A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 9
Capítulo 8




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Trigésimo oitavo dia do primeiro mês, ano 7302.

 

Cena I – Memórias.

12 horas e 28 minutos. Reino Anão – Ruthure. Q.G. dos Guardiões das Chamas.

 

A Astral brilhava forte no céu de Ruthure e, do lado de fora da caverna, Manu, Urak, Hilda e Darius relaxavam a mando do rei. Rujavo os disse que poderiam andar pelo reino livremente e que a noite que viria a seguir seria a última em que o clã passaria escondido em cavernas. Era oficial: em Ruthure os Guardiões das Chamas não eram mais criminosos e sim heróis que libertariam o Zaatros da tirania de uma feiticeira travestida em deusa.

 

—Nem acredito(!) desde que entrei para o clã, é a primeira vez vou ter algum descanso. -Manu comemorou. Ele brincava de jogar pedras para o alto com a cascavel-camaleão para que ela as pegasse. A mascote estava em forma de serpe, um animal semelhante a um pequeno dragão, com patas dianteiras transformadas em asas por membranas, como asas de morcegos. Na verdade nenhum animal descende dos Dragões, a serpe advém das cobras.

—Nada disso, Manu. -Falou Urak, pondo a baixo uma árvore com um único golpe de marreta e assumindo seu papel de general. -Todos vocês aproveitarão o presente do rei para treinar. Há muito estão enferrujados.

—Vocês, talvez. Eu acabei de chegar e, ainda que estivesse escondida por décadas, saberia predizer o futuro nas linhas apagadas de uma mão calejada ainda que só tivesse tocos velas como fonte de iluminação. -Hilda tomava banho de luz, sentada em um banco de madeira, enquanto remexia as cartas de um baralho velho.

—Ótimo, continue assim. E você, Darius, quando foi a última vez que disparou uma flecha?

—Sabe que eu não lembro!? -Riu Darius. O elfo se pendurava em uma árvore, como se fosse uma criança fazendo graça e não um foragido que valia vinte e cinco mil peças de ouro. -Vou buscar a Presa de Elefante! -Com um pulo, Darius desceu do galho e correu para o interior da caverna.

—Presa de Elefante? -Perguntaram Manu e Hilda ao mesmo tempo.

—É o nome que ele deu ao arco. -Urak esclareceu entre risadas. -É feito de marfim. -Outro estrondo da marreta, desta vez espatifando uma pedra do tamanho de um búfalo.

—Criativo. Ainda precisamos dar um nome para você, não é parceira? -A cascavel-camaleão estava enroscada no braço de seu dono, de volta a sua real forma.

—Darius pode ajudar com isso depois. Saberia dizer-me todos os animais que ela absorveu, Manu? -General Urak, como sempre, empenhado em seu trabalho.

—Sim, mas são muitos.

—Quais os grandes? -A mente de Urak maquinava ao redor das missões de invasão.

—Hidra, serpente-marinha, trasgo, ciclope… que eu lembre, só esses.

—Centauro, rinoceronte, dragonesa e escorpião gigante? Nada? -Bufou.

—Não, esses são difíceis e ela ainda é jovem, não tem competência para abater criaturas tão poderosas.

—Volteeeei! -Gritou Darius cruzando a ilusão de desabamento da caverna. -Olhem que belezinha… -O arco era grande e bem esculpido, reluzia na cor de osso e estava muito bem cuidado e polido apesar da falta de uso.

—Darius, duas missões para você: achar um nome para a mascote do clã e matar uma dragonesa.

—Nossa, a primeira é fácil, a outra… nem tanto. Flechas não penetram o couro daquelas malditas!

—Chame Kira para ajudar. E só me apareçam aqui quando terminarem o serviço.

—Oh, deseja algo mais, meu rei? -O elfo fez uma reverência e todos, excetuando Urak, riram. Até mesmo a cigana achou graça e acabou se perdendo na contagem das cartas.

—Darius, isto é sério! -Urak tinha tanta responsabilidade quanto Ezerk com o sucesso do clã e isso pesava em seu temperamento. Kvarbrakoj tendem a se irritar com facilidade. -A cascavel-camaleão precisa ser fortalecida. Vá chamar Kira e saia.

—Vá chamar Kira e saia. —Darius repetiu debochando e copiando a voz do general. -Quem é você, meu pai?

—Se eu fosse seu pai, você não teria nem sido concebido.

 

Os outros não entenderam bem o porquê de aquilo ter apagado o sorriso de Darius. Ele apenas assentiu, sem expressões no rosto que pudessem ser lidas, e voltou para dentro, saindo de lá rapidamente, com Kira nos calcanhares. Juntos, ele, Kira e Manu partiram para o oeste, na direção dos vales onde as dragonesas nidificam.

 

Kira carregava uma espécie de chocalho com a mesma forma e tamanho de uma maça. Dentro do compartimento na ponta da haste, havia sementes secas para fazer o som.

—Kira, para que serve isso? -Manuel quis saber. -Magos são tão excêntricos.

A filha de Urak então agitou a ferramenta e o som gerado pelas sementes se chocando contra o interior da cabaça foi transformado por ela em uma forma de ataque. Ao vibrar o chocalho, Kira produziu som e o direcionou, amplificando-o com seus poderes. A onda sonora foi lançada contra o chão e, ao se chocar contra ele, fez subir nuvens de poeira e cinzas.

—Minha afilhada é muito inteligente, velho Manu. -Gabou-se Darius, alisando os cabelos louros da menina. -Ela não fala para concentrar o poder do grito. Por isso não pode pronunciar os feitiços. E, como desenhar runas leva tempo e são mais usadas para armadilhas, a única forma de ataque que ela possui é gerar o próprio poder.

—É isso? -Manu perguntou à menina e ela assentiu sorrindo. -Então o chocalho cria o som que você precisa para lutar, enquanto guarda a voz para a magia derradeira…

Ela assentiu outra vez.

A pequena caravana ia caminhando sobre a terra vulcânica salpicada de cinzas. A mascote de Manu assumira a forma de égua e trotava na frente do grupo, afugentando galinhas perdidas e outros animais pequenos.

—Já sabe como vai batizá-la, Darius?

—Eu pensei em Garras, já que as cascavéis-camaleão têm um tipo de garra na ponta da cauda. -Disse Darius. -Sei lá, não estou muito criativo hoje.

—Eu gostei, está batizada! -Apesar de não ser o melhor nome, o humano-duende aprovou. -Sabe, parceiro, eu não quero ser inconveniente, mas sinto que tem algo te incomodando.

—É só impressão sua.

—Eu sou meio duende sinto as emoções dos animais e você não é uma planta. -Manu, ao lado de Darius, parecia ainda menor; o elfo medindo um metro e oitenta e ele com um e quarenta e cinco.

Kira cutucou Manu com o chocalho, como quem pede para seguir em frente.

—Foi o que Urak disse? Eu não entendi…

O elfo soltou um suspiro demorado antes de responder:

—Tamires, a esposa de Urak e mãe de Kira, é minha irmã. Mas temos mães diferentes. Quando ela tinha por volta de seis anos, nosso pai começou a se envolver com minha mãe e ela sabia que meu pai tinha família, porém ele sempre a pedia calma: “Logo vou largá-la e virei morar contigo”, dizia…

Darius fez uma pausa na narrativa, tirou o arco das costas e mirou flechas imaginárias em alvos inexistentes.

—Meu pai seguiu enganando e traindo a mulher até que minha mãe engravidou. Depois que eu nasci, a história escapou pelos dedos dele. Não que fosse um grande segredo, mas a mulher dele ainda não tinha conhecimento…

Ele soltou a corda, atirando a flecha fictícia. Kira ouvia com atenção, apesar de conhecer a história de cabo a rabo.

—A verdadeira senhora Quendra, a mãe da minha meio-irmã, descobriu, e o pôs pra fora de casa, mandou que fosse morar com a segunda família, e meu pai assim o fez. Ela não tinha lá uma boa saúde no momento e, sozinha, não conseguiu cuidar de si e de Tamires. Acabou morrendo um mês depois, de desgosto e de solidão. Ela era humana, sabe? Humanos são mais frágeis com as emoções, se abalam muito quando a vida lhes dá um golpe como aquele… -Uma fungada rápida. -Some isto à doença e o único resultado é a morte.

—Nossa, que tragédia. -Manu lhe tocou o ombro dando apoio.

—E não é tudo, Tamires veio morar conosco. Minha mãe sempre a tratou muito bem, como uma filha, mas eu a odiava. Mesmo tudo tendo acontecido antes do meu nascimento, a história nunca foi escondida de mim. Eu Sentia ciúmes e raiva. Raiva, quando me apontavam na rua cochichando e me chamando de bastardo. Eu sentia raiva do meu pai por ter uma filha com outra mulher, vergonha da minha mãe por ter-se envolvido com um homem casado, e ódio da Tamires por ter de dividir meus pais com ela.

Outra flecha de vento.

—Sempre causei sofrimento a minha irmã… até que um dia precisei de ajuda e ela não pensou duas vezes em me acudir… se acontecesse o contrário, eu a deixaria morrer sem pestanejar. Na época eu tinha uns doze anos e ela uns dezoito, talvez.

—Conte-me. -Manu também podia sentir a dor que o amigo sentia. Faz parte da habilidade racial: a empatia força o duende a provar do estado psicológico ou das necessidades do próximo para poder melhor compreendê-lo. É mais eficaz com animais. Com humanoides só o é quando estes permitem ao duende acessar sua psique.

—Eu caí sobre uma faca que carregava enquanto corria e praticava arremesso. A lâmina me deixou isto:

O elfo largou o arco pendurado em um galho seco, levantou a camisa e mostrou a marca da perfuração, abaixo do osso esterno, na parte central do tronco. A cicatriz era fina, não passava de uma linha mais alta e clara na pele.

—Ela já estudava o clericato e conhecia a cura através da fé. Sempre muito fiel aos Deuses Antigos e a Harkuos. Meus pais não estavam em casa, os vizinhos não gostavam de nós, ninguém prestaria socorro. Tamires fez o corte fechar, pedia aos deuses com muita devoção e eles atenderam sua prece. Foi difícil, esse tipo de poder só funciona desde que todos os envolvidos confiem nos deuses e, para mim, Harkuos nunca foi uma deusa e continua não sendo. Só creio nos Deuses Ancestrais, por isso me juntei ao clã… Dali em diante vi que ela era tão vítima da situação quanto eu e que eu devia a ela minha vida, minhas desculpas e que, no fim das contas, nosso pai era o único responsável por tanta dor…

—E quando vocês dois conheceram Urak? -Manu fazia Darius contar as mágoas e isso ia, aos poucos, tirando os fantasmas do passado dos calcanhares dele.

—Ele foi morar em Eyrell no ano seguinte ao meu acidente, éramos vizinhos. Ele deve ser uns dez ou onze anos mais velho que eu e, naquela época, já era adulto. Deixou Kaotheu e foi morar sozinho em Eyrell. Brigávamos demais, eu sempre apanhava, ele é um kvarbrakoj não é? Eu não podia vencê-lo em lutas, afinal, quatro braços contra dois não fazem uma briga justa. E ainda tinha a questão da diferença de idade. Acabou que, com o tempo, nos tornamos grandes amigos, como irmãos. -O elfo riu com a lembrança. -Ele e minha irmã noivaram bem debaixo do meu nariz, no mesmo dia do meu aniversário de catorze anos, e eu só fiquei sabendo que eles se amavam daí em diante. Nunca prestei atenção nos detalhes… em como sorriam muito quando estavam juntos e tudo o mais.

O sorriso se apagou novamente, e o elfo apanhou o arco e recomeçou a brincar de disparar flechas de mentira.

—Ele tenta proteger a todos nós, por isso toca em pontos que me fazem mal. É para me trazer à realidade de que corremos perigo o tempo inteiro, para me manter alerta, entende?

Manuel assentiu e Darius continuou:

—Eu gosto de ver todos alegres, a felicidade dos meus amigos é revigorante para mim, é como beber água depois de horas perambulando sob a luz da Astral; como matar a fome depois de passar dias amarrado em um toco sem comer… isso compromete meu rendimento. Rimos muito, preparamo-nos pouco.

—Urak não faz por mal. -Manu emendou. -Só não quer ter que sepultar amigos.

—Sei disso. É estranho, sabe?

—O que, Darius?

—Minha meio-irmã é casada com meu irmão de outros pais e juntos os dois têm uma filha que é minha sobrinha e afilhada! -Ele gargalhou alto, talvez por nervosismo, e parou com a simulação de tiros, prendendo a Presa de Elefante nas costas.

—É uma família de loucos, não é Kira?

A menina ria sem emitir nenhum ruído, esquisito de se ver, e concordou com fala do padrinho.

 

Ainda faltava um longo percurso até o ninho das dragonesas, já passava das quinze horas, a julgar pela posição da Estrela Astral no céu.

 

—Como é ser híbrido? -A alegria voltava aos poucos a preencher o rosto do elfo. -A pergunta não tinha um alvo específico, Kira e Manu são híbridos.

A menina deu ombros, sem poder responder, e Manu disse:

—Normal… como é ser puro? -Rebateu Manuel.

—Só tenho características de elfo, simples. Kira tem grande aptidão para magia por parte dos humanos. E você, o que tem do seu lado humano?

—A mente mais clara. Os duendes são muito sintéticos. Todos são bons e tratam bem uns aos outros, sempre com pompa e cortesia mesmo que não se gostem. Nunca gritam em uma discussão e muito menos erguem a mão para alguém, ainda que para se defender. -A tentativa de explicação confundia Darius ainda mais. -Resumindo: duendes se sentem superiores e repudiam todas as outras espécies. Para eles, os demais são bárbaros, lobos e hienas que necessitam sempre de fazer jorrar sangue e lágrimas para saciar seus instintos mais primitivos. O meu lado humano me torna mais aberto a tentar entender os porquês da violência.

—E quais seriam eles?

—Quem ofende, machuca ou de alguma forma causa dano, exige um contra-ataque à altura ou superior. Vingança. O princípio é esse: existem pessoas más, as que começam o ciclo; e as não tão más, as que se defendem da agressão agredindo. No fim das contas todos são maus. Muito maus ou pouco maus, mas sempre maus. Todos.

—Pensamentos muito complexos para mim, amigo. Depois conte-os para as Vice-versa.

Kira pescou a piada e ria. Era uma garota que, apesar de estar envolvida até o pescoço com assuntos muito grandes e profundos para alguém com apenas dez anos, não perdia as oportunidades de difundir suas alegrias.

—Para quem?

—Para as bruxas de traseiros fundidos. Ah, elas ainda me pagam…

 

***

 

Cena II – A Ponte Telepática.

16 horas e 40 minutos. Reino Anão – Ruthure. Q.G. dos Guardiões das Chamas.

 

—Se não me deixar vasculhar tudo, eu não conseguirei conectar-me completamente. -Cícero forçava a mente de Hilda, mas a cigana se mostrava resistente a sua entrada.

—Há quanto tempo estamos neste quarto? -Ela tinha a testa úmida de suor e não conseguia fazer o corpo parar de tremer.

—Passa de trinta minutos e, se não facilitar minha entrada, o processo pode demorar semanas. -Sentados no chão da caverna, em posição de lótus e de mãos dadas, tinham as mentes embargadas; Hilda não permitia a entrada de Cícero e ele tentava ultrapassar o bloqueio.

—Só isso? Parece que foram horas. Eu não vou suportar passar por isso todos os dias! Não o estou repelindo de propósito, force mais.

—Hilda, entenda, cada mente é um jogo diferente de quebra-cabeças. Mesmo que eu tenha experiências anteriores, é sempre um desafio mexer com um cérebro diferente. Eu posso forçar as peças que não se unem a se encaixarem, mas isso causa danos irreparáveis às peças a longo prazo. -O feiticeiro, ao menos, era paciente.

—Não compreendo…

—Você sabe quais são as peças que se encaixam, só tem de me mostrar quais são para que eu possa completar o quebra-cabeças… veja bem, você está fazendo o oposto: enquanto eu procuro as que se encaixam e as monto sozinho, você torna a separar e misturá-las. -O uso da metáfora do quebra-cabeças fora uma boa forma de explicação. É sempre mais fácil assimilar assuntos complexos e desconhecidos por meio de comparações com coisas com as quais estamos familiarizados.

A cigana suspirou, esgotada. Jogou para trás o cabelo anelado que teimava em grudar na testa suada e perguntou:

—O que devo fazer?

—Deve relaxar, parar de pensar em coisas que não quer que eu veja. Eu tenho de ver tudo para criar uma ligação mental permanente e que não oscile mesmo a distância. Apenas relaxe… Tem minha palavra de que nada que eu venha a saber sairá daqui.

—Já disse que não tenho nada a esconder.

—Certo, vamos tentar outra vez…

Os olhos de íris cor de âmbar do feiticeiro se acenderam inteiramente na mesma cor, em seguida os olhos verdes da cigana também se iluminaram com o brilho amarelo, como os do telepata. Quase todas as veias do rosto e pescoço de Cícero saltaram com o esforço e a pele morena de Hilda, por um momento, pareceu empalidecer. Acabou que, no fim das contas, Hilda não ajudou Cícero a encaixar as peças, mas tampouco tornou a separar as que haviam sido montadas. Todo o processo durou por volta de uma hora.

 

—Está feito? -Quis saber a cigana.

—Sim. A partir de agora podemos conversar telepaticamente e também temos acesso em tempo real aos pensamentos um do outro.

—Teste! -Pediu Hilda.

Basta pensar no que quer me dizer. —Cícero falou sem verbalizar uma palavra sequer. Falou através da telepatia.

“Entendido!” —A resposta também foi dada mentalmente.

 

***

 

Cena III – O Ninho.

17 horas e 08 minutos. Reino Anão – Ruthure. Ninho das dragonesas.

 

Os ninhos foram construídos em uma cratera saturada de fissuras e gêiseres por onde água fervente e vapor eram expelidos a todo momento junto a pedras pequenas que porventura viessem a obstruir sua passagem. O cheiro de enxofre impregnava o ar e, por uma das fendas, escorria um fino filete de magma.

Agachados entre arbustos, Manuel, Kira e Darius planejavam como abateriam uma das dragonesas. Contando por baixo, deveriam haver ali algo em torno de trinta dessas criaturas de diferentes idades, tamanhos e traços.

Todas as dragonesas têm aparência de mulheres bem nutridas, de seios fartos e corpos musculosos. São animais hermafroditas, macho e fêmea ao mesmo tempo. Reproduzem-se assexuadamente, isto é, sem precisar ter contato com outro ser.

As distinções mais notáveis entre as dragonesas e as mulheres são, em primeiro lugar, as asas de couro escamado, similar as asas de dragões; depois vem a pele de um tom amarelo ácido, couro forte, quase impenetrável; a calda de escorpião, cuja ferroada venenosa faz com que implorem pela morte; os dentes afiados e, finalmente, as garras que se incendeiam e queimam tudo o que tocam. As criaturas não são capazes de atirar o fogo das mãos, só queimam com o toque; mas, com toda a selvageria que possuem, isso não faz a menor falta. A maioria delas estava nua, uma ou outra cobria as intimidades com peles das pressas que abateram.

 

—Nós vamos morrer. -Decretou Darius, desta vez não era uma piada.

—Temos a Garras, ela nos ajudará. -A cobra estava enroscada no pescoço de Manu, e apertava de leve o braço do dono a mão da ponta da cauda.

Kira estalou a língua e fez um gesto quando os dois a olharam: juntou as pontas dos dedos de ambas as mãos e os afastou em seguida.

—Quer separá-las? -Perguntou o padrinho da garota.

Ela assentiu.

—Não podemos com todas, mas contra uma só talvez tenhamos chance. Garras, voe por aí e procure alguma que pareça ferida ou doente. -Imediatamente a cascavel-camaleão se transformou em um pardal e saiu para a ronda.

—Kira, acho que tenho um plano… -Darius se aproximou da menina e a encarou, pondo a mão em seu ombro. -Pode remover a audição de uma das dragonesas sem atrair a atenção das outras?

Ela meneou com a cabeça.

—É o seguinte: você deixa uma delas surda, uma que esteja afastada ou dormindo para que não veja as outras debandando. Feito isso, você se afasta do ninho com a Garras para te dar cobertura. Em seguida, faz o maior barulho que puder. Todas vão seguir na sua direção, exceto a surda. Manu e eu a matamos.

—É arriscado, Kira pode ser morta! -Advertiu Manu. -Serão muitas feras para ela combater.

—Ela não vai lutar. Depois que fizer o estrondo, peça para Garras carregá-la para longe, de volta para caverna. Acha que consegue, Silêncio?

A jovem bruxa concordou.

—Silêncio? -Manu estava intrigado.

—Sim, Manu. Ela não fala; logo, Silêncio é um bom apelido. -O elfo explicou. -Você gosta, Kira?

Outro aceno positivo.

—Então, hoje, em frente ao ninho das dragonesas, nasce Silêncio, a Bruxa do Som! -Ele fez um grande gesto abrindo os braços, como se parabenizasse alguém depois de entregar um prêmio.

—Silêncio, a Bruxa do Som… soa contraditório.

—A contradição faz parte da beleza refinada da alcunha! -Darius falava orgulhoso, com a mão sobre o peito, como faria um poeta ou um bardo ao recitar. Sempre fora amante da arte.

 

O pardal voltou e pousou no ombro do dono, metamorfoseando-se para a forma verdadeira.

—Alguma com aparência abatida? -Manu perguntou olhando nas pupilas verticais da cobra. -Darius, Garras disse que todas estão em perfeita forma.

—E ela tem alguma sugestão?

—Sim. Devemos atacar uma das mais jovens.

A mais jovem aparentava ter a mesma idade de Kira e voava em círculos sobre a cratera.

—Silêncio, é aquela. -Manu apontou.

Kira mirou as quatro mãos para o alvo, fez alguns movimentos para se certificar de que não erraria. Logo depois, trouxe todos os braços para trás com um puxão rápido. O animal pôs um dos dedos na orelha para coçá-la após sentir algum desconforto, mas, apesar disso, não houve alarme.

—Garras, você vai com Kira. Quando chegar a hora de fugir, transforme-se em algo muito veloz... um keneau, e a carregue para longe das dragonesas. -Não havia necessidade de falar, a mascote o entendia através do que Manu sentia e desejava, no entanto ele falava para que todos soubessem dos planos.

—Boa sorte, Silêncio. -Darius desejou, dando-lhe um abraço e um beijo na testa. E então Kira partiu com Garras nos ombros.

Manu e Darius esperaram até ouvir o barulho. Eles já estavam distraídos quando veio o estrondo, tão alto quanto um trovão de um raio que cai próximo, e pularam no chão com as mãos sobre a cabeça.

Como o planejado, todos os animais urraram e partiram voando em direção ao som. Todos menos um que continuava a voar, alheio a tudo ao seu redor.

—Se não fosse um estrondo tão forte a ponto de abafar o gritinho que eu deixei escapar, teria passado uma grande vergonha. -Darius ria.

—Vamos, não temos muito tempo!

 

Eles correram para o ninho, Manu armado com um punhal qualquer e Darius com a Presa de Elefante.

 

—Fique fora do campo de visão dela. -Pediu Darius. -Eu preciso mirar nos pontos onde o couro é mais fino ou a flecha não irá perfurá-la. -O elfo retesou o arco e esperou o momento. -Se ela cair, corra e fure os olhos e depois as asas. -Disse ele sussurrando.

A criatura continuou dançando no ar até que deu a Darius a oportunidade esperada: a seta zuniu e atravessou a região abaixo do queixo, perfurando a pele e a língua da dragonesa. Ela gritou e se debateu com as mãos na flecha, tentando inutilmente livrar-se daquilo que a machucava. Quanto mais puxava, mais se feria. Terminou por perder a atenção e foi derrubada quando um gêiser a golpeou.

—Agora, Manu!

Manu saltou sobre o animal e entrelaçou as pernas no corpo do bicho. A dragonesa se contorcia como uma lagartixa epilética e o fazia errar o olho. O saldo fora um mísero corte na testa da criatura.

—Darius, minha mochila! Tem uma corda dentro dela, tente amarrar esse demônio! -A bolsa de Manu havia sido esfrangalhada pela dragonesa e jazia caída próxima a ele, porém largar o bicho para pegar a corda implicaria deixá-lo fugir.

O elfo não seguiu o conselho, correu na direção dos dois e, com a ponta de uma flecha, começou a furar as asas da fera que guinchava e rosnava enfurecida, desferindo golpes de unhas a torto e a direito.

—Parece que ela ainda não amadureceu o suficiente para usar o fogo. -Explicou Darius. -Mas não podemos arriscar com o ferrão. -Ambos estavam completamente arranhados. Manu principalmente.

—O que quer que eu faça? -O humano-duende ainda tentava furar os olhos do animal, sem progresso.

Darius não respondeu de imediato, ponderou enquanto espetava o couro das asas com a ponta da seta, em seguida falou:

—Empurre a flecha do queixo dela! Force até que atravesse a cabeça dessa maldita.

Manu o fez. Tinha o corpo todo lavado de sangue e, quando forçou a flecha, mais sangue jorrou sobre ele. Junto a isso, veio um berro de dor do animal.

—Rápido, tive outra ideia! Passe-me o punhal. -Darius recebeu a lâmina e dilacerou as asas coriáceas do bicho. Furava na parte de cima, próximo ao chifre das asas e descia até a ponta de baixo, dividindo os ossos da membrana. Inutilizando a asa a cada rasgo.

O animal, ao se debater, conseguiu liberar a calda venenosa; mirou-a no rosto de Manu e ele, no mais puro reflexo combinado à sorte, agarrou o ferrão e desceu-o, com toda a força que alguém pequeno como ele vinha a ter, no peito nu da dragonesa. Os gritos que ela emitiu não se podem descrever, algo aterrador e medonho!

Darius havia destruído completamente as asas e, enquanto Manuel forçava o ferrão venenoso cada vez mais para dentro da fera enlouquecida, o elfo furou os dois olhos do animal.

Envenenada, mutilada, cega e surda; a criatura não tinha mais forças para lutar, foi então que as garras se acenderam com o fogo. A vontade de viver se acendeu junto às mãos, a dragonesa foi tomada por um novo frenesi, apertou os cotovelos de Manu com as unhas em chamas e desceu-as até o pulso dele. Manu largou o ferrão; a pele nos pontos tocados deixara de existir, ali havia apenas um retorcido de couro queimado e saque seco.

A dragonesa tentou se levantar mas o excesso de cortes lhe doíam até na alma. Caiu de joelhos, com a mão tocando a ponta ferrão que envenenara o próprio peito.

 

—Manu, saia daqui! -Darius mal conseguia sustentar o olhar nas queimaduras do amigo.

O elfo aproveitou a fraqueza da fera, pegou-a pelos cabelos desgrenhados e a arrastou até o gêiser mais próximo. O fogo das mãos não se manteve acesso por muito tempo e a dragonesa não ofereceu resistência a partir daí. Estava acuada, rendida, derrotada… queria que a morte a levasse depressa e para não sentir mais dor.

O elfo se abaixou, bateu a cabeça da dragonesa em uma fenda com toda a força que tinha e esperou… o gêiser veio depressa e a água quente cozinhou a cabeça do animal. Depois de cessar, tudo que restou foi o crânio e alguns pedaços de carne mole que ainda insistiam em se agarrar ao osso.

A dragonesa estava morta e Manu gravemente ferido.

 

***

Cena IV – Um Cadáver e um Ferido.

19 horas e 21 minutos. Reino Anão – Ruthure. Q.G. dos Guardiões das Chamas.

 

—Ajuda, depressa! -Darius entrou na caverna gritando. Carregava sozinho a dragonesa, e Manu vinha atrás com os braços enfaixados até o cotovelo com bandagens molhadas com água e sangue.

—Pelos Deuses Ancestrais! Onde vocês estavam? Kira chegou há duas horas e a cascavel-camaleão desde então tem estado enlouquecida! -Ezerk estava aliviado em ver todos vivos, mas esteve nervoso por horas e não se acalmaria em um minuto. -Bruxas Siamesas, ajudem Manu.

Darius jogou o corpo sem vida da dragonesa no chão e disse:

—Silêncio, que bom que está bem, voltei o mais rápido que pude. Estava louco de preocupação!

—Ela também, queria sair atrás de vocês, mas eu tive receio que saísse e acabasse morta, como imaginei que vocês estivessem… -Ezerk se largou no sofá velho do quartel-general, os archotes nas paredes criaram sombras macabras na pele negra do anão. Ele coçou a barba encaracolada e convidou todos os presentes a se sentarem com um gesto. Estavam todos na câmara com exceção do ferido Manu e das bruxas que o ajudavam. - Não permiti que ninguém saísse para socorrê-los… francamente, mandar que invadissem um ninho de dragonesas foi uma imprudência enorme. -Ao ouvir a represália, Urak se encolheu no canto da caverna. -Vocês tiveram sorte, poucas vezes vi sobreviventes de ataques de dragonesas e, nunca, em todos os meus setenta e cinco anos, ouvi dizer de ataque ao ninho dessas criaturas. O que aconteceu?

—Kira atraiu as mais velhas enquanto Manu e eu atacávamos essa aí. -Contou o elfo, indicando o bicho morto com um movimento da cabeça. -Ela queimou os braços dele, deixou-os em carne viva!

Hilda ainda não havia visto o corpo e, quando olhou a indicação de Darius e viu os ossos do crânio unidos ao corpo ensaguentado, vomitou. Cícero, que havia visto o cadáver, viu o que se passou na mente da cigana também e vomitou.

—Saiam daqui os dois… Urak leve o cadáver para a câmara pequena no fim da caverna e depois leve a cobra. -Ordenou Ezerk.

—Silêncio, como você se livrou de um enxame de dragonesas tão rápido? -Perguntou o elfo. Do rosto de Darius as únicas partes limpas eram as pontas das orelhas.

Kira revirou os olhos e disse através de um gesto que contaria depois. A garota sentia falta de falar, não suportava mais conversar por mímica.

—Vou-me lavar, não sei mais quanto do sangue é da besta e quanto é meu.

—Vá descansar, Darius. Amanhã será um dia histórico! Rei Rujavo Grutto, anunciará que se prepara para ressuscitar os Deuses Ancestrais e que ordenará a subida ao Monte Nublado em busca da cabeça de Harkuos!


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