A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 10
Capítulo 9




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Trigésimo nono dia do primeiro mês, ano 7302.

 

Cena I – A Primeira Aula.

05 horas e 56 minutos. Reino Humano – Feltares. Pátio interno, Palácio Real.

 

O dia se levantou frio, havia orvalho sobre a grama fina e cerração no ar. Kaegro estava de pé, no centro do pátio, quando seu pupilo chegou. Príncipe Franco havia escolhido peças de roupa mais condizentes com a condição de mago, vestia calças mais frouxas, camisa com mangas compridas e largas nas extremidades e, amarrada aos ombros, a capa com capuz. A coroa ficou de fora.

 

—Bom dia, mestre. -Saudou o príncipe, fazendo uma reverência ao mago.

—Muito bem, sem atrasos… esperava que não chegasse no horário, havia até preparado o sermão.

Franco não respondeu e Kaegro continuou:

—Indo direto ao ponto: o primeiro passo é escolher uma técnica. Quando estiver impecável nela, em cerca de cincou ou seis anos, eu posso ensinar outra. E então, tem alguma em mente?

—Eu pensei em tentar o fogo, senhor. -A voz de Franco tremia, em parte por medo de sofrer uma reprimenda e em parte por ver um ídolo de infância, ali, diante de si.

—Hum, torcia para que escolhesse isso! -Existia um quê de malícia no tom de voz do velho, um sorriso malvado curvava seus lábios. -Toque. -Mandou ele, ateando fogo ao chão e incendiando o capim.

—Como?

—Vamos, toque o fogo! Se desejar que ele não queime, ele não queimará.

—Sim, mestre… -Franco, ainda temeroso, agachou-se e estendeu a mão direita em direção às chamas. Ele sentia o calor e sabia que se queimaria, mas o mago o olhava de cima, com sua altura julgada como excessiva pelos padrões humanos, desafiando-o com os olhos a desistir e, por isso, ele criou coragem e tocou o fogo.

Quando o príncipe sentiu a chama, retirou a mão automaticamente por reflexo e por dor; chamuscada e ferida. Ele se levantou e olhou para o mago, ignorando a ardência e disse:

—Não funcionou, mestre.

—E porque você, na dúvida, não pôs a mão esquerda no fogo? Se queimasse a mão esquerda o dano seria o mesmo, entretanto teria a mão principal boa.

—Eu pensei nisso, mestre. Sou canhoto… por isso pus a mão direita.

Kaegro se surpreendeu com o raciocínio do menino. Ele queimou a mão direita, mas sendo canhoto, isso não o impediria de continuar.

—Devo admitir que começou bem, Franco. -Aquilo encheu o príncipe de confiança. -Deixe-me esclarecer umas coisas: você pode aprender a dominar qualquer ramo da magia, porém cada um tem aquele no qual se sai melhor e é essa trilha que você deve seguir inicialmente.

—Como descubro qual é?

—Essa parte não será fácil. Mas sabemos que não é o fogo. Qual a próxima técnica que quer tentar? -Franco havia começado a ganhar o velho. Kaegro estava louco para descarregar grosserias sobre o menino, mas o príncipe realmente era inteligente e isso conquistou o mago.

—Raios, mestre.

—Hum, afaste-se uns quinze passos e fique de costas. Quando se virar para mim, saberei que está pronto e atirarei um raio em você. Pare-o ou desvie-o antes de ser atingido.

—Mestre, eu ainda não tenho nenhum treinamento!

—Ora pois, e isto que estamos fazendo aqui é o que? Ande logo!

Ele contou os passos e ficou de costas até ter certeza de que estava preparado. Depois de alguns segundos, respirou fundo, virou-se rapidamente e viu o mago fazer um movimento em ângulo, de cima para a frente, seguido de um clarão amarelo.

O príncipe estendeu as duas mãos para a frente, cerrou os olhos e esperou o golpe. O raio o atingiu e o impacto o lançou dois metros para trás.

—Levante! -Mandou o mago com um grito. -Um raio de verdade tem duzentas vezes mais poder que este.

Franco cambaleou por um momento antes de se por de pé. Tinha marcas chamuscadas nas roupas e na pele e os cabelos estavam arrepiados pelo choque.

—Mestre, como faz os feitiços sem pronunciar palavras mágicas e sem nenhuma arma mágica? -Esperto, Franco resolveu distrair Kaegro e ganhar mais tempo para se recuperar.

—Eu memorizei muitas palavras, só preciso pensar nelas… e eu uso um artefato mágico. -O velho subiu a manga do manto e mostrou bracelete no punho; largo, prateado e com uma gema alaranjada e redonda na extremidade. -Qual a próxima tentativa?

—Ah, luz.

Kaegro riu de deboche e respondeu:

—Já está procurando algo que não o machuque? Ouça: tudo aqui vai te causar dor, eu só ensino magias ofensivas, até mesmo as proteções.

—...Gelo.

—Venha cá. -Franco andou até ficar de frente para o mestre. -Dê-me seu braço. -Kaegro segurou o pulso do menino com sua mão gigantesca e disse:

—Meu toque vai ficar cada vez mais frio até que comece a congelar seu braço. Você tem duas opções.

—Quais são elas, mestre?

—Resistir ao gelo e ser congelado sem sofrer danos, da mesma forma que tentou com o fogo… ou impedir que seu braço congele forçando o gelo a derreter.

—Certo, eu estou pronto.

O mestre aumentou o aperto no punho do discípulo e, como combinado, o toque foi esfriando cada vez mais. Uma camada fina de geada começou a se formar sobre a pele do príncipe e foi-se tornando mais espessa.

Franco sentia medo. Não conseguia ignorar o frio e tampouco fazer o gelo derreter. A crosta de geada já cobria-lhe o cotovelo quando ele resolveu improvisar: em vez de seguir as instruções de seu mestre, o príncipe optou por fazer algo que Kaegro não esperasse e, talvez, surpreendê-lo e livrar-se do aperto glacial.

O príncipe, então, pôs-se a redirecionar o poder de Kaegro, absorvendo-o e liberando-o contra o mago, passando assim a congelar o braço do velho ao mesmo tempo em que o seu era congelado por ele. Franco havia conseguido, ele produziu gelo da mesma forma que seu mestre, pelo toque.

—Muito bem, Franco… -Disse Kaegro o soltando e desfazendo o gelo como se ele nunca houvesse existido. -Importa-se de me mostrar suas orelhas? -O mago nunca antes vira alguém com aptidão suficiente para mostrar apontamentos mágicos no primeiro dia de aula. Ele mesmo levara semanas para conseguir um resultado.

Príncipe Franco hesitou, mas, ainda assim, afastou o cabelo que lhe cobria uma das orelhas. Pontuda, como as de um elfo.

O velho mago não se surpreendeu, ele esperava aquela visão, e falou com voz calma:

—Eu sei que a Rainha Tenniza é uma elfa, mas não imaginava que você também fosse. Um dos teus Charmes Élficos é Inteligência, certo?

—Sim, meu único Charme. Sou híbrido, mestre. Só Ulisses é puro elfo e tem três, ele herdou apenas o sangue da nossa mãe… isso também o impede de ser rei no futuro, ainda que seja o primogênito. -Explicou Franco.

—Compreendo. O tratado de número dois, Realeza por Espécie… “A cada espécie é destinado um reino e em seu trono somente o rei da espécie real poderá repousar”.—Recitou. -Feltares só pode ter reis humanos.

—Exatamente. Por isso meu irmão do meio, Adam, é o herdeiro da coroa. -Franco tornou a esconder as orelhas sob o cabelo.

—Não as cubra! -Kaegro ralhou. -Eu sou humano e gigante. Híbrido assim como você. Isso não é vergonha nenhuma, muito pelo contrário.

—Como assim, mestre? Sempre me senti deslocado, nem elfo nem humano… vira-lata como por vezes ouvi os empregados cochichando ao falar de mim.

—Eu tenho as melhores características dos gigantes e dos humanos, sou forte e resistente como um gigante e ao mesmo tempo mágico e compreensivo como um humano.

O príncipe parou para pensar no assunto, ainda não tinha total certeza se concordava.

—Se não ficou claro ainda, pense o seguinte… -Kaegro lançou um jato forte de ar no rosto do garoto, trazendo as orelhas pontudas de volta à luz. -Mesmo humanos levam tempo para aprender a dominar a magia, são mágicos, contudo não controlam de imediato. Só os feiticeiros têm esse dom. Seu Charme fez com que você não só manipulasse o gelo sobre sua pele, mas também criou uma outra opção para resolver o problema que eu criei. O seu lado elfo-inteligente ajudou seu lado humano-mágico a ter sucesso. Então não esconda mais as orelhas, elas são a marca de que você não é humano. É também elfo.

—Como quiser, mestre.

—Fim da aula. Esteja atento, a qualquer hora posso marcar outra.

 

***

 

Cena II – A Proposta.

10 horas em ponto. Reino Humano – Feltares. Mansão Goatath.

 

O cômodo usado como sala de aula pela senhora Goatath se encontrava apinhado de animais e crianças correndo enlouquecidas na tentativa de controlar seus bichinhos.

—Podem deixá-los soltos mesmo. -A professora Layla Goatath se entregou e desistiu de pôr ordem nas criaturas. Ali havia gatos, cachorros, coelhos, sapos, esquilos, galinhas e uma infinidade de outras criaturas. -Bem, crianças, o importante é que hoje aprenderam os conceitos de habitat, predação e competição… -Senhora Goatath é uma duende, isso faz com que ela tenha a mesma altura que os humanos têm aos dez anos de idade. Mesmo assim, não tinha a autoridade ou o respeito que impunha sobre os alunos diminuídos. -Alguém pode dizer mais alguma coisa que conseguiram perceber hoje?

—Professora… não é bem o assunto de hoje, mas eu queria saber mais sobre a União Real. -Disse Isaac, trancando seu esquilo em uma gaiola de madeira.

—Especificamente o que quer saber, Isaac?

—Sobre os tratados.

—Crianças, atenção, isso é importante. -Todos pararam na hora o que faziam e concentraram a atenção na professora. -Cada tratado da União Real é uma lei, mas essa lei tem muito mais peso e se aplica a todos os seis reinos. Cada reino tem suas leis próprias específicas, porém é também regido pelas leis universais da União Real.

—Eu soube que, para o tratado ser validado, antes ele tem de ser votado… os reinos que discordam dele também têm de seguir a norma? -Perguntou o menino.

—Isaac, você é mesmo muito sagaz. -Parabenizou a professora. -Bem, vou usar o exemplo dos elfos: em Eyrell, até quarto milênio, antes da criação da União Real, a coroa era passada para o primogênito, sem distinção de sexo; logo, houve muitas rainhas comandando os elfos. Seus maridos eram reis porque se casaram com rainhas, mas o poder de governante era das rainhas, nesses casos.

—Hoje o trono é sempre do primeiro filho homem… -Completou um aluno gordinho de cabelos espetados.

—Exato. A União Real causou uma revolução muito acentuada na forma como a sociedade élfica era organizada e, até hoje, arrisco dizer, há certo ressentimento por parte dos eyréllicos por conta disso.

—Professora! -Chamou uma outra aluna da turma e, a julgar pela expressão facial e o tom de voz, ela parecia indignada. -Os elfos, então, foram obrigados a mudar por causa de um tratado mesmo tendo votado contra a criação dele?

—Isso mesmo.

—E o Tratado de Número Cinco? O que pode nos contar, professora? -Como sua tia Meline havia pedido, Isaac procurou saber mais sobre a lei que regulamenta feiticeiros e magos.

—Eu tenho um livro aqui que contém os termos dos tratados, só um minuto. -A senhora Goatath correu os dedos pelas prateleiras recheadas com livros e tirou de uma delas um empoeirado, de tamanho médio e capa cinza. -Aqui está, todos prestem atenção agora, eu vou lê-lo e depois que terminar você me diz o que pensa sobre ele, Isaac, e então discutimos em conjunto com a turma.

 

“-Número V – Tratado de Controle da Magia

 

Está vetado o uso de magia por mulheres, salvo no caso das nascidas feiticeiras, pois a índole feminina é perigosa, traiçoeira e vingativa; por tais motivos aqui mencionados e por outros diversos, instaura-se este tratado.

Toda mulher não feiticeira que venha a ser praticante de magia será tratada como bruxa. A pena para desobediência do tratado aqui firmado é morte por fogo, sob o crime de bruxaria.

Se houver uso de mágica proibida por parte das feiticeiras, assim como uso nocivo das técnicas legais, estas também serão queimadas vivas sob a mesma acusação. O mesmo se aplica aos magos e feiticeiros homens pegos no exercício de técnicas proibidas ou fazendo mau uso de técnicas lícitas de magia.

As técnicas proibidas são todas aquelas que tenham ligação com Necromancia, Controle Temporal, Manipulação de Almas, Invocação de Demônios, Alteração de Destino, Imortalidade, Maldições e Sacrifícios. A Dominação Telepática pode ser considerada como mágica proibida a partir do momento em que passe a ser usada para manipular um reino a fim de fazê-lo voltar-se contra outro ou, de maneira geral, incitar motins, rebeliões ou guerras.”

 

—E então, o que acham? -Indagou a professora, recebendo uma salva de vozes as quais diziam muitas coisas variadas, entre elas: injusto, desigual, não é nada demais, concordo, discordo e daí em diante.

—Isaac, o que você acha? -Todos o olharam agora que a pergunta era direcionada somente a ele.

—Eu discordo.

—Por que?

—Porque a proibição do estudo da magia deve-se aplicar a todos ou a ninguém.

—Na sua opinião, eu posso estudar magia mesmo não tendo nascido agraciada com o dom da feitiçaria e sendo mulher?

—Eu não vejo razão para não, desde que só faça o bem com a magia. -Algumas crianças concordavam com ele, outras olhavam-no achando tudo o que ele falava um absurdo.

—Muito bem! Crianças, vocês todos deveriam conversar mais com Isaac Sereel sobre os assuntos das aulas, em vez de só jogarem conversa fora.

—Obrigado, professora. -O menino estava radiante, os olhos azuis despejavam alegria.

—Bom, ainda temos tempo de aula, mas eu preciso arrumar toda essa bagunça, então podem ir. Estão dispensados.

As crianças ficaram chateadas, com exceção de uma ou outra mais preguiçosa que comemorou a saída antecipada. O assunto estava envolvente e os alunos tinham desejo de saber mais.

 

—Isaac, venha cá, por favor.

—Sim, o que deseja, senhora Goatath?

—Eu gostaria de conversar com seus pais, mas quero conversar com você primeiro.

—Sobre o que?... -Por mais que não tenha feito nada errado, toda criança se assusta quando um professor lhe diz essas palavras e com ele não foi diferente.

—Você é muito inteligente, maduro e esforçado para a sua idade e eu gostaria de te propor uma coisa.

—Que alívio! Por um momento achei que estava encrencado. -Eles riram.

—Eu quero prepará-lo para que possa explorar toda a sua capacidade. Você vai estudar mais conteúdos, por mais tempo e mais vezes por semana. E depois, quando estiver pronto, eu vou bancar suas aulas na escola do reino.

—Como!?

—Isso mesmo que ouviu. Vou prepará-lo para que possa ir para um lugar onde aprenderá muito mais e com mais recursos.

O menino segurava as lágrimas. De longe era possível vê-las dançando, brilhando no mar azul de cada íris dos olhos dele, prontas para rolar.

—Você aceita? Aviso que não vai ser um trabalho fácil. Nós ainda precisamos trabalhar suas maneiras e… -O menino a interrompeu com um abraço.

E as lágrimas de felicidade escorreram.

 

***

 

Cena III – O Bilhete.

10 horas e 44 minutos. -Reino Humano – Feltares. Casa dos Sereel.

 

—MÃE! -Gritou um Isaac entusiasmadíssimo, chutando a porta ao entrar. -Olha isso, mãe! É da senhora Goatath!

—O que você aprontou? Por que você está todo ralado e sujo de terra?! -Mary falava e batia as roupas do filho com o pano de prato úmido, tentando tirar a sujeira.

—A aula terminou mais cedo, eu vim correndo aí tropecei nas pedras do calçamento lá perto do boteco do senhor Raimundo, caí e rolei ladeira abaixo. -Ele falou tudo tão depressa que era difícil entendê-lo. -Leia logo, mãe!

Mary, ainda desconfiada, desenrolou o pergaminho e leu em silêncio. As vezes lançava olhares surpresos ao filho e voltava a correr a carta, lendo o mais rápido que podia.

 

—Isso é verdade, meu filho? -Perguntou, cheia de carinho. -Porque, se não for, você está muito encrencado por brincar com coisas tão sérias! -E lá se foi o carinho.

—É sério, mãe! A senhora Goatath quer me ensinar tudo o que ainda falta, para depois me matricular na escola da nobreza, e ela vai pagar tudo!

—Parabéns, querido! -Disse Mary emocionada comum abraço apertado no filho. -Amanhã seu pai e eu iremos lá depois da aula para acertar tudo. Que os Deuses a abençoem.

 

***

 

Cena IV – A Caminho da Assembleia.

Mesmo dia, 11 horas e 50 minutos. Reino Elfo – Eyrell. Castelo Real.

 

—Saudações, Rei e Rainha dos Elfos. Eu sou Nyra Anthe, nomeada pelo Rei Henrique de Oroada como sua representante. -Nyra entrou no salão dos tronos dos elfos vestida em roupas de nobreza. Um vestido longo de mangas compridas, cor de laranja, corte reto, bem justo na cintura e com uma cauda média atrás. Os cabelos castanhos e cacheados continuavam em duas tranças com fitas da mesma cor que o vestido.

—Seja bem-vinda em nosso castelo. -Rei Zadell falou, levantando-se do trono e descendo os quatro degraus. A Rainha Maya e ele também estavam em suas melhores roupas; verdes, na cor do Reino Elfo. Decidiram por abandonar o luto antecipadamente. As coroas refletiam as luzes coloridas dos vitrais nas janelas em um brilho encantador.

—Siga-nos, o feiticeiro real nos mandará para Ramavel por teletransporte.

 

***

 

Cena V – Conflitos, Injúrias e Traição.

Meio-dia. Reino Gigante – Ramavel. Câmara de Reuniões, Palácio Real.

 

Todos os reis e rainhas estavam presentes, com exceção dos anões. Na sala azul de formato circular e teto abobadado onde se daria o debate, havia seis tronos grandes organizados em semicírculo, de frente para um pequeno palanque de dois degraus. Estes eram para os reis. À direita do trono imponente de cada rei, havia um trono mais singelo, posicionado levemente mais atrás, para as rainhas. Cada trono tinha o tamanho ideal para acomodar bem as diferentes anatomias e estaturas das diversas raças humanoides.

Cada assento levava a cor do reino representado e sobre cada um deles havia o respectivo estandarte, pendendo de uma armação de metal presa às paredes. Da esquerda para a direita estavam dispostos os reinos na seguinte ordem: Gigante, em azul; Kvarbrakoj, em amarelo; Humano, em lilás; Elfo, em verde; Duende, em laranja e Anão, ainda com os tronos vazios, em vermelho.

Como sempre, o trono para o Rei Duende estava ocupado por um representante, desta vez Nyra Anthe que, na verdade, é a princesa Mydorin Jaatar disfarçada. O trono da rainha permaneceria vago durante toda a assembleia.

Os monarcas conversavam, ao menos os que não guardam rixas do passado uns com os outros. Nyra buscava apoio nos elfos e, sempre que atirava olhares para Rainha Maya ou Rei Zadell, eles lhe acenavam com a cabeça, encorajando-a.

Subitamente as portas de madeira nobre da sala rangeram e por elas passaram dois seres medindo entre um metro e um metro e cinco. Rei Rujavo e Rainha Conaro entraram arrastando pesados casacos e capas, feitos com pele de animais; o clima frio das terras geladas de Ramavel é muito diferente do calor das terras vulcânicas de Ruthure. Eles saudaram os presentes, em especial os aliados Kvarbrakoj, Rei Néfor e Rainha Julee; e, após os cumprimentos, sentaram-se.

 

O Rei Gigante se levantou e caminhou até o patamar central.

—Sou imensamente grato por vossas presenças. Sem mais procrastinar, lerei o registro das falas da Deusa Harkuos. -De frente para todos os outros reis e rainhas de Zaatros, Rei Danan iniciou a leitura:

 

—Tempos penosos aguardam na aurora. Não devo interferir no destino dos homens, contudo não devo deixar os inocentes perecerem.

Três informes lhes darei: Protejam-se e armem-se contra o fogo… Atentem para as aparências e tenham cuidado. Nem tudo é o que demonstra ser… Tenham prudência acerca de vossos aliados.”

 

—Como não compreendi, pedi que me explicasse novamente, e a Deusa disse:

 

“Primeiro: o inferno é frágil como vidro.

Segundo: cautela com lobos em peles de cordeiro.

E terceiro: a Condenada se diz vossa aliada.”

 

—Bem, gostaria de questionar Zadell, o Rei Elfo. -Disse Rei Danan após a enrolar o papiro e guardá-lo na manga do manto.

—O que deseja saber?

—Sobre o trecho “O inferno é frágil como vidro”… recentemente uma pedra foi roubada de vossa coroa. Que pedra era aquela?

—Chama-se gelo perene. -Respondeu Zadell, de pronto.

—Então creio ter decifrado o primeiro alarme. -Concluiu o Rei Gigante. -Os Infiéis usarão a arma mágica conhecida como Inferno Congelado. A pista “O inferno é frágil como vidro” é bem sugestiva.

Em seu trono escarlate, o Rei Anão estremeceu… Estavam na pista certa. A maldita Harkuos sabia dos planos de alguma forma e passara pistas aos seus seguidores.

—Minhas investigações particulares apontam para a mesma direção, Rei Danan. -Confirmou Zadell.

—Perfeito. Sugiro erguer uma cúpula protetora ao redor do Monte Nublado. A favor?… -Questionou o Rei Gigante erguendo a mão.

 

As rainhas não opinam sobre o palanque, mas participam das votações. Normalmente votam o mesmo que seus maridos, e é comum que os reis combinem antecipadamente essa estratégia. Isso engrossa o voto do rei, mas, por outro lado, torna dispensável a opinião das rainhas nas decisões. Muitos reis forçam suas rainhas a sempre votarem com eles.

Foram sete mãos que permaneceram abaixadas. Sete votos contra: por parte dos anões, Rujavo e Conaro; dos elfos, Maya; dos kvarbrakoj, Néfor e Julee; dos humanos, Tenniza e dos duendes Nyra.

 

Rei Danan ficou furioso, mas nada transpareceu, como é de costume entre os gigantes.

—Razão. -Questionou ele e voltou ao trono para que um dos contra tomasse seu lugar à frente e se explicasse.

O Rei Anão deixou seu trono e andou até o centro do semicírculo:

—Seria um gasto inútil de recursos. -Começou Rujavo. -Os anões não vão financiar um centavo.

—Isso não é justificativa, Rei Rujavo. -A voz partiu do trono verde de Rei Zadell.

—Hum, não sabia que tinha voz, Rei Zadell. -O anão provocou. -Achei que vossa rainha fosse quem desse as cartas.

—A sociedade dos elfos é igualitária, não existe distinção de poder entre homens e mulheres e, por mim, o trono de Maya estaria posicionado ao meu lado e teria a mesma imponência que o meu!

—Cada louco com sua mania, não é mesmo? -Rujavo se divertia em provocar os elfos. -No dia que minha rainha questionar algo que eu disser, eu pessoalmente...

—O governo de Eyrell é como um jogo de xadrez. -Rainha Maya interpelou. Um feito histórico. Nunca antes uma rainha falou em uma assembleia da União Real, muito menos interrompera o discurso de um rei. -O rei comanda, planeja e articula as funções de cada um dos súditos. A rainha o protege, o instrui e governa ao seu lado. Todos somos inteligentes, homens e mulheres… então por que só os reis têm autoridade? -Os presentes estavam boquiabertos, com a surpresa estampada no rosto. -Todos me olham agora como se eu fosse uma criminosa, apenas porque falei. Não percebem como isto é primitivo?

Ela, não satisfeita só em se pronunciar, levantou-se do trono e postou-se no centro do semicírculo; cara a cara com o rei que zombava das tradições de seu povo. Rujavo, diminuto em seus básicos um metro e cinco centímetros, e Maya, na imponência de seus um metro e oitenta.

Rei Zadell também se levantou e, de mãos dadas com sua rainha, completou:

—...E nossa cultura só não é ainda mais igualitária por pressão externa dos senhores, membros desta união que mais segrega do que unifica. Um complô que favorece alguns e exclui o restante.

—Estou com os elfos. -Disse a rainha Tenniza. -Fui educada para ser tão importante quanto meu marido. -Era linda com seus cabelos pretos na altura dos ombros, sua pele delicada como porcelana e poderosos olhos puxados e pretos, isso tudo sem mencionar as orelhas de elfo. -Sou a Rainha Humana, mas não tenho sequer uma gota de sangue humano. Meu rei nunca se incomodou com isso e está mais do que na hora do restante do mundo aceitar a participação não só das rainhas e sim de todas as mulheres na construção de Zaatros. Não sou só a mulher de um rei... sou, ao lado de um rei, a rainha líder de um reino.

—Concorda com isso, Rei Juan? -Questionou o Rei Anão. -Para mim é um insulto e um desacato à minha soberania que Rainha Tenniza, por influência de Rainha Maya, interfira nos negócios. Ambas deveriam ter respeito, Maya principalmente… incitando revoltas inúteis e plantando ideias estúpidas na mente fraca das outras!

E o Rei Humano respondeu com toda a franqueza e calma:

—Sim, eu concordo. Concordo, em especial, com a parte onde a sapientíssima Rainha Maya disse “Não percebem como isto é primitivo?”.

—Basta! -Gritou Rei Danan em seu trono azul. -A assembleia é para discutirmos a mensagem da Deusa!

—Ah, bem lembrado, meu caro. -Rei Rujavo arrematou. -Porém me recuso a dar meus motivos enquanto não for o único foco. Rei e Rainha de Eyrell, por gentileza…

Zadell e Maya voltaram aos seus lugares, a contragosto, e Rujavo continuou:

—Sou contra a construção do nexus protetor porque Harkuos é uma farsa! Não passa de uma feiticeira tão antiga quanto o mundo, que acumulou poder suficiente para ter acesso a todas as mentes de Zaatros… É assim que ela se comunica com vocês, telepatia barata maquiada para parecer milagre. Espionagem!

—Herege! Como ousa insultar a Herdeira dos Deuses Ancestrais em sua morada!? -Rei Danan estava furioso, nem mesmo se incomodou em ocultar as emoções.

—Ela não é herdeira de nada! Os Deuses Ancestrais se foram sem deixar sucessores além dos Quatro Dragões Azuis. Se Harkuos fosse mesmo filha dos Antigos, ela tentaria ressuscitá-los… que tipo de filho não dedicaria a própria vida para rever os pais já falecidos? Ou vice-versa? Se há algum herdeiro estes são os Dragões Azuis, que ninguém vê desde o ano 600… Não duvido que sejam mantidos em cativeiro pela Louca do Monte Nublado!

—Não ouvirei mais uma palavra sequer sobre essa blasfêmia! Saia imediatamente do meu palácio, Rujavo.

—Não é prazer nenhum para mim estar aqui, Danan, mas antes de partir tenho coisas a dizer… -O Rei Anão pigarreou e ajeitou o manto rubro antes de voltar a falar. -Os Guardiões das Chamas têm o apoio de Ruthure e de Kaotheu.

Todos voltaram os olhos para os imensos kvarbrakoj em seus tronos amarelos, esperando que eles negassem.

—É mentira. -Falou Rei Néfor tensionando os quatro braços, como se ameaçasse Rujavo.

—Eu posso provar que é verdade. Néfor assuma seu papel nessa revolução! Por anos a base de operações foi nos desertos de Kaotheu.

O Rei Kvarbrakoj travou, em cólera, estava encurralado.

—Rei Zadell, por obséquio, para onde as anotações encontradas por sua guarda no dormitório do elfo Darius Quendra apontavam?

Zadell estremeceu ao ouvir o nome daquele que recebera em sua casa como genro e depois provocara o suicídio da filha e a depressão do filho. E respondeu com a voz embargada de memórias:

—Kaotheu, a poucos quilômetros da divisa com Ruthure…

—Eis a constatação do que digo! Kaotheu também apoia a causa. -O Rei Anão apontava o dedo para o céu enquanto falava, excitado pela revelação. -A partir deste momento, os Guardiões das Chamas estão absolvidos de todos os crimes e enquanto permanecerem em Ruthure, estão sob proteção do Exército Anão. Sendo qualquer investida feita contra eles em solo ruthurano considerada como declaração de guerra.

Rendido, o Rei de Kaotheu, teve que abraçar a fala do Rei Anão. Obviamente ele era pró Guardiões das Chamas, mas seriam quatro reinos contra dois. Uma clara desvantagem. Ainda que Oroada, com seus ideais duendes, não entre no conflito, seriam três reinos contra dois e os números continuariam desfavoráveis. Entretanto, se ele ficasse contra Ruthure, não teria aliado nenhum, pois uma vez que as cartas já estejam na mesa e todos saibam das reais intenções de Rei Néfor, só resta Rei Rujavo com os anões para apoiá-lo.

E Rei Néfor então falou:

—Faço das palavras de Rei Rujavo as minhas: Em Kaotheu os Guardiões das Chamas estão livres de todas as acusações, assim como qualquer ataque a eles em território Kaotheno será associado a uma declaração formal de guerra contra os kvarbrakoj.

—Então a partir de agora o Reino Gigante, Ramavel, é inimigo público dos Reinos Anão, Ruthure; e Kvarbrakoj, Kaotheu. Quem está comigo erga a mão, mas saibam que todo aquele que não se manifestar será também tido como inimigo de Ramavel.

Todos, sem exceções, ergueram as mãos. Nyra por último, ainda receosa.

 

—Com licença… -Era Nyra quem falava, em seu trono mesmo, sem se levantar. -Quantas guerras terão de acontecer até perceberem que… que a violência os faz caminhar para trás? A brutalidade faz a inteligência retroceder, minguar. Em mais de sete milênios os duendes prosperam, em nosso reino não há fome, praticamente não existe crime e grande parte das doenças fatais ao resto do mundo possuem tratamento e cura no Reino Duende… -Ela estava nervosa e fez uma pausa para respirar. O coração estava a escapar-lhe pela boca. Não pretendia dizer nada, mas, quando deu por si, estava falando.

Segurou as mãos para que não tremessem e continuou:

—Desde o primeiro milênio, existe em Oroada a dúvida se Harkuos é ou não é o que diz ser… muito antes do questionamento aparecer no restante do mundo. Nos demais reinos, só veio surgir neste milênio. Mas, mesmo assim, nunca ofendemos uns aos outros por termos visões diferentes.

 

Rei Danan ia levantar e parar o discurso, mas Rei Zadell pediu que esperasse:

—Ela sabe o que diz… -Sussurrou baixo para não interromper Nyra. -Se não fosse uma duende de sangue puro, eu diria que, com certeza, possui o Charme Élfico da Inteligência.

 

—Eu creio sim que Harkuos é a A Herdeira de Zaatros, mas não tenho vontade de atacar quem acha o contrário. Eu gostaria que pensassem nisso antes de tomar qualquer decisão. Em que interfere na minha vida a escolha ou decisão do outro? Até quando a fé vai ser motivo de guerra e não de paz?

—Palavras bonitas, senhorita. Mas o mundo real é diferente do mundo fantástico e utópico, onde conversar com animais é possível. -Falou Rei Danan.

Nyra abaixou a cabeça envergonhada e intimidada.

—Fez o melhor que pôde, querida! -Rainha Maya sussurrou para ela.

 

—Eu tenho algo a dizer. -Rei Zadell se levantou e foi ao meio falar, tomando o lugar de Rei Rujavo. -A União Real tem causado muitos danos à cultura élfica sem necessidade, como, por exemplo, essa desvalorização repugnante a qual as mulheres são submetidas. -Rei Zadell, olhou para a esposa. -E quando nós realmente precisamos de suas interferências, vocês se calaram… não foi movida uma palha para procurar o assassino da minha filha!

—Alto! Darius não a matou, ela se lançou da torre porque era mentalmente perturbada. -Rebateu Rujavo.

—Calado, abutre! Eu, em nome do bem-estar de Zaatros, estou deixando a União Real. Convido todos a me seguirem, para dissolver a cúpula. A favor?

As mãos erguidas pertenciam, por parte dos humanos, a Juan e Tenniza; dos duendes a Nyra; dos anões a Rujavo e Conaro e, dos próprios elfos, a Zadell e Maya.

Sete votos a favor.

A União Real estava desfeita e agora era cada reino por si.


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