Coração de Soldado escrita por Sill Carvalho, Sill


Capítulo 4
Capítulo 04 – Inesperado


Notas iniciais do capítulo

Ruuh, meu amor, muito obrigada pela recomendação. Eu adorei! Espero que goste do capítulo ;)

Obrigada também a quem comentou no capítulo anterior.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/718737/chapter/4

Na segunda-feira pela manhã, Rosalie levantou cedo como de costume, preparou o café para as crianças e as ajudou ficarem prontas para irem à escola.

Foi ao quarto de Emmett e bateu na porta. Ele mandou que entrasse, mas, recusou o convite para tomar café em família. Ela não questionou. Voltou à cozinha e se encarregou de servir as crianças antes que o ônibus chegasse para apanhá-las.

Assim que as crianças partiram no ônibus escolar, Rosalie voltou dentro de casa para pegar as chaves do carro e se despedir de Emmett. Como ele não fazia questão de sua companhia continuava abrindo a floricultura todos os dias, até o horário das crianças voltarem para casa.

Novamente se pegou desejando ter de volta o homem que ele foi antes de partir em missão.

Emmett sequer lhe deu tchau, quando, na verdade, estava à espera de um beijo.

Ele ficou na janela apenas olhando-a partir. Como se nunca houvesse sido o grande amor de sua vida.

Magoada, naquele dia Rosalie não voltou para almoçar em casa com ele. Não sentia fome, nem estava com disposição para ser destrata pelo homem que ama mais uma vez. Só pediu que o restaurante mandasse entregar o almoço dele em casa.

Por isso, Emmett estava sozinho quando a campainha tocou por volta das treze horas.

Caminhou mancando até a janela, e viu que era de seu restaurante favorito. De repente se deu conta de que todos na cidade tinham conhecimento de seu acidente. Tudo sobre ele estava nos jornais.

Pensou em ignorar. Estava farto de olhares de pena. O entregador, porém, parecia insistente.

Emmett, então, atravessou a sala com um caminhar cadenciado e manco por conta da prótese temporária. Que ele achava uma grande droga. Ele a odiava.

Recebeu a comida sem mencionar uma só palavra. E quando o entregador magricela, de sardas no rosto, quis saber mais do acidente, bateu com a porta na cara dele.

Retornou à cozinha mancando e deixou a sacola com a comida em cima do balcão. Aquela altura já estava claro que Rosalie não viria para o almoço. Apesar de o modo como vinha agindo com todos, e de querer se isolar desde que voltou, ficou irritado por não ter sido capaz de avisar que não viria almoçar em casa.

Voltou à sala, e, pela janela de vidro junto ao console, notou a bandeira dos Estados Unidos tremulando no mastro no jardim. Sempre se orgulhou de sua pátria. De fazer parte do Exército e da Guarda Nacional. Amava estar nas alturas. Pilotar um Black Hawk. Mas agora, com uma perna a menos, tudo parecia ter chegado ao fim.

Sem fazer aquilo de que mais gostava como conseguiria enxergar a vida com olhos de esperança? Pilotar era parte da pessoa a quem a ele era.

Em meio a tantas fotografias em porta-retratos organizados no console, desceu o olhar até uma delas, onde aparecia uniformizado com roupas camufladas e botas cor de areia. A mochila militar nas costas. Ele estava no hangar, algumas aeronaves apareciam ao fundo. Aqueles tinham sido os melhores anos de sua vida.

Foi então que localizou, logo à direita, a fotografia onde apareciam os quatro juntos, sorrindo. Tinham sido tão felizes. Não conseguia entender porque tudo agora parecia fazer parte de outra vida. Por que não conseguia sorrir para os filhos, nem amá-la como tanto amou.

Olhar o sorriso deles naquela fotografia, e perceber que isso havia ficado para trás, lhe causou uma dor profunda. A revolta foi esperada. Lembrou-se que tudo havia acabado para ele. Nunca mais seria a mesma pessoa. Sua carreira estava arruinada. O porta-retratos caiu de suas mãos e ao atingir o chão o vidro trincou em varias direções.

Voltou ao quarto e pegou uma nova garrafa de vinho dentro da gaveta da mesa do antigo escritório estrategicamente sob uma pilha de papeis. Arrancou a rolha e bebeu direto do gargalo.

Sentou-se na cama. Retirou a prótese, sentindo um grande alívio no coto ao diminuir a pressão.

Tomou mais um gole de vinho, depois outro, e assim sucessivamente até que a garrafa ficou completamente vazia.

Na floricultura, Rosalie se encontrava com o telefone na mão, de pé atrás do balcão de atendimento, pensando em ligar para falar com o psiquiatra indicado pelo pai. Saber o que ele tinha a dizer a respeito e como convencer Emmett aceitar sua ajuda.

Foi pensando na família, que vinha desmoronando junto com ele, que tomou a decisão de fazer aquela ligação.

Após um instante aguardando na linha, Rosalie conseguiu, finalmente, falar com ele.

Fez um breve resumo da vida de Emmett antes e depois da guerra. Deixando claro que seu marido era um veterano, ferido em combate.

— Se ele tem tido flashbacks. Pesadelos, ou até mesmo insônia, e está bebendo para mascarar os sintomas, presumo que seja um grande problema. O álcool poderá levá-lo a reações extremas.

— Há alguma explicação para a maneira como vem agindo? – Rosalie tentou.

— O que seu marido tem se chama estresse pós-traumático TEPT. Um transtorno psiquiátrico reconhecido. Ele já existia muito antes de inventarem um nome clínico vistoso para ele. Veja bem, na Guerra Civil, se chamava “coração de soldado”, e eu acredito que é a descrição mais perfeita. Na Primeira Guerra Mundial, se chamava “choque de bomba” e, à época da Segunda Guerra, “fadiga de combate”. Em outras palavras: a guerra transforma todo soldado, mas em alguns deles deixa danos profundos. Seu marido deve e precisa buscar ajuda. Posso oferecer a ele essa ajuda, mas, ele tem de querer ser ajudado. É uma decisão que somente ele pode tomar.

Rosalie desligou o telefone garantindo a si mesma que daria um jeito de Emmett aceitar que precisava de ajuda.

Às quinze horas em ponto, fechou a floricultura e foi para casa receber as crianças. Já que não podia contar com Emmett para essa tarefa desde que voltou do Iraque.

Entrou no carro e dirigiu até em casa, pensando na conversa que tivera com o médico por telefone. Subiu com o carro na entrada de veículos e desligou o motor. Recolheu a bolsa no banco do carona e saltou do veículo. Enquanto ajeitava a bolsa no ombro, fechou a porta com ajuda do quadril.

A senhora de cabelos brancos que morava na casa no outro lado da rua, acenou para ela do jardim. Usava um grande chapéu de palha com um laço de fita azul, avental e luvas de jardinagem.

Rosalie recolheu as chaves no interior bagunçado da bolsa, abrindo a porta em seguida. No mesmo instante, avistou o porta-retratos no chão com o vidro quebrado. Fechou a porta para somente então se agachar e recolher o objeto de decoração danificado. Lamentou apenas.

Deixou a bolsa no sofá e se dirigiu à cozinha. A embalagem do restaurante ainda estava lá, em cima do balcão, do mesmo jeito. Ele não havia sequer beliscado nada do que foi entregue. De algum modo, isso fez com que se sentisse mal, por não ter aparecido para almoçar com ele ou até mesmo ter avisado que não apareceria.

Retornou à sala e seguiu até o quarto novo. Batendo na porta, chamou pelo nome dele antes de abrir. Encontrou a cena que vinha se repetindo nos últimos dias; o marido caído na cama com uma garrafa de vinho vazia grudada na mão.

— Droga, Emmett! – resmungou, cruzando o quarto para retirar a garrafa das mãos dele. Uma vez com a garrafa na mão, quis estender a outra para acariciar o rosto do marido. As marcas fracas dos machucados, a barba que em outros tempos tinha gostado tanto de acariciar e de senti-la roçar sua pele. – Não faça isso com você mesmo... – sussurrou. – Não faça isso com a gente. – Antes que pudesse contê-las, lágrimas arderam em seus olhos e rolaram em suas bochechas. – Me deixe te ajudar... Não desista assim de nosso casamento. Não desista da gente.

Nesse momento percebeu o barulho do ônibus escolar se aproximando na rua. Saiu do quarto. A garrafa vazia, ela levou consigo e deixou na cozinha, na lata de lixo, antes de ir receber as crianças.

Da porta, viu Matthew ajudar a irmã saltar do ônibus. Ambos sorriram ao percebê-la na porta de casa. Porém, à medida que se aproximavam, seus sorrisos enfraqueciam. Isso doeu no coração de Rosalie profundamente. Eles haviam se transformado numa família triste, transformada pela guerra.

Tentou parecer animada, mas era uma tarefa difícil.

— Como foi na escola? – pediu aos filhos, olhando em seus rostinhos, num misto de ansiedade e preocupação.

Lizzie prontamente pediu colo.

— Uma chatice – resmungou Matthew, passando por ela, com a mochila pesada nas costas.

— Matthew...

— Eu sei: tomar banho e fazer a lição de casa – Matthew continuou andando enquanto respondia a mãe. De repente, parou na metade da escada. – Mamãe?

— Oi, amor?

— Onde ele está?

— Fale, papai, Matthew.

— É. Tanto faz.

— Tanto faz, não. Ele é seu pai.

O garoto rolou os olhos.

— O papai. Onde está ele agora?

— Dormindo.

— Ele tomou remédio para dormir ou bebeu novamente?

— Eu não sei, acho que foi o remédio – embora soubesse que não deveria encobri-lo, fez isso pelo filho.

— Eu acho que ele bebeu e você não quer me dizer – e então Matthew terminou de subir as escadas correndo, trancando-se no quarto em seguida. Quando a porta bateu, Rosalie apertou os olhos, desejando que Emmett não percebesse. Claro que ele não percebera, estava bêbado demais para isso. Ficou arrasada com a constatação. Ao olhar para Lizzie, percebeu que a menina a observava, por isso se esforçou para demonstrar estar bem. Abriu um sorriso forçado e fez a pergunta que a filha adorava ouvir.

— Quer tomar banho de banheira com a mamãe?

— Ahã – murmurou a menina, sem o entusiasmo que Rose estava costumada a ver.

Segurou na mãozinha dela, após colocá-la de pé no chão.

— Ótimo! Nós podemos fazer bastante espuma... – dizia enquanto subiam as escadas juntas.

Mais tarde, durante o jantar, ficaram no mais absoluto silêncio. O único som era dos talheres batendo na louça e os ruídos da mastigação. Sentindo a ausência dolorosa de Emmett em seu lugar à mesma.

Lizzie estava tão triste que durante o jantar foi sentar-se no colo da mãe, levando seu pratinho de comida junto. Rosalie deixou que terminasse a janta sentada em seu colo sem qualquer objeção.

Antes de irem para suas camas, deixou que assistem um pouco de tevê na sala.

Tinha ido por duas vezes ver como Emmett estava, mas, ele não havia se movido. Pelo menos estava respirando, constatou aliviada.

[...]

Durante a madrugada, pesadelos atormentaram o sono de Emmett.

Estava novamente no Iraque. Tiros de morteiros cruzavam o céu explodindo a direita de onde estava destruindo uma parede de cimento. Muita fumaça vindo na direção dele e dos companheiros.

Houve uma mudança de cenário, ele estava no momento da queda. A fuselagem do Black Hawk foi atingida por disparos, e então uma granada. A força do impacto fez com que fosse jogado para o lado. O pé foi atirado com força para cima. Ele chutou o painel de instrumentos. A cabine se encheu de fumaça. Labaredas tomaram conta da parte de trás da aeronave. Emmett sentiu o calor. Chamou sua equipe, mas não obteve respostas. Agarrou o manche e tentou manter o helicóptero no ar, mas estavam caindo, despencando, a 230 quilômetros por hora. O motor número dois enlouqueceu; o painel de instrumentos apagou. Nada. Nem mesmo a temperatura dos motores.

Chamou mais uma vez a tripulação e os alertou para que se preparassem para o impacto. Então tentou passar sua posição para a torre, mas a fumaça estava tão intensa que não permitia respirar.

“Mayday”, foi tudo o que disse antes de cair.

E essa frase estava novamente deixando seus lábios, com o mesmo desespero.

Estava de olhos fechados, rastejando na cama, revivendo o desespero de um soldado atingido. Antevendo o final para ele e seus companheiros.

— Mayday! Mayday!

No andar de cima, Rosalie despertou com os gritos dele. Desceu as escadas correndo, vestida de pijama, com os pés descalços. Empurrou a porta do quarto dele com a mão e, ao vê-lo naquele estado de pavor e dor, os olhos fechados, apressou-se em ir para o lado dele.

Pensando na única coisa que poderia fazer para ajudar, o segurou pelos ombros, mantendo-o na cama, impedindo que fosse parrar no chão. Só não contava com o como reagiu.

Preso àquele pesadelo tão real agarrou no pescoço dela com a mão. No primeiro instante, Rosalie gritou. Então, se esforçando para se livrar do aperto da mão dele em sua garganta, se debateu. Ficou apavorada. Não estava conseguindo respirar direito.

Houve uma agitação no andar de cima, embora não tenha notado. Em pouco tempo as crianças surgiram na porta do quarto que deixara aberta.

Emmett abriu os olhos, porém, desfocados, com a mão na garganta dela.

O grito de pavor das crianças a tingiu feito um balde de água fria, aumentando ainda mais seu desespero. Elas não deveriam estar ali. Não deveriam estar vendo tal cena.

Lizzie, muito rápido começou a chorar. Matthew gritou tão forte para o pai parar que sua garganta até doeu.

— Solta ela! Solta ela!

A irmã mais nova gritava, horrorizada. Seu grito fino chegava a doer nos ouvidos.

Emmett voltou a si, soltando do pescoço de Rose rapidamente como se sua mão estivesse tocando em brasas. Ele tremia consideravelmente.

O garoto continuava gritando.

— Solta ela! Solta ela, papai!

— Mamãe. Papai... – Lizzie chamou num estado de choque.

Rosalie ficou largada no colchão, tossindo muito. O ar ardendo nas vias respiratórias. Foi então que Emmett percebeu a merda que tinha acabado de fazer. Ele olhou para os filhos, ambos com olhos arregalados. Depois a esposa, incapaz de sair do lugar, lutando para respirar normalmente.

— O que foi que eu fiz?... – falou consigo mesmo.

Levou um minuto para Rosalie sair da cama e ir ao encontro dos filhos, trôpega. Lizzie e o irmão se agarram a ela ainda na porta do quarto.

— Eu estou com medo, mamãe – a menina confessou. – Eu tô com medo. Eu tô com medo – Lizzie soluçava e tremia.

Ainda fragilizada, Rosalie se curvou e a pegou no colo. Agarrou na mão de Matthew e o puxou para fora do quarto com ela.

Matthew deu uma última olhada para trás.

— Qual o seu problema? – exigiu que o pai dissesse. – Você está maluco?

Envergonhado, abalado, Emmett encobriu o rosto com as mãos. E foi questão de tempo para que estivesse entregue as lágrimas. Pensando no que acabara de acontecer. Nas palavras ditas pelo filho de dez anos de idade, cujo último aniversário não estava presente. No medo que todos eles sentiram. No desespero estampado no rosto da mulher que sempre amou. Na confissão aterrorizada de sua garotinha.

Subindo as escadas, Rosalie pediu que Matthew parasse de dizer todas aquelas coisas ao pai.

— Eu tô com medo, mamãe – Lizzie voltou a dizer.

— Eu sei meu anjo. Eu sei...

— Eu quero dormir com você. Não quero ficar sozinha.

— Tudo bem. A mamãe também não quer ficar sozinha. Os dois vão dormir comigo – reforçou.

Assim que entraram no quarto, Rosalie deixou Lizzie na cama e foi até o banheiro ver como estava a região do pescoço. Manchas azuladas marcavam a pele clara. Tinha certeza de que pela manhã estaria bem pior, possivelmente, enegrecido.

Enfiou as mãos embaixo da torneira de água fria e as levou ao pescoço algumas vezes para resfriar a região. Secou. No armário encontrou anti-inflamatório em spray, e aplicou sem pena no local da agressão. Retornou ao quarto e deitou-se ao lado dos filhos, na cama do casal.

Matthew estendeu a mão, roçando os dedos no pescoço dela.

— Isso vai ficar feio – avaliou. – As pessoas vão notar. Vão fazer perguntas.

— Eu ponho alguma coisa por cima. Um cachecol. Uma blusa de gola alta.

— É primavera, as pessoas vão achar estranho.

— Um lenço?

— É. – Matthew concordou. Então ficou em silêncio. Quando voltou a falar foi para perguntar: – Por que ele fez isso?

— Ele não estava em seu estado real quando fez isso, Matthew.

— Aquele não era o papai. O papai nunca machucaria você.

Lizzie ainda chorava encostada a mãe. Ergueu a mão gordinha até que encostasse ao pescoço de Rosalie e fez um carinho.

— Mas ele parece o papai – falou em toda sua inocência.

Matthew sacudiu a cabeça.

— Papai nunca voltou da guerra.

— Não – Rosalie concordou com o menino. – Mas nós precisamos ser pacientes e dar a ele todo o amor que precisa. Somente assim, o papai encontrará o caminho de volta pra casa.

— Ele podia ter feito que nem João e Maria da história. Deveria ter deixado pedacinhos de pão como trilha – Lizzie lembrou. Rosalie se inclinou, ignorando a dor no pescoço, para poder beijar na testa da filha.

— Os animais comeram a trilha, sua boba – o irmão criou caso. Lizzie ficou ainda mais triste.

— Se estivermos sempre juntos, os quatro, o papai vai encontrar o caminho de volta – Rose voltou a falar. – Não vamos desistir dele.

— Mas e se ele já desistiu da gente?

— Ah, Matthew... – Rose lamentou. Lágrimas de tristeza molharam suas bochechas.

— Desculpe mamãe – o menino pediu. E, carinhosamente, beijou na bochecha da mãe. Ao se aconchegar ao travesseiro admitiu: – Eu fiquei muito assustado.

— Eu sei... – Rose acariciou o rosto dele. Depois o de Lizzie. – Vamos apenas tentar dormir.

Lizzie apertou a mantinha lilás entre ela e a mãe.

— Só vamos tentar dormir... – Rose tornou a falar, agora sua voz não passava de um murmúrio, esgotada.

Aquela tinha sido uma noite a qual demorariam a esquecer. Se é que algum dia isso aconteceria.

Rosalie só esperava que um dia Emmett conseguisse voltar para casa, de corpo, alma, mente e coração. E pudessem voltar a ser a família amorosa que foram um dia.

No térreo, Emmett saiu da cama, pulando na perna que lhe restava, apoiando-se nos móveis. Emocionalmente destruído. Aproximou-se das escadas, olhando para o alto dela, pensando na esposa e nos filhos.

Antes da permanência no Iraque, nunca os tinha magoado. Agora não só os magoava o tempo todo como tinha feito com que sentissem medo. Que tipo de pessoa havia se tornado?! Estava se distanciando do marido e pai amoroso que fora um dia.

Pela primeira vez desde que voltou, desejou pedir desculpas a eles por sua atitude. Ainda que a última reação não fosse algo do qual tivesse consciência de estar fazendo. E quando o teve, parou imediatamente.

Agarrou-se ao corrimão, se esforçando para subir dois degraus ainda que pulando. Cambaleou para cair e rapidamente se agarrou a barra lateral. Humilhado, acabou desistindo de tentar. Teria sido um esforço hercúleo chegar lá em cima da maneira que pretendia.

A que ponto sua vida havia chegado. E pensar que em outro momento havia subido aquela mesma escada tantas vezes. Em algumas ocasiões, carregando a esposa nos braços, rindo e surrando. Em outras, os próprios filhos sorridentes e barulhentos. Agora mal conseguia subir dois insignificantes degraus sem parecer ridículo. Porque era assim que se via agora.

Saltitou até o sofá onde se sentou, cansado como há muito não ficava. A meia-luz de um abajur permaneceu ali, vendo o dia amanhecer através do vidro da janela, onde ficava encostado o console com as fotografias da família.

O olhar distante, pensando em nada e em tudo. Cansado o bastante, porém, sem conseguir dormir. As mãos grandes, marcadas por alguns aranhões, descavam sobre o colo.

Ouviu uma descarregada sendo acionada no andar de cima. Depois o barulho de água correndo nas torneiras. O barulho de uma porta sendo aberta. Então barulhos no corredor e depois passos na escada.

Rosalie chegou à escada ainda vestida de pijama com um robe azul por cima. Os cabelos bagunçados. Nos pés, chinelos de dormir. Sentia o pescoço dolorido. Exatamente como havia imaginado as marcas escuras tornaram-se horríveis. Quem visse de fora pensaria que alguém tentou estrangulá-la. Bem, não era uma total mentira. Só que quem fez isso não tinha intenção, não sabia o que estava fazendo. Mostrou-se horrorizado quando percebeu.

Do alto da escada, avistou Emmett sentado no sofá. Na posição que o sofá ficava na sala, o deixava de costas pra ela.

Após um suspiro, se dirigiu até ele.

— O que está fazendo sentado aí tão cedo?

Terminou de descer os degraus ainda enquanto ele girava o corpo de maneira a vê-la sobre o encosto do sofá. Foi nesse momento que viu as marcas enegrecidas no pescoço dela. A consciência de que havia sido ele a causá-las o atingiu em cheio e o fez sentir-se enjoado. As coisas tinham ido longe demais, pensou.

Rosalie viu confusão, medo e arrependimento estampados nos olhos azuis dele. Ele era quem mais sofria com tudo isso.

— Eu sinto muito – conseguiu dizer. Havia lágrimas sinceras em seus olhos. Elas tornavam o azul tão cristalino quanto um lago refletindo o céu num dia de verão.

— Ah, amor... – Rose murmurou, aproximando-se do sofá.

— Não chegue tão perto de mim – ele avisou. Nesse momento, Rosalie percebeu como tinha medo de voltar machucá-la. – Por favor, eu não quero voltar a machucar você. –Agora que ela estava mais perto olhou, horrorizado, as marcas escuras no pescoço dela. – Meu Deus, o que foi que eu fiz? – lamentou mais uma vez, envergonhado.

— Amor – ela o chamou. – Não fique se martirizando dessa maneira. Você não estava em si quando aconteceu. A culpa foi minha, eu não deveria ter tentado te segurar. Foi um erro.

— Meu Deus, Rose, eu poderia ter te matado. Como não bastasse, as crianças viram a tudo. Como vou olhar no rosto delas sabendo o que te fiz?

— Emm... – Ela chegou mais perto, e ele escorregou para a outra extremidade do sofá, temendo machucá-la.

— Me perdoa Rose... – sussurrou.

— Emm, eu te amo...

— Eu não posso mais permanecer aqui.

— O quê? Do que está falando?

— Me tornei um perigo para você e as crianças.

— Não faça isso, Emmett – E, assim, uma lágrima rolou na bochecha dela. – Você só precisa de ajuda. O que tem se chama síndrome de estresse pós-traumático. Falei com um... – ela parou, esperando pela reação dele. Já que da primeira vez que mencionou um psiquiatra, ele não reagiu muito bem.

— Psiquiatra – ele concluiu por ela.

Rosalie ficou olhando as unhas, ainda de pé ao lado do sofá.

— Você tem razão – conseguiu dizer. E ela levantou as vistas. O coração acelerando, voltando a ter esperanças.

O coração dele acelerando por um motivo diferente; o medo de não conseguir voltar a ser quem era antes.

— Eu preciso de ajuda, Rose. Mas não posso garantir que vou voltar a ser o mesmo.

Rosalie finalmente sorriu. A falta de hábito fez com que se sentisse estranha.

— É – respondeu, por fim. E então se sentou no lugar onde ele esteve sentado antes. Ficando assim cada um numa extremidade do mesmo sofá.

Ele mexeu as mãos uma na outra, em seguida admitiu.

— Eu tentei no Departamento de Veteranos... o problema foi que não esperei para levar o assunto até o fim. Eu tentei Rose.

Rosalie viu aquilo como um prelúdio. Ele ainda a amava. Só não estava sabendo como voltar pra ela, nem para os filhos.

— Emmett...

— Posso tentar de novo. E dessa vez eu juro, levarei até o fim.

— Você não precisa ligar para o Departamento de Veteranos outra vez. Meu pai indicou alguém. É um psiquiatra amigo dele. Você não terá de ficar numa fila de espera, aguardando.

Ele olhou, demoradamente, a perna residual.

— Mesmo que eu faça isso, ainda estarei incompleto – as palavras lhe escaparam num sussurrou contido.

— Não para mim – Rose fez questão de lembrá-lo. Ele, finalmente, olhou no rosto dela. Rosalie quis tanto abraçá-lo. Beijá-lo. Dizer através de gestos, carinhos e carícias o quanto ainda o amava. O quanto era valioso para ela. No entanto, sabia que ele ainda não se deixaria aproximar.

— Preciso que me salve – ele pediu. Na verdade, implorou.

Ela estendeu então a mão sobre o estofado, ansiando segurar na mão dele. Emmett, porém, recuou mais uma vez.

— Não quero machucar você de novo – disse. E era a mais pura verdade. Conseguia enxergá-la nos olhos dele.

Lá em cima, Lizzie chamou pela mãe. Estava chorando, Rosalie percebeu pelo seu tom de voz. E pela maneira insistente como a chamava.

Emmett ficou de pé como pôde, apoiando-se nas coisas.

— Não quero que me vejam. Ainda não me sinto preparado, não depois do que os fiz passar essa noite.

— Me deixe te ajudar...

— Vá vê a Lizzie. Ela parece assustada. – Ele virou as costas pra ela. E começou saltar com a perna boa de volta ao quarto.

— Lizzie te ama – Rose lembrou a ele.

— Peça desculpas a ela e ao irmão em meu nome.

— Marcarei então uma hora para você com o psiquiatra.

Ele apenas meneou a cabeça, concordando com a decisão dela. Disposto a qualquer coisa para salvar a si mesmo, e também a sua família.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Sill