Coração de Soldado escrita por Sill Carvalho, Sill


Capítulo 3
Capítulo 03 – Desesperança


Notas iniciais do capítulo

Obrigada pelos comentários no capítulo anterior. Adorei vê-los.



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No sábado, as crianças prepararam, com entusiasmo, a decoração de boas-vindas na sala de estar para receber o pai.

Rosalie, com ajuda da mãe, preparou a comida favorita de Emmett. Cuidaram da arrumação do quarto novo no andar de baixo com esmero. Onde antes funcionava o escritório deles, agora era um quarto pronto para recebê-lo. Na última semana, o banheiro também fora todo adaptado para deficientes.

A família inteira empenhada em agradá-lo. Fazê-lo se sentir parte dela novamente.

Apesar de ansiosa, Rosalie sentia um pouco de medo. Tinha passado a semana dizendo a si mesma que ele voltaria a ser o Emmett de antes. Que quando estivesse, finalmente, em casa, com a família, voltaria a ser o homem carinhoso que amava a mulher e os filhos. Mas, agora que ele estava prestes a chegar, já não tinha tanta certeza disso.

Ouviu o barulho de motor de carro na entrada de veículos, e seu coração disparou. Deveria estar feliz, mas, em vez disso, estava apreensiva.

— Ele chegou! – ouviu as crianças falarem, empolgadas, se posicionando em frente à porta para recebê-lo. Lizzie, agitada demais, contando os segundos.

Carlisle foi até a porta e a abriu. A cadeira de rodas foi empurrada para o lado de dentro por Dorian, pai de Emmett. Lizzie saltitou, abrindo caminho. Ester vinha logo atrás, trazendo a bolsa militar com as coisas do filho.

Na sala, Emmett mesmo foi quem movimentou a cadeira. Não demonstrou entusiasmo algum pela decoração de boas-vindas feita pelos filhos, ou mesmo retribuiu a seus sorrisos. Em vez disso, disse apenas que estava cansado, que gostaria de ir para o quarto.

Sua insensibilidade e falta de interesse deixou Matthew enraivecido.

— Ele não está nem aí pro que fizemos. – Todos na sala olharam para o garoto. Rosalie ficou com o coração apertadinho. Porque o que seu filho dizia, era a mais pura verdade. Todos tinham notado, mas apenas Matthew teve coragem de escancarar.

Emmett percebeu o clima estranho que tomou conta da sala de estar e quis, de alguma forma, maquiar a falta de interesse e gratidão, usando palavras que soaram vazias.

— Eu estou sim. – Todos estavam olhando pra ele, com um misto de surpresa e apreensão.  – Eu só não...

— Não é verdade! – Matthew o interrompeu bruscamente. O clima que já estava estranho ficou ainda pior.  – Você está mentindo – o menino acusou com propriedade no que dizia.

— Como é que é? – a voz de Emmett soou alta demais. – Está me chamando de mentiroso, moleque?

Foi então que Rosalie sentiu que tudo estava perdido. O quanto sua família havia se quebrado.

Matthew ficou muito ressentido com o jeito como o pai vinha se comportando.

Havia algo em Emmett que Rosalie desconhecia.

— Quero ir pro meu quarto – ele apenas avisou. Tão mal-humorado quanto vinha acontecendo nos últimos dias.

— Nós reformamos o escritório – Rose avisou. Emmett fez cara de desagrado. Ela fez menção de empurrar a cadeira de rodas pra ele, mas, antes que suas mãos alcançassem os punhos de empurrar, ele mesmo tratou de guiar a cadeira pela sala.

Ele seguiu em frente com a certeza de que todos o olhavam.

Rosalie mais uma vez ignorou a forma bruta como vinha lhe tratando e foi atrás dele.

Então, ouviram Matthew se queixar.

— Se era para voltar assim, nem deveria ter voltado.

Uma pontada no coração de Rosalie a fez parar de andar. Sua família estava desmoronando e não conseguia encontrar uma maneira de fazer isso mudar.

Emmett olhou para trás com a feição dura, respondendo ao filho.

— É, você tem razão. Talvez eu não devesse ter voltado.

— É – o menino rebateu e rumou até as escadas, subindo os degraus rapidamente. Em pouco tempo, veio o barulho da porta de seu quarto batendo.

Lizzie olhava de um para o outro, espantada, antes de sair correndo para os braços da avó materna. Quando Esme a pegou no colo, a menina estava chorando.

— Bom – arriscou Edward, em voz baixa, de pé ao lado de um dos sofás. – Talvez nós não devêssemos ter feito nada disso.

— Por que ele não está usando a prótese? – Jasper perguntou aos pais de Emmett. Ester foi quem respondeu.

— O médico pediu para ir com calma. Temos muitas coisas em casa onde ele pode tropeçar, a começar pelo carpete se tiver alguma ponta solta. Além de que ele ainda sente muitas dores. A prótese temporária é muito rígida.

Jasper anuiu.

Emmett já estava a caminho do antigo escritório. Fazendo uma breve parada em frente à porta, notando que estava bem mais larga.

Rosalie foi a primeira a passar para o outro lado, querendo mostrar tudo a ele. A cama era nova, assim como o jogo que a cobria.

— O banheiro também passou por reforma – disse. – Está equipado com tudo o... – ela hesitou sem saber como dizer, sem deixá-lo magoado. Mas ele fez questão de falar por ela.

— Com tudo o que um deficiente precisa. Vamos, use a palavra, Rosalie. É isso que sou agora; um deficiente.

— Você é meu marido – ela respondeu, deixando claro que isso era o que importava.

Ele fez pouco caso de suas palavras, guiando a cadeira através da porta nova. Seguindo pelo quarto até a porta do banheiro, olhando então para o lado de dentro.

— Vocês pensaram realmente em tudo – falou em tom azedo, em vez de demonstrar gratidão.

— Queremos que se sinta o melhor possível.

Ele bufou, tratando de fazer com que a cadeira de rodas desse a ré.

— Eu preciso descansar – avisou, aproximando a cadeira da cama nova. A mesa do escritório ainda estava lá. Só que agora ao lado da janela de vidro que dava para o jardim dos fundos.

— Eu te ajudo – Rose ofereceu já se movimentando.

— Posso fazer isso sozinho.

Rosalie ficou ali, parada, o vendo aproximar a cadeira da cama e transferir o corpo grande e pesado para o colchão. Foi mais cansativo do que imaginou que fosse. E ela não conseguia deixar de olhar a perna residual que saltava pra cima com o movimento que ele fazia. Levou um tempo até perceber que tinha de deixar de olhar.

— Você não vai querer jantar? Mamãe e eu preparamos sua comida favorita – explicou. Havia tristeza em sua voz. Era difícil reconhecer que ele não queria nada do que planejaram com tanto carinho, pensando em agradá-lo.

— Não estou com apetite.

Ela apertou os lábios numa tentativa de controlar o tremor que chegou a eles junto à tristeza.

— Tudo bem – disse, então. – Vou deixar você descansar.

— Faça isso.

Rosalie abaixou a cabeça, deixando o quarto sem uma última olhada para trás.

Emmett ficou lá, sentindo a dor fantasma na perna inexistente voltar. E o vazio estranho que crescia em seu coração desde a queda do helicóptero.

Chegando a sala, Rosalie forçou um sorriso vacilante para a família, que olhava para ela em expectativa. Caminhou até Esme e pegou Lizzie no colo. A menina se agarrou a ela, ainda fungando.

— Vamos jantar – disse a todos. – Ele não vai nos acompanhar.

Ester chegou mais perto e tocou no ombro dela com a mão.

— Eu sinto muito, Rose.

Rosalie levantou a mão até encostar-se a dela em seu ombro.

— Está tudo bem, Ester. Só vamos jantar logo.

Enquanto elas falavam, Edward subiu as escadas para buscar o sobrinho no quarto.

Com exceção de Emmett, a família inteira sentou-se à mesa para o jantar. Diferente do que tinham planejado para aquela noite, foi um jantar silencioso, cheio de incertezas.

Quando chegou ao fim, os rapazes se ofereceram para organizar a cozinha pra irmã. Assim que tudo ficou em ordem, todos partiram. Rosalie levou as crianças pra cama, logo depois foi tomar um banho na suíte oficial do casal.

Lizzie, porém, não conseguiu dormir sabendo que o pai estava em casa e não lhe deu um beijo de boa-noite. Então, empurrou os cobertores com as mãozinhas gordas para longe do corpo, e, carregando a mantinha lilás, desceu da cama. Vestia um pijama lilás da Princesinha Sofia e estava de pés descalços.

Caminhou pelo corredor com os pezinhos estalando no chão. Aproveitando para dar uma breve olhada dentro do quarto da mãe quando passou pela porta. Rapidamente seguiu para o topo da escada. Descendo os degraus cuidadosamente segurando no corrimão. Passou pela sala, apressada, notando que a decoração de boas-vindas ainda estava lá.

Na porta do quarto onde o pai estava, parou. Encostou a mãozinha à maçaneta e a empurrou. Viu Emmett na cama. Ele estava de olhos fechados. E ainda usava a mesma roupa de quando chegou do Centro de Reabilitação.

Lizzie acreditou que estivesse dormindo, por isso caminhou até lá, levando a mantinha na mão. Parou ao lado da cama nova, olhando o pai com curiosidade e uma imensa saudade. As cobertas estendidas rente ao colchão, onde deveria estar descansando a perna esquerda dele, chamou sua atenção. Lizzie, então, estendeu a mão pequena, apalpando o local vazio no colchão, uma, duas, três vezes.

— É, não tem mais... – falou em voz baixa. Então, olhou no rosto do pai. Os machucados estavam praticamente curados naquela parte do corpo dele. Parecia o papai do qual ela se lembrava. Que gostava de beijos e abraços e topava qualquer brincadeira.

Estendia a mãozinha para tocar no rosto dele, quando Emmett a surpreendeu abrindo os olhos. Lizzie congelou no lugar com a mão estendida. Os olhos arregalados. Emmett podia ver o peito dela subindo e descendo com a respiração descontrolada. Era sua garotinha. Sentiu tanto sua falta durante o tempo em que esteve no Iraque. Teve muito medo de não vê-la crescer. Mas, agora que a tinha tão pertinho, não conseguia sentir nada. Isso também o deixava zangado. Como era possível não amá-los mais? O que havia acontecido na queda do helicóptero que o deixara tão indiferente?

Lizzie estava com medo, viu isso nos olhinhos dela. No modo com paralisou diante seu olhar. Antes de ele partir em missão, Lizzie jamais sentiu medo dele.

— Vá para o seu quarto – disse a ela. Lizzie murmurou um “uhun” e saiu correndo pela porta escancarada. Diminuindo o passo apenas quando alcançou a escada. Encontrando com a mãe no corredor.

— O que está fazendo fora da cama, mocinha? – Rosalie a pegou no colo. – Eu achei que você já estivesse dormindo. A mamãe não deixou você na cama?!

— Eu queria ver o papai... – revelou tão baixinho que Rose mal escutou.

— O papai está descansando, amor. E você também vai descansar agora.

— Ele não me deu um beijo de boa-noite – lamentou a menina.

— Eu sei anjinho... – Rose a estava levando de volta pro quarto. E ao deitá-la novamente na cama, Lizzie mencionou.

— O papai não tem mais uma das perninhas dele. Ele deve estar com medo... E também acho que ele está triste.

  Lizzie fechou os olhos quando a mãe lhe beijou a testa.

— Você tem razão. O papai está com medo que a gente deixe de amá-lo por conta disso. É um mecanismo de defesa.

— Eu amo o meu papai. E ainda amaria mesmo que ele não tivesse nem braços, nem pernas – Lizzie deixou claro seu amor incondicional pelo pai. Virou-se de lado, agarrada a mantinha, e fechou os olhos, adormecendo em seguida.

Antes de deixar o quarto da menina, Rosalie acendeu a luz do abajur e apagou a do teto. Seguiu pelo corredor, descendo as escadas a caminho do quarto onde Emmett descansava. Ela vestia camisola e robe de seda branco. Os cabelos soltos lhe cobriam os ombros.

Quando abriu a porta, ele estava de olhos abertos, recostado aos travesseiros. Ela entrou no cômodo em silêncio, e começou a tirar o robe devagar.

— O que está fazendo? – ele pediu.

— Eu vou dormir aqui com você. Só demorei porque estava pondo as crianças na cama, e...

— Você não vai dormir aqui – ele a interrompeu. – Você vai voltar lá pra cima, pra sua cama.

— Emmett... – ela lamentou. As mãos segurando as fitas do robe.

— Volte lá pra cima, Rose.

— Eu estou com saudades...

— Eu quero ficar sozinho.

— Eu te amo...

— Pare com isso.

— Não vou parar de te amar.

— Me deixe sozinho.

Muito lentamente as mãos dela trabalharam para fechar o robe outra vez. E ela deixou o quarto em seguida. Decepcionada. Frustrada. Subiu as escadas sentindo a solidão imensa que tomara conta de sua vida desde que ele partiu em missão. Deitou-se na cama que costuma ser deles. A mesma cama que fora palco de inúmeras noites de amor. Há meses se tornara grande e fria demais para ela.

Durante toda a noite, seu sono foi conturbado. Não conseguia deixar de pensar nele e na forma como vinha agindo com todos.

Para Emmett a noite também não foi das melhores. Flashbacks horríveis ocuparam seus pensamentos. Qualquer barulho, por menor que fosse, no andar de cima ou até mesmo na rua, o deixava em sinal de alerta. Quando a manhã chegou, sua cabeça latejava com uma forte dor.

Sentiu vontade de ir ao banheiro. Esquecendo-se por um instante que lhe faltava uma perna, pôr-se de pé. Acabou cambaleando e caindo com o peito no chão, a mão direita sem querer empurrou a cadeira de rodas pra longe. A perna residual começou a latejar. A dor forte na cabeça parecia querer explodir.

Ficou jogado no chão afundando-se na autocomiseração. Ouviu passos na escada, então, se aproximando do quarto. Não daria tempo, ele sabia. Ainda assim, deixando as dores de lado, se esforçou para levantar. A porta do quarto se abriu antes que conseguisse. Desejou sumir quando percebeu Rosalie olhando para ele naquela situação.

— Amor... – ela entrou no quarto com passos apressados. A preocupação estampada no rosto. Se posicionando imediatamente ao lado dele no chão. Com muito esforço, ajudou-o a ficar de pé.

— O que aconteceu? – pediu.

— Parece óbvio, não?!

— Aonde você estava indo?

— Eu só queria ir à droga do banheiro – Ele respondeu. E dessa vez não parecia irritado, mas sim, magoado.

— Eu vou buscar a cadeira de roda... – Ela olhou em volta, avistando a cadeira no outro lado do quarto, junto à mesa do antigo escritório.

— Não vou me sentar nessa coisa. Estou farto de estar sentado o tempo todo.

— Então vamos pôr a prótese. – Rose deu outra breve olhada em volta. – Onde ela está? – quando tornou olhar para ele, percebeu que pulava numa perna só até o banheiro. Desistiu de procurar a prótese e foi atrás dele. A porta tinha ficado entreaberta, então, apenas a empurrou devagar.

O encontrou de costas pra porta, se posicionando diante o vaso sanitário. Na tarefa de se posicionar, se manter de pé numa perna só, aguentar as dores na perna residual depois da queda e a dor na cabeça, acabou se atrapalhando todo deixando a urina cair fora do vaso. Ficou com raiva de se mesmo. Xingou um palavrão. Ajeitou as roupas e quando se virou, tomou um baita susto ao encontrá-la ali. Movido pelo instinto, ergueu a mão em punho.

Rosalie se encolheu, amedrontada.

— Caramba, Rose! – ele reclamou, abaixando o punho, meio atordoado. – Eu podia ter machucado você. – Ela estava com os olhos assustados, fixos nele. – Não volte a fazer isso. Não chegue assim de mansinho.

— Desculpa...

— Me deixe sozinho. Quero tentar tomar um banho.

— Eu...

— Não. Não quero sua ajuda.

— Tudo bem. – Ela se virou para sair. E então olhou por sobre o ombro. – Eu vou preparar o café. As crianças não devem demorar a acordar. É... Você quer alguma coisa em especial?

— Um remédio para dor de cabeça seria ótimo.

— Está bem. Eu já trago.

— Deixe na mesinha de cabeceira junto aos outros remédios.

Rosalie anuiu, sabendo que não a queria no banheiro novamente, e se retirou.

Enquanto Emmett tomava banho, ela voltou ao quarto e deixou os remédios onde ele pediu que os deixassem. Retornou a cozinha e se dedicou ao preparo do café da manhã.

Matthew foi o primeiro a descer. Ainda se acomodando a banqueta diante o balcão, falou com a mãe.

— Bom dia, mamãe.

— Bom dia, querido. Já escovou os dentes?

— Ahã.

— Vai levar só um instante para isso aqui ficar pronto. – Ela fazia panquecas e também ovos fritos.

O menino meneou a cabeça. Um instante depois perguntou:

— Como ele está?

— Se adaptando – disse sem olhá-lo, concentrada na panela em cima do fogão.

— Somos a família dele... Por que ele está agindo assim?

— Seu pai passou por coisas terríveis, Matthew. Não é tão fácil assim pra ele... voltar.

— Eu não gosto mais dele.

— Matthew... – Rose deixou de lado o que estava fazendo para prestar atenção no menino. – Não diga isso, ele é seu pai.

— O meu pai nunca voltou do Iraque. O meu pai gostava da gente. Gostava de sorrir, e de abraços de urso. Esse não gosta. Nos olhos dele só tem escuridão...

— Ah, Matthew... – Dizendo isso, Rose o abraçou por trás das costas. Estava quase dizendo mais alguma coisa, quando Lizzie entrou na cozinha, arrastando a manta lilás. Os cabelos escuros, bagunçados.

— Eu também quero um abraço – resmungou. O rosto ainda amassado do sono.

Rosalie se esforçou para sorrir, e lhe ofereceu o braço.

— Venha!

Assim que a mãe a tomou no colo, Lizzie disse:

— Eu sonhei que o papai era um urso malvado. De dentes e garras muito grandes e afiados. Ele corria atrás da gente o tempo todo, rosnando.

Rosalie beijou na testa da menina. – Foi só um sonho, querida. – A colocou na banqueta logo ao lado do irmão e foi para junto do fogão outra vez.

— Malvado ele já está sendo – Matthew resmungou.

— Não fale essas coisas para sua irmã, Matthew.

Quando Rosalie terminava de falar, Emmett entrou na cozinha. Ele caminhava com passos mancos usando a prótese temporária. Vestia calça escura e camisa de malha branca. Os cabelos estavam úmidos. E tinha aparado a barba.

— Sente-se para tomar café conosco – sugeriu.

Lizzie olhou na direção da porta, ao ver o pai ali, de pé, saltou da banqueta e correu para perto dele.

— Você achou sua perninha, papai – se alegrou.

— Não é uma perna de verdade, sua bobona – o irmão se queixou.

— Não fale assim com sua irmã, Matthew. Ela ainda não sabe todas as coisas que você sabe. Não seja um irmão mais velho cruel.

Lizzie se sentou no chão, com a mantinha entre as pernas, levantando a barra da calça do pai.

— Oh... – murmurou. – Não achou, não. É uma perna de robô.

Matthew rolou os olhos.

— Levante daí, Lizzie – Emmett pediu a ela.

— Eu não sou mais sua bonequinha, papai? – Lizzie perguntou, olhando pra cima. A voz triste, assim como seu olhar.

Rosalie estendeu a mão pra ela. – Venha aqui com a mamãe, querida.

— Ele não se importa mais com a gente, sua boba – Matthew acusou outra vez.

Rosalie pegou Lizzie pela mão e a levou até a mesa, ajudando-a se sentar na cadeira. Enquanto servia a menina, chamou Emmett para sentar-se também. Ele apenas virou-se de costas refazendo o caminho de volta pro quarto.

Lizzie começou a chorar.

Rosalie olhou o filho sentado na banqueta com tristeza.

— Por que disse aquilo, Matthew?

— Porque é verdade.

O barulho de uma porta batendo chegou até a cozinha. Era Emmett batendo a porta do quarto ao entrar. Igualzinho a Matthew, pensou.

— Venha, tome o seu café e suba para se trocar. – Enquanto Matthew se aproximava da mesa, ela limpou as lágrimas nas bochechas da filha com a mão.

— Não chore mais, anjinho.

 Lizzie fungou. Em seguida, começou comer do que a mãe tinha posto na mesa.

Momentos mais tarde, quando terminaram o café, os três subiram e trocaram de roupa.

Lizzie assistia desenho animado na tevê da sala. Matthew ficou no jardim dos fundos, batendo com a bola na parede sem parar. O baque estava deixando Emmett maluco. Teve vários flashbacks; bombas estourando, tiros de morteiros cruzando o céu. Assim, quando os baques da bola batendo na parede finalmente terminaram, estava respirando com dificuldade, e a testa pingando de suor.  

O menino tinha sentado na grama verde, cortada recentemente pelo avô paterno. Matthew controlava a vontade de chorar. Sentia muita falta do pai. E essa nova versão dele, lhe dava raiva.

Emmett abriu a porta e saiu do quarto mancando da perna temporária.

Lizzie ficou de pé no sofá, com as mãos no encosto, o vendo mancar até a cozinha.

— Papai... – ela chamou receosa. Ele nada respondeu, sequer parou para olhá-la.

Não demorou a voltar. E quando isso aconteceu, trazia uma garrafa de vinho na mão.

Lizzie ficou olhando pra ele com tristeza.

— Papai – tornou a chamar, dessa vez sua voz não passava de um murmúrio. – Eu não sou mais sua bonequinha? – A porta do quarto bateu. Lizzie voltou a sentar no sofá, secando na mão pequena uma lágrima que lhe caiu na bochecha.

No meio da manhã, Rosalie entrou no quarto dele e o encontrou deitado na cama com a garrafa de vinho vazia ao lado do corpo. Olhou aquilo com tristeza. Ele nunca bebia para se embriagar. Não era justo que começasse agora. Não era justo com nenhum deles.

Raiva foi o que sentiu ao tomar a garrafa vazia na mão. Ele ficou lá, alheio a tudo, dormindo sob o efeito do álcool.

[...]

Na semana seguinte, nada havia mudado. As crianças iam à escola no ônibus escolar. Rosalie a floricultura. No horário do almoço, passava no restaurante preferido dele onde pegava comida para dois. Mas sempre o encontrava bêbado ao chegar em casa. Com exceção dos dias em que tinha fisioterapia no Centro de Reabilitação.

À noite ou ele dormia muito mal ou não dormia nada. Lizzie continuava indo vê-lo todas as noites antes de dormir. E ele sempre repetia a mesma frase “vá para sua cama”. Então a menina saia do quarto dele correndo.

Rosalie continuava dormindo todas as noites, sozinha, na suíte no andar de cima.

A família estava sempre aparecendo, oferecendo ajuda. Sendo gentis.

No sábado, depois do treino de futebol, Matthew levou dois colegas para casa. Enquanto eles jogavam videogame na sala, Emmett passou mancando para a cozinha. O barulho de coisas explodindo, em volume ensurdecedor, o fez reagir de forma inesperada.

Ele se jogou no chão gritando “mayday, mayday”. Os garotos olharam pra ele, escandalizados, como se fosse um louco de pedra.

Depois disso, os amigos de Matthew ficaram cochichando, zombando do pai dele. Emmett só se levantou do chão quando Rosalie arrancou o videogame da tomada.

Envergonhado, Matthew subiu as escadas e se trancou no quarto. Os garotos tiveram de telefonar para que suas mães vissem buscá-los.

Emmett também se isolou no quarto dele pelo resto da tarde. À noite, recusou o jantar. Rosalie e as crianças acabaram jantando, sozinhas, como vinham fazendo desde que ele partira em missão.

Naquela noite, Emmett voltou a beber escondido. Também fez uso de remédios para dormir.

No domingo, a família inteira se reuniu para o almoço. Mas nada havia mudado, Emmett passou o dia sendo grosso sempre que tinha a chance.

Após o almoço, enquanto os adultos, com exceção de Emmett que olhava tudo como se não fizesse parte do mundo deles, conversavam no jardim dos fundos.

Matthew tinha ido até a garagem e quando voltou trazia a bola de futebol entre as mãos. Ele a passava de uma mão para a outra, sempre olhando na direção do pai. Esperando que fizesse alguma coisa, como ir até ele, o convidar para disputar um mano a mano.

Para decepção de Matthew, Emmett virou as costas e entrou pela porta da cozinha. O garoto deixou a bola cair no chão e, muito devagar, se sentou na grama. Seus ombros cederam com o peso da tristeza.

Vendo o desanimo do neto, Dorian se levantou de sua cadeira na varanda e foi até lá falar com ele. Sentou-se ao lado no menino e ficou a puxar um pequeno punhado de grama verde na mão.

— Dê um tempo a ele, Matthew.

— Sinto falta do papai – o menino admitiu. E começou a imitar o avô, cutucando a grama com os dedos.

Dorian passou o braço sobre os ombros caídos do neto.

— Seu pai te ama, Matthew. Ele está passando por um momento muito difícil. Não está sabendo como lidar com vocês.

— Ele está sendo um babaca. Sabia que agora ele bebe até caí?

O avô apertou a mão nos ombros dele de leve.

— Não quero mais ser filho dele.

— Ele ficaria muito triste se te ouvisse dizendo isso.

O menino deu de ombros. – Eu não me importo. Ele me magoa o tempo todo agora. Magoa a mamãe e até a Lizzie, que era seu bebezinho. Ele agora parece um pirado, se jogando no chão toda vez que ouve um barulho muito forte. Mamãe disse que temos de ver tevê somente com volume baixo, e nunca bater portas ou qualquer outra coisa.

— Seu pai precisa que seja paciente.

— Eu não quero ser paciente, vovô, só quero o papai de volta.

Da janela do quarto onde antes funcionava o escritório, Emmett observava Matthew falando com o avô, os dois sentados na grama, de costa para a janela. Então, os irmãos mais novos de Rosalie saíram de seus lugares na varanda e foram até onde eles estavam. Os dois convidando seu filho para uma partida de futebol.

Neto e avô se puseram de pé. Dorian retornou à varanda, ao seu lugar ao lado da esposa.

Emmett começou a fechar as cortinas, mas, ainda conseguiu ver o momento em que Jasper encostou a mão no ombro de Matthew e o garoto meneou cabeça, concordando com algo que disse.

Lizzie brincava de bonecas com as namoradas dos tios ali mesmo na varanda.

Então Dorian trouxe o assunto da bebida à conversa.

— Matthew acabou de me dizer que Emmett tem bebido até cair. Quanto tempo faz que isso vem acontecendo?

Naquele momento, Rosalie deu total atenção ao que o sogro dizia.

Carlisle, Esme e a própria mãe de Emmett, Ester, pareciam chocados depois da revelação. Todos olharam para ela esperando por uma resposta.

— Começou ainda na semana passada, quando chegou do Centro de Reabilitação. Por mais que eu jogue fora, ele sempre dá um jeito de aparecer com outra. Eu não sei... acredito que peça por telefone, quando estou na loja. Então, quando retorno, quase sempre está dormindo de tão bêbado.

— Isso não pode continuar assim. Não pode ficar bebendo desse jeito. O que está acontecendo com ele? – Ester tomou a palavra.

— Vocês viram como ele tem se comportado. Não há muito que eu possa fazer. Ele tem sido tão ranzinza e mal-educado. Eu nunca sei o que esperar. Ele quase não tem dormido e quando dorme, tem pesadelos horríveis. Acredito que o álcool lhe traga algum alívio...

— Isso não pode continuar – acrescentou Carlisle. – Emmett precisa de ajuda.

— Que tipo de ajuda? – Dorian questionou.

— Psiquiatra – Carlisle concluiu. – O que ele vivenciou no Iraque foi muito difícil. Emmett não vai conseguir se recuperar sozinho. Posso estar indicando um muito bom, de meu conhecimento.

— Mas e se ele não aceitar? – Rose questionou.

— Isso seria um problema.

Esme olhou no rosto da filha, esperançosa.

— Você poderia tentar falar com ele, Rose.

— Esse também é um problema, mamãe. Ele não conversa mais. Tudo o que ele tem feito é beber, ser mal-educado e ficar trancado naquele quarto.

Quando o sol já estava se pondo, o pessoal começou ir embora. Carlisle deixou com Rosalie o contato do psiquiatra para o caso de ela querer falar com ele antes da conversa com Emmett. Por isso, estava agora sentada na cadeira com o celular na mão, pensando no que fazer.

Lizzie empurrou as portas de correr e apareceu na varanda com uma boneca na mão.

Rosalie olhou para ela, tentando sorrir.

Matthew já estava lá em cima, no quarto dele.

A menina chegou pertinho dela e se sentou em seu colo, apoiando a boneca de cabelo cor-de-rosa na barriga. Rosalie apertou a menina nos braços carinhosamente enquanto beijava no alto de sua cabeça escura.

— O papai está na cozinha... E ele nem falou comigo.

Roçando os lábios nos cabelos da filha, disse:

— Eu sinto muito, meu bem. – Passado um instante completou: – Vem, vamos ver se o papai quer alguma coisa. – Ela pôs a menina de pé. – Vamos entrar. Talvez o papai esteja procurando alguma coisa para comer.

— Por que o papai não gosta mais da gente?

— Ah, ele gosta, Lizzie.

— Eu acho que não... – Lizzie murmurou quando passavam pela porta.

Na cozinha, encontraram Emmett preparando um sanduíche.

— Por que não me chamou? – começou Rose. – Eu poderia ter preparado um sanduíche como você gosta.

— Perdi uma perna, não os braços.

— Nossa! – Rose ergueu as mãos, rendendo-se. – Tudo bem, você pode continuar fazendo seu sanduíche, não está mais aqui quem falou. – Ela então soltou da mão de Lizzie e a pegou no colo. – Vamos, amor, vamos lá pra cima.

— O papai foi mal-educado – sussurrou a menina no ouvido da mãe.

— Você quer que a mamãe leia uma historinha para você? – Rose perguntou, tentando fazê-la deixar de pensar na forma como o pai vinha se portando.

— Eu quero que ele seja o papai bonzinho de novo. Eu não gosto desse papai. Ele dá medo...

Rosalie subiu as escadas com Lizzie agarrada a seu pescoço, as pernas em volta de sua cintura.

Na cozinha, Emmett deixou cair da bancada o pacote de pão. Tentou pegá-lo de volta, mas, por causa da prótese temporária, não conseguiu se abaixar. Acabou que derrubou também o pote de maionese e a faca.

Com raiva de si mesmo, acabou esmurrando forte a porta do armário e várias outras coisas acabaram caindo também. O estrondo alertou Rosalie e as crianças para algo de errado.

Ela e os filhos desceram as escadas às pressas. Deparando-se com uma das portas do armário pendendo na dobradiça. E as várias coisas que havia derrubado, no chão. A maionese derramada.

Impediu que as crianças se aproximassem da bagunça pondo a mão no peito delas.

— O que aconteceu aqui? – pediu, preocupada.

— Nada! – ele gritou tão alto que Lizzie cobriu os ouvidos com as mãos.

— Não grite com a minha mãe – Matthew reclamou.

— Isso não é um assunto no qual você deva se meter, garoto – Emmett fez o aviso. E o menino ficou ainda mais furioso.

— Você é um babaca – acusou.

— E você é um garotinho mimado.

Rosalie estava aturdida. E Lizzie, prestes a chorar.

Emmett ordenou que o menino se retirasse.

— Vá para o seu quarto.

— Eu não gosto mais de você – Matthew gritou com uma fúria que Rosalie desconhecia.

— Bem-vindo ao time – Emmett lhe disse com desdém. Enquanto o garoto se retirava sem disfarçar o quanto estava furioso com ele.

A essa altura, Lizzie já estava chorando. Rosalie a tirou de lá.

Deixou a menina no quarto, brincando com alguns de seus brinquedos favoritos, e voltou à cozinha para ver como Emmett estava. Porém, ele já não estava mais lá. Tudo o que pôde fazer foi limpar a sujeira que ele tinha feito e arrumar a bagunça. No final, decidiu fazer pra ele um sanduíche. Ajeitou na bandeja junto a um copo de suco de laranja e guardanapos. E finalmente levou até ele.

Bateu na porta do quarto duas vezes antes de abri-la. Ele estava sentado na cadeira ao lado da cama. E tinha retirado à prótese.

— Trouxe seu sanduíche... – avisou, ainda como que pisasse em ovos.

— Eu não terminei de fazer – ele resmungou daquele jeito mal-humorado que vinha usando desde o hospital.

— Eu terminei pra você.

Ele abaixou a cabeça. – Eu vou arrumar a porta do armário para você depois.

— Tudo bem. Não estava pensando nisso.

— Deixe aí – ele indicou a bandeja nas mãos dela, com um movimento de cabeça. E então acrescentou: – Como estão as crianças?

Rosalie sentiu um fio de esperança. Sem esforço, deixou que um pequeno sorriso aparecesse. A bandeja então foi posta sobre a cama.

— Matthew está bastante chateado... Lizzie parou de chorar e está brincando com suas bonecas.

— Não sei o que está acontecendo comigo – ele enfim admitiu.

Ela estendeu a mão para tocar o ombro dele, mas acabou desistindo por medo da reação que pudesse vir a ter.

— Você precisa buscar ajuda – Rose murmurou, temendo a reação dele. – Meu pai sugeriu um psiquiatra...

Ela não pôde terminar, pois ele interrompeu com o mesmo tom azedo usado na cozinha minutos atrás.

— Está dizendo que sou maluco?

— Não. Eu estou apenas dizendo que passou por momentos difíceis e que precisa de ajuda para superar tudo isso. Precisa de ajuda para voltar pra casa.

— Eu estou em casa.

— Seu corpo está em casa – ela especificou.

— O que restou dele – ele lembrou.

— Precisa encontrar o caminho de volta, mas para isso, primeiro precisa admitir precisar de ajuda.

— Obrigado pelo sanduíche – Ele mudou de assunto, e Rosalie entendeu que era para deixá-lo sozinho.

Sozinho novamente, Emmett ficou remoendo as palavras da esposa por um bom tempo. Somente depois de comer o sanduíche feito por ela com tanto cuidado, foi que pegou o telefone. Discou o número do Departamento de Veteranos e aguardou. Estava quase desistindo da ligação quando a atendente respondeu no outro da linha.

Ele imediatamente explicou.

— Acho que preciso de ajuda.

— Do que se trata?

— Sou veterano da Operação Iraque Livre. Ferido. Preciso falar com alguém sobre como tenho agido desde que voltei. Dos pesadelos e flashbacks.

— Tem pensado em machucar alguém?

— De propósito? Não. Claro que não.

— Aguarde um instante na linha.

Levou algum tempo até que alguém voltasse a falar com ele, e quando isso aconteceu, era a voz de um homem.

— Em que posso ajudar?

Emmett ficou em silêncio, incapaz de prosseguir com aquela ligação. Pensando se realmente era necessário passar por isso.

— Senhor...? Ainda está na linha?

Pediu desculpas e acabou desligando o telefone sem resolver a questão da ajuda que buscava. Devolveu o telefone a base cuidadosamente. Tomou remédios para dormir e se deitou na cama bagunçada, aguardando que o efeito fosse rápido.

 


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Notas finais do capítulo

Beijo, beijo
Sill