A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 8
Capítulo 7




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Trigésimo oitavo dia do primeiro mês, ano 7302.

 

Cena I – O Peso do Luto.

07 horas em ponto. Reino Elfo – Eyrell. Castelo Real.

 

—Meu rei, minha rainha... -Apresentou-se, reverenciando, um dos guardas do castelo. -Um mensageiro ramaveno deseja vê-los.

—Mande-o embora. -Disse Rei Zadell. Ele, assim como a Rainha Maya, perderam a felicidade de governar desde o suicídio da filha. Eles têm outro filho, Hélio Jardais de treze anos, e que, mesmo antes da morte de Kayena, já era herdeiro do trono. Pela legislação dos elfos, Kayena seria a herdeira de direito por ser a primogênita. Contudo, o Tratado de Número Dois da União Real diz que o herdeiro deve ser sempre o filho homem mais velho.

—Diga que a mensagem foi recebida ontem por telepatia e que estaremos em Ramavel amanhã para a assembleia. -Rainha Maya concluiu para tentar suavizar a grosseria do marido.

Uma curiosidade: Diferentemente dos outros reinos, em Eyrell rei e rainha detêm o mesmo poder, da mesma forma que quaisquer outros homens e mulheres do reino.

—Sim, majestade. Com vossa licença… -E saiu.

 

—Maya, essa reunião é uma afronta! -O Rei comentou com sua rainha. Zadell acabou por desenvolver um tique nervoso após a morte da filha; vez ou outra, ele passa a mão pelos cabelos louros, longos o suficiente para cobrir-lhe as orelhas pontiagudas, e arranca um dos fios. Como fazia agora. -Quando ela… quando aconteceu… a União não se manifestou para nos ajudar. Não nos enviou sequer uma mensagem de conforto.

—Sei disso, Zadell. Também não desejo sair de Eyrell ainda em luto. -Não só a família real, mas também todos os funcionários e membros da realeza ou da nobreza, vestiam-se de preto. -Porém o chamado partiu da Deusa, não dos gigantes. -A rainha também tinha um cacoete: Desfazia e tornava a refazer a ponta da trança em seu cabelo preto.

Ainda que castigada pelo sofrimento de perder a filha, era uma mulher muito bonita; pele bem morena quase avermelhada, olhos amendoados e escuros como jabuticabas e cabelos longos e brilhantes, trançados e enfeitados com miúdas flores brancas.

—Como sempre, amada, tens razão. -Rei Zadell abraçou-a, enquanto caminhavam sem rumo pelos corredores do castelo.

 

***

 

Cena II – Desaparecida.

10 horas e 06 minutos. Reino Humano – Feltares. Boticário de Velma Cann.

 

—Bom dia, senhora Cann! -Catarina cumprimentou ao entrar na lojinha.

Havia pouco espaço e o pouco que havia era ocupado por estantes e prateleiras abarrotadas de frascos, ampolas, maços de ervas e todas essas coisas usadas em remédios e perfumes.

—Nós viemos saber como a Vívian está. -Meline falou.

—Ora, achei que ela estivesse com vocês. -Respondeu a mãe de Vívian. Eram exatamente iguais; pele clara, olhos escuros e cabelo preto e comprido. A única diferença de mãe para filha era que a rechonchuda Velma Cann possuía alguns quilos a mais. -Ela me disse que sairia com as Dragonesas.

—Sim, mas só saíram as mais velhas. -Catarina andava pela loja destapando e cheirando cada frasco de perfume ou loção para a pele que encontrava. -Elas foram beber enquanto Meline e eu ficamos em casa jogando cartas.

—As outras já voltaram e disseram que Vívian tinha conhecido um homem e que os dois saíram juntos depois de quase se matarem de pancada… -A maga acrescentou.

—Pela Deusa, então ela sumiu outra vez?!

—Calma, senhora Cann. Nós só ficamos preocupadas porque ela ainda não chegou e nós três combinamos de visitar o Hospital Central do reino. -Catarina mentia bem a ponto de acreditar na própria mentira. Na verdade ela criou a lorota ali na hora para encobrir a amiga.

—Tudo bem então… -Velma se acalmou. Abaixou-se atrás do balcão e tirou de lá uma cesta recheada com frascos de xarope. -Já que vão ao hospital, façam-me um favor. Entreguem isto na recepção.

—Sim, senhora. -Respondeu Meline apanhando a cesta. -Quando encontrarmos Vívian, mandaremos ela vir falar com a senhora.

—Sim, sim, façam isso. Se ela estiver machucada, diga que nem apareça ou eu mesma lhe faço novos ferimentos por cima dos antigos. -Velma é, na maior parte do tempo, uma mulher calma e gentil, mas a promiscuidade da filha é algo que acaba com seu bom humor. Para ela, não importava o risco que Vívian corria durante os trabalhos do clã, desde que a sua honra estivesse intacta. E há muito essa honra já fora maculada, diga-se de passagem. Vívian sempre foi muito bem resolvida sobre seu corpo e seus desejos; nunca se incomodou com a opinião dos outros quando a sua honra… para ela, honra reflete um conjunto de aspectos dos quais se exclui a vida amorosa de cada um.

—Nós diremos. -Catarina segurava o riso fingindo tosse, enquanto limpava as lentes dos óculos na camisa.

—Eu trouxe algumas beterrabas que cultivei hoje cedo. -Meline sabia que o encontro pesaria para o lado de Vívian, então levou um agrado para que a mãe da Dragonesa se ocupasse e esquecesse da raiva. -Espero que sirvam para alguma coisa.

—Ah, muito obrigada, querida! Servirão sim, farei bom uso delas. Seus dons são uma bênção. -Com “dons” Velma quis dizer “magia”. Ela é uma das poucas pessoas externas ao clã que conhecem o segredo de Meline.

—Por nada! Temos de ir, até mais. -Após se despedirem, as duas Dragonesas saíram apressadas do boticário.

 

—Acha que Vívian corre perigo?

—E quando ela não corre? -A assassina questionou e refez o nó que prendia as tranças rastafari no alto da cabeça.

Meline deu ombros e as duas seguiram para o hospital com a cesta de xaropes.

 

***

 

 

Cena III – Primeira Parada.

15 horas e 54 minutos. Reino Elfo – Eyrell. Entrada nordeste do reino.

 

—Nome, espécie, documentos e motivo de estar aqui. -Pediu o guarda dos portões de Eyrell. Na verdade era um portão simbólico pois, ao contrário de Oroada, Eyrell não possui muralha; logo, o portão era só uma passagem pela qual os forasteiros deveriam atravessar a fim de serem identificados e catalogados e terem, então, direito legal de estarem do reino.

—Nyra Anthe, duende. -Por um segundo, Nyra quase deixou escapar o nome Mydorin Jaatar e o título de Princesa Duende. -Eu venho por turismo, sempre vivi em Oroada e esta é a minha primeira parada depois de deixar meu reino. Este aqui é Calu, meu gnomo de estimação. -Ela entregou ao guarda o rolo de pergaminho que valia como identidade.

—Certo… indicação do Rei Henrique, pelo visto é uma pessoa importante. -O guarda olhava o papiro sem muito interesse. -Pegue isto, é o manual de conduta do cidadão eyréllico, nele a senhorita encontrará as leis que deve seguir claramente explicitadas bem como seus direitos. -O guarda entregou a Nyra o pequeno livro com o brasão dos elfos: duas flechas cruzadas sobre um escudo com seis estrelas ao redor.

—Obrigada. O senhor saberia me informar onde posso encontrar quartos para alugar?

—Siga por esta avenida e tome o caminho da terceira direita. Depois de alguns minutos, verá uma pensão com uma placa sobre a soleira onde se lê Seta Afiada.

—Mais uma vez, obrigada. Tenha um bom dia, soldado.

 

Nyra achou interessante a maneira como os elfos se relacionavam e passeavam despreocupados pelas ruas. Em Oroada, os duendes são extremamente corteses e profissionais; em Eyrell, os elfos agem de forma mais descontraída, mais leve. Ouve-se mais risadas no Reino Elfo.

Ela seguiu as instruções do guarda e dobrou na terceira direita, encontrando, em seguida, a estalagem.

Um lugar muito elegante e confortável, mesmo para quem vivera em um palácio rodeado de tudo do bom e do melhor. A Seta Afiada era construída principalmente com madeira, havendo também algumas partes da obra em alvenaria. Na recepção, a luz forte da Astral criava desenhos coloridos no assoalho ao transpassar os vitrais enormes.

Atrás do balcão, a atendente sorriu ao ver entrar mais um possível cliente. Ela não era tão alta quanto os outros elfos, na verdade tinha a altura de um humano; a pele muito pálida, como alguém que sente frio; os cabelos ruivos foram presos em uma trança frouxa que lhe caía sobre o ombro esquerdo, usava um brinco em forma de argola no lábio inferior e tinha grandes e expressivos olhos castanhos. O que Nyra mais admirava nos elfos eram as orelhas pontudas. Ela já as vira em gravuras de livros e fotografias, mas pareciam ainda mais bonitas e mágicas pessoalmente.

 

—Bom dia, senhorita! -Saudou a atendente. -Eu me chamo Tizana Caesh e sou a dona deste lugar! -Disse ela, orgulhosa. -Procura por um quarto?

—Bom dia, eu sou Nyra Anthe… -A duende estranhou o sobrenome da atendente. -Acaso tem descendência duende? Caesh é um nome frequente em Oroada.

—Sim, na verdade eu sou meio duende, meio elfa. Híbrida. -Respondeu ela.

—Curioso! Tizana, eu gostaria de um quarto bonito e bem iluminado como este saguão.

—Tenho um perfeito para você! Siga-me.

As duas subiram um lance de escadas e caminharam por um corredor, também cheio de vitrais, até pararem de frente para o quarto número dezessete.

—Aqui está a chave. Eu só preciso saber quanto tempo pretende ficar e quais serviços deseja. -Tizana tirou do bolso uma ficha de cadastro a entregou para Nyra. -Ao lado de cada serviço está listado o valor.

—Claro, logo mais eu a devolvo… agora preciso descansar um pouco, quase não dormi no navio.

—Muito bem, seja bem-vinda à Seta Afiada! A primeira refeição é cortesia da casa, o café estará pronto as quatro e meia. Fique à vontade.

—Agradeço a hospitalidade. Levarei a ficha preenchida quando descer para o café.

 

Assim que Tizana saiu, Nyra trancou a porta e sentiu a tentativa de contato de Leônidas, o tritão do Palácio de Oroada. Diferente da telepatia, o contato empático é confuso e de difícil tradução. Animais se comunicam de forma distinta dos humanoides racionais.

O tritão passou à Nyra informações de fácil entendimento, mas de sentido incompleto. Ele a instruiu a procurar alguém que pudesse decifrar melhor do que ele as informações que Rei Henrique tentava transmitir. E assim ela fez.

Desceu e perguntou a Tizana se havia algum espelho psíquico por perto. O espelho psíquico é um instrumento mágico inventado pelos humanos e voltado para a transmissão de pensamentos. Através dele, alguém não mágico é capaz de trocar pensamentos com outra pessoa que também possua um espelho e que o use no mesmo momento que o primeiro.

A recepcionista emprestou o próprio espelho a Nyra que parecia preocupada ao lhe pedir o objeto. Tizana não exitou em ir buscá-lo imediatamente.

 

De volta ao quarto, Nyra se olhou no espelho. Ela sabia que a mãe possuía um e que seria fácil o contato através da magia do objeto.

—Mydorin! -Chamou Rei Henrique. Atrás dele era possível ver o rosto de uma preocupada Rainha Saramã. -Como foi a viagem?

—Correu tudo bem, estou hospedada em um ótimo lugar. Qual o motivo da urgência?

—Está muito distante dos animais para receber e interpretar bem o que eles te dizem. Desde ontem tento contato.

—Providenciarei um espelho psíquico para mim o mais rápido possível, este é emprestado, agora me diga o porquê da urgência. Estou preocupada!

—Sim, certo. A Deusa enviou uma mensagem aos gigantes, algo inédito e muito importante. Eles marcaram uma assembleia com toda a elite da União Real. -Começou o Rei. -Como já está fora de Oroada e é da realeza, eu a nomeei como minha representante. Creio que tenha conhecimento e instrução suficientes para assumir o cargo.

Duendes da realeza nunca deixam Oroada, portanto nunca um Rei Duende compareceu às assembleias da União Real. Mydorin seria a primeira duende de sangue azul a participar, mesmo disfarçada.

—Como assim?! E o que houve com o antigo representante?

—Ele nos abandonou quando percebeu que tempos ruins se aproximam. Eu o condenei por covardia e traição ao reino. Ele optou por quarenta e sete anos nas masmorras ao invés do exílio.

—Ele só deveria estar com medo, pai! Temendo pela família dele. Quero que o absolva.

—Impossível, minha filha. Mas, de volta ao que interessa… a reunião será amanhã ao meio-dia e os gigantes já a reconhecem como minha representante. -O Rei era pura inquietação, falava rápido, enrolava a língua e tinha gotas de suor se formando na testa larga. -Conversei com Rei Zadell, tanto ele quanto a Rainha Maya disseram que não se importam em transportá-la até Ramavel.

—E o que espera que eu faça nessa reunião?

—Que defenda os princípios duendes e tente forçar um pouco de juízo na cabeça dos reis… exatamente o motivo de ter partido: preservar a paz.

Mydorin bufou. Mal saíra de Oroada, nem tivera tempo de aproveitar a vida tranquila de plebeia e já estava sobrecarregada com assuntos da coroa novamente.

—Muito bem, eu irei.

—Há mais: após a reunião, você receberá proteção vinte e quatro horas por dia. Ainda estou negociando com Zadell e Maya para que se mude para o Castelo Real de Eyrell… lá estará mais segura.

—Não sairei daqui! Parti de Oroada para ajudar os plebeus e me afastar de responsabilidades para com a realeza. Não force sobre mim mais deveres.

—Mydorin, você será rainha. É a única herdeira da Coroa de Oroada!

—Serei, mas ainda não sou. Irei a assembleia, mas rejeito escolta.

—Não tem escolha, sua mãe e eu estamos decididos.

—Então decidam também por fazer outro herdeiro. Se me cercarem de guardas eu farei questão de desaparecer do mapa e largar o trono sem um sucessor.

—Está me chantageando, criança?! -Ambos estavam vermelhos de raiva, uma emoção altamente destrutiva para os duendes.

—Sim, eu estou. E não me teste! -Disse uma furiosa princesa soprando o espelho, embaçando o vidro e cortando a conexão.

 

***

 

Cena IV – O Príncipe Chantagista.

19 horas e 07 minutos. Reino Elfo – Eyrell. Castelo Real.

 

Rei Zadell e Rainha Maya partiriam no dia seguinte para Ramavel e precisavam deixar alguém no comando de seu reino. Depois de uma breve conversa, decidiram que era hora do jovem Hélio passar a assumir o trono em ocasiões como esta, quando rei e rainha estiverem fora.

Hélio sofreu muito com a perda da irmã. Ainda sofre. Antes era um rapaz animado, sempre carregando o arco na mão e a aljava nas costas, praticando o que mais gostava. Agora anda azedo. Olheiras profundas. Sorri pouco. Logo, os pais resolveram dar a ele algo com o que se ocupar.

—Pequeno? -Chamou o pai batendo à porta do quarto do menino.

—Sim? -Respondeu ele sem emoção abrindo uma brecha.

—Eu e seu pai vamos visitar os gigantes e tratar de negócios da União Real. -Rainha Maya começou. -Precisamos que você assuma o trono nesse período.

—Eu… não posso. -Hélio tinha olhos inchados, como se estivesse chorando. Os cabelos, dourados como os do pai, estavam despenteados e apagados.

—Vai-te fazer bem, como um treinamento. -Encorajou Zadell.

—Também planejam partir como ela partiu? Abandonar-me como ela abandonou? Trair-me como o Quendra traiu? -O príncipe falava de Kayena e de Darius. Talvez, se Darius a tivesse matado, Hélio não estaria tão mal como agora. Porém o suicídio da irmã, a vontade dela de abrir mão da vida, o doía. Kayena desistiu de viver sem pensar duas vezes. Atirou-se da torre mais alta do castelo sem pensar no golpe que estava desferindo nos pais e no irmão, antes mesmo do golpe que desferiria em si própria.

Como os pais ficaram em silêncio, ele continuou:

—Preciso de treinamento para governar. Em breve irão também se atirar de uma torre e me deixar… do mesmo jeito que Kayena. -Um lágrima insistiu em cair, porém Hélio a conteve.

—...Nunca o abandonaríamos, Hélio, entretanto você deve entender que um dia chegará nossa hora e você precisará estar pronto. -Rainha Maya mexia na ponta da trança e não conseguia encarar o filho enquanto falava.

—Mais pronto do que estava quando sua irmã partiu… -Rei Zadell completou.

—Se eu ficar, prometam que vão abandonar essa aliança com os demais reinos.

—Querido, não podemos, é uma ques…

—Não me interessa! -Interrompeu o que a mãe dizia com um grito. Desde o trigésimo dia do mês, o dia do suicídio, oito dias atrás, era a primeira vez que o príncipe emitia emoção diferente da tristeza. -Desde que a União Real se firmou ela só tem dado prejuízo aos elfos! E não só a nós, como também aos duendes e aos humanos, nossos aliados mais fiéis!

—Tem razão. -Concordou o Rei. -Mas não podemos nos retirar da União Real, seria ainda mais prejudicial para nós. Eyrell seria o único reino fora da aliança e isso nos colocaria em posição desfavorável.

—Então prometa que tentará com todas as forças diluir a aliança.

—Meu filho, tente enten…

—Prometa!

—Sabe que não sou obrigado a fazer acordos contigo, não sabe? Eu sou o pai aqui e você, o filho. -Rei Zadell desistiu do tom conciliador e partiu para uma abordagem mais autoritária do que a inicial. -Não pode me forçar a nada, eu, se assim desejar, nomearei alguém para ficar em meu lugar enquanto estiver de viagem.

—Vá em frente. Aproveite e o nomeie também como herdeiro. -Hélio voltou ao quarto e fechou a porta sem trancá-la.

O rei e a rainha a abriram e invadiram os aposentos do príncipe:

—O que quer dizer com isso, Hélio?! -Perguntou uma preocupada mãe.

—Fui bem claro, tenho certeza. -Hélio pegou uma das flechas da aljava e apontou para o próprio pescoço. -Com qual velocidade um curandeiro destrancaria a porta do meu quarto para me reanimar após ouvir um grito sufocado em meu próprio sangue?

Os dois estacaram.

—Isto é, se ouvirem o grito. Não pretendo importunar ninguém…

—Prometemos! Prometemos tentar dissolver a União Real. Agora, por todos os deuses, largue essa maldita seta, Hélio! -O rei gritava, a rainha soluçava com o rosto escondido nas mãos. Mal foram separados de uma filha, se houvesse outra perda os dois enlouqueceriam.

—Muito bem. Peço perdão pela birra, contudo não me ouviriam de outra maneira. Agora, saberiam dizer onde deixei minha coroa? Precisarei dela.

 

***

 

Cenas V – Gigante Audácia.

20 horas e 14 minutos. Reino Humano – Feltares.

 

Kaegro Gorj finalmente havia chegado ao Reino Humano. O mago estava às portas do palácio e coçava a barba, grande o bastante para cobrir o pescoço, olhando para tudo com desdém. Júlio sentia no peito o alívio da missão cumprida.

 

—O Rei se recolheu em seus aposentos e não o receberá agora, senhor Gorj. -Fora um dos guardas quem dera a notícia ao velho.

—Faz-me rir! Ora, volte lá e diga a ele que venha imediatamente ou que procure outro mestre para ensinar o filho! -Respondeu Kaegro, em desagrado. -Não fiz uma viagem tão grande para chegar até aqui e ser recebido com portas fechadas.

O guarda se zangou com o tom do mago, mas, sendo Kaegro Gorj um nome ilustre e dono de incontáveis títulos de reconhecimento, mesmo que em outro reino, não poderia ele o tratar com a ignorância que desejava. Apenas olhou-o de baixo e disse:

—Farei o possível.

—Eu agradeço. E tu, mensageiro, para me rodear, eu não preciso de outra sombra. Já tenho a minha e ela me é mais do que suficiente.

 

O soldado voltou para o interior do palácio e o mensageiro seguiu o caminho de casa. Decidiu que voltaria no dia seguinte para receber o combinado pelo trabalho infeliz de acompanhar um velho mago ranzinza.

Ali, do lado de fora sob a fraca luz do Raus, Kaegro esperou o guarda retornar acompanhado pelo rei. Não muito se passou e o portão foi aberto para que ele entrasse no imenso e imponente salão. Tudo reluzia e era decorado em tons violeta.

 

—Meu rei, este é Kaegro Gorj, o escolhido para ensinar magia ao Príncipe Franco. -Falou o guarda. -Senhor Kaegro, este é o Rei Humano, Juan Travelier. -Dito isto, ele se retirou a um canto afastado para que os dois ficassem a sós.

O rei caminhou até o trono, sentou-se e fez um gesto com a mão para que o forasteiro falasse.

—Majestade, gostaria que ouvisse meus termos de trabalho antes que tenhamos maiores desentendimentos no decorrer das aulas de vosso filho. -No fim das contas, o mago sabia até onde poderia ser grosseiro; mais do que isso: ele sabia com quem poderia ser grosseiro. Um rei passa longe dessa margem.

—Seja breve, ia-me retirar quando chegou. Tenho compromissos em seu reino natal pela manhã. -O Rei Humano era menor que o mago de sangue híbrido. A pele era morena, quase negra; os cabelos, muito grossos e ondulados, caíam-lhe até a altura da gola do manto e os olhos tinham cor de madeira quando molhada.

—Pois bem… eu não tenho horário fixo para trabalhar, a qualquer momento posso iniciar uma aula, assim como encerrá-las quando bem entender. Algo contra?

Rei Juan fez que não com a cabeça e Kaegro continuou:

—Então, por favor, manifeste-se quando não estiver de acordo ou quando o que eu disser não for claro… Continuando: disciplina é indispensável. Não vim até aqui para ser amigo de vosso filho, e exijo respeito. O príncipe se referirá a mim apenas por “mestre” ou “senhor” e só dirá meu nome se for precedido por estes tratamentos. Exijo obediência completa. Para mim, só é possível ensinar quando as minhas ordens são seguidas.

—Alto. -Cortou o Rei. -Como quer exigir obediência e dar ordens a um príncipe? Isto é um desrespeito à coroa.

—Durante as classes, Franco será apenas um aluno, e alunos obedecem seus mestres. Fora delas… bem, fora delas, não faço questão da companhia do príncipe.

—Adiante. - Pediu Rei Juan, em desagrado.

—Para meu pagamento, não aceito menos que quinhentas moedas de ouro semanais. Exijo também um aposento à altura da casa que possuo em Ramavel, um título de nobreza e o poder de polícia. E que também receberei pagamento equivalente a trinta e cinco semanas de trabalho, caso o príncipe abandone as aulas antes de se formar mago.

—Alto! Quer, além de um absurdo em ouro, uma mansão, um título de nobreza e o poder de prender meus súditos?!

—Exatamente. E, é óbvio, o poder de polícia será usado quando necessário e de acordo com as leis deste reino.

—É demasiado! -O rei desceu o punho sobre o braço do trono, irritado.

—São as minhas condições.

—Vamos, adiante com este absurdo! -Rei Juan se sentia saqueado, Kaegro cobrava muito dinheiro em troca do serviço e, além disso, pedia também cargos e títulos políticos em um reino do qual não era parte.

—Não há como praticar magia sem sofrer ferimentos, sobretudo no início dos estudos; logo, entenda que o príncipe voltará das aulas esgotado, machucado e faminto. Muitos destes ferimentos serão causados por mim mesmo no…

—Queres permissão para atacar meu filho!? -Bradou o Rei. -Enlouqueceu?

—Mágica é usada para infinitas causas, Rei Juan, entre elas cura, arte e filosofia. A magia que ensinarei ao príncipe não é pacífica, muito pelo contrário. É mágica bélica, usada para autodefesa e ataque. Se deseja que ele não se machuque, insisto que busque outro mestre que lecione para ele um distinto ramo da magia.

—Minha pergunta ainda não foi respondida. -Rei Juan estava pelas tampas com aquela conversa, pronto para mandar prenderem o mago ou executá-lo diante de todos os seus súditos, tamanho era o desrespeito.

—Magia ofensiva se pode considerar um esporte de contato. Se não quer que Príncipe Franco se machuque, matricule-o no teatro.

—Guardas! Para as masmorras com o mago! -Ordenou um rei furioso.

Os guardas se puseram a cercar Kaegro porém, antes que o tocassem, foram repelidos por um campo de força invisível. A proteção se erguia cerca de um metro e meio ao redor de mago e repelia os avanços da guarda.

—Sabia que cedo ou tarde faria isto, majestade. Então, entrei preparado. -Seguro em sua cúpula de proteção, o velho sorria ao ver o esforço inútil dos soldados em golpear a bolha com suas espadas as quais a cada golpe perdiam mais e mais o fio.

—Eu sairei após terminar de falar. -Prosseguiu ele. -Eu não ensino técnicas proibidas, por uma questão ética. Conheço algumas delas, mas não as ensinarei, independentemente do quanto me ofereçam. Isto é, se ainda me quiser como mestre do príncipe…

—Saia do meu palácio, antes que o condene e ponha assassinos no seu encalço! -Gritou o rei.

—NÃO! -Outra voz gritou, a voz do Príncipe Franco Travelier, vinda detrás do trono do pai. -Eu aceito os termos… mestre.

—Franco, não tem de aceitar nada. Amanhã mesmo encontrarei outro que o ensine.

—Mas eu quero aprender com ele, pai. Kaegro Gorj é o maior mago de Zaatros! -Exclamou o menino. -Ele já venceu até bandos de feiticeiros sozinho!

Kaegro ainda sorria, vitorioso, no interior de seu casulo invisível.

—Criança, este velho é insano! Ele…

—Pai, eu ouvi os termos e estou decidido. -Cortou o príncipe. -Por favor, assine o contrato. -Franco é bem parecido com o pai, as exceções são a pele, bem mais clara que a do rei e os cabelos lisos, como os da mãe.

—Pois bem, criança... Mago, embora eu aceite as condições, esteja ciente de que mandarei queimá-lo vivo sob pena de bruxaria caso meu filho venha a se queixar de seus métodos! -Era uma ameaça de fogueira, a maior desonra para um mágico que segue a lei. Já para um mágico desonesto, um bruxo, era o reconhecimento póstumo de sua periculosidade e prestígio.

—Também aceito os vossos termos, majestade. Gostaria que ordenasse aos guardas que parem de cegar lâminas golpeando meu campo de força.

—Guardas, cessar ataque.

As espadas voltaram às bainhas e o mago desfez a bolha.

—Quando começará a ministrar as aulas, mestre? -Perguntou o príncipe, ávido por iniciar o treinamento.

—Amanhã, quando a Astral se levantar.


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Notas finais do capítulo

A história está completa, mas prefiro postar aos poucos...
Um capítulo novo pontualmente toda sexta-feira :)



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