava mais do que uma aliança de ouro no dedo anular da mão esquerda.

Meu valor não está, nunca esteve e nem estará num pedaço de metal.

― Eu não posso deixa-la sozinha num momento como esse, ainda mais ela.

Se eu pensava que Herbert não podia me surpreender com incoerência, vinha aquele balde de estrume na minha cabeça.

― Eu pensei muito em desmarcar esse encontro temendo que o fato de me ver despertasse algum tipo de magia em você... ― prosseguiu Herbert com um cinismo tão grande que o ranger de dentes era uma consequência irremediável para não apanhar a caneca de chope e despejar o conteúdo naquele focinho desgraçado.

― Magia? Que magia? ― franzi as sobrancelhas indignada com tamanha pretensão. Do modo como ele se articulava, como se alguém estivesse o observando, daria a impressão de que eu era uma perseguidora que engravidou de propósito e estava tentando destruir o casamento dele com a Marinete por pura diversão.

― Cuca, eu não posso assumir a sua filha. Eu disse sim pra uma, não posso dizer pra duas. ― defendeu-se Herbert como se eu fosse implorar de joelhos no piso de linóleo do shopping para ele registrar minha filha no cartório e pagar uma pensão mensal com má vontade. ― Não posso te prometer nada.

― Eu não pedi sua ajuda, pedi? ― estrilei contendo a vontade de dar um soco merecido naquele pilantra.

Herbert emudeceu.

― Eu tenho condições de criar a minha filha sozinha. Eu não quero sua esmola. Minha filha não vai precisar de você, como eu nunca precisei.

― Por que tanta arrogância? ― Cismou o pai de fachada, que não soube da existência da filha e nunca demonstrou interesse na mãe dela.

― O que você chama de arrogância eu entendo por dignidade.

Herbert não me perguntou nem por educação como passei aqueles meses, quais eram minhas expectativas em relação à maternidade, só falou sobre si mesmo revestindo-se daquele ar enigmático e soberbo que antes me instigava, mas não me convencia mais de nada.

Eu o enxergava como ele realmente era: um otário.

― Herbert, eu não creio que seja saudável que continuemos nos encontrando. Não quero problemas com a Marinete.

— Eu não amo a Marinete. ― emendou Herbert.

— Não importa. Assuma as suas escolhas.

― E por que esse destempero?

― Eu não entendi por que você me chamou aqui se nós não temos mais nada a tratar.

― Você já tem outra pessoa? ― quis saber Herbert.

Aquela Cuca que suportava os sumiços de Herbert e se abria totalmente para aquele homem que dava a impressão de ter uma pedra gelada batendo no peito em vez de um coração não existia mais.

― Desculpe-me, eu te aguardei tanto que com certeza ignorei que poderia ser amada por alguém de verdade.

― E quem é esse alguém? ― Herbert levantou a voz, chateado, revoltado, querendo todas e quaisquer explicações que eu pudesse fornecer-lhe.

― Não te interessa! ― declarei.

― É claro que você tem alguém, Cuca. Eu sei que você ama outro. ― Ele bateu com os punhos contra a mesa e aquilo me apavorou. ― Os seus olhos dizem isso, têm um brilho que eu desconhecia antes, como se alguém tivesse penetrado no seu âmago e te virado do avesso. Você não me deixaria sozinho no mundo se já não tivesse outro alvo.

― E se estiver gostando de outro, o que te interessa? Eu não tenho o direito?

― Você não pode fazer isso comigo, Cuca. Não pode me abandonar.

― Qual é a sua, homem? Você tem noção da contradição do seu discurso? Num instante você me diz em alto e bom som que não pode me prometer nada, no outro entra em desespero porque eu quero me afastar. Entre num consenso, por gentileza!

― Eu não posso deixar você ir. Você sabe que eu te amo como uma irmã. Não ficaremos juntos por causa do destino, mas...

― Não ficaremos juntos porque eu não quero.

― Eu achava que você queria. ― estranhou ele.

Não me dei ao trabalho de responder.

― Entenda que o destino...

― Pare de culpar o “destino” pela sua falta de honradez e atitude.

― Se as coisas fossem diferentes...

― Mesmo que não fossem...

Herbert bebeu o restante da segunda caneca de chope e apoiou o copo no tampão da mesa com um ódio que me apavorou:

― Eu passei boa parte da minha juventude esperando você perceber que eu sempre estive ao seu lado. Você nunca se importou com os meus sentimentos, nunca teve medo de me magoar, de me fazer de gato e sapato, sempre se prevalecendo de que eu estaria solícita quando chamada. Por que agora o desespero? É medo de perder o que não teve? É egoísmo de querer aprisionar a felicidade que você não me pode proporcionar porque mesmo se pudesse não o faria?

― Eu não posso te perder ― suplicou Herbert.

― Ninguém perde o que não tem, Herbert. Cuide do que é seu.

Apanhei minha bolsa que estava pendurada na cadeira e me levantei:

― Espero que você encontre-se algum dia, Herbert. Adeus!

Herbert, inconformado, me seguiu querendo mais explicações, mas eu consegui me enfiar dentre outras pessoas e o despistei, sentindo apesar dos tremores de raiva, um alívio divino.


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Notas finais do capítulo

O certificado de babaca vai para... Herbert!
Que mulher não conheceu um Herbert na vida?



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