A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 4
Capítulo 3




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/718736/chapter/4

Trigésimo sexto dia do primeiro mês, ano 7302.

 

Cena I – Investigação.

09 horas em ponto, Reino Elfo – Eyrell. Quartel-general da Guarda Real.

 

—Está claro que foi um ataque planejado. -Dizia César Iros, o capitão da guarda, enquanto caminhava de um lado para o outro, sendo observado por seus subordinados. -Mas talvez o suicídio de nossa princesa tenha sido uma consequência e não algo premeditado ou induzido.

—Onde quer chegar, senhor? -Indagou um dos guardas.

—Darius Quendra não é um ladrão qualquer. Ele retirou a pedra e descartou a coroa, provavelmente para não ser apanhado com ela… -Um silêncio do capitão acompanhado pelo barulho das mentes dos guardas trabalhando. -Se alguém que não o conhecesse o visse só com a pedra, ele poderia dizer que era uma joia de família, ou algo do tipo. Safar-se-ia facilmente. -César estava na pista certa, sabia disso e sorria por dentro. -Contudo, se o vissem com a coroa em mãos, seria a confirmação de que ele era o fugitivo, e o matariam pela recompensa ou o denunciariam a nós.

—Então, ele descartou a coroa para não se comprometer; logo, ela não era o objetivo principal, este era a pedra que estava nela. -Concluiu outro guarda. -Estou certo, capitão?

—Exatamente, soldado. Ele queria a pedra, isto podemos afirmar com total certeza. A questão que aqui levanto é a seguinte: que valor teria o diamante da coroa de Rei Zadell? Não falo do valor em dinheiro, pois essa hipótese já foi descartada. Se o ladrão quisesse dinheiro, teria fundido a coroa e vendido o ouro… -A mente do capitão e dos guardas trabalhavam a todo vapor. -Algum dos senhores tem conhecimento sobre mágica?

—Não, senhor. -Todos responderam como se fossem um só.

—Eu preciso, para ontem, de um mágico que me esclareça algumas questões. Encontrem-no! -A ordem foi dita com a autoridade de um rei…

—Sim senhor! -E obedecida como se, de fato, houvesse partido do maior monarca do reino.

Todos os soldados debandaram em busca de um mágico.

 

***

 

Cena II – Coração Aflito.

09 horas e 12 minutos, Reino Humano – Feltares. Casa dos Zeto.

 

A notícia sobre a morte da Princesa Kayena atormentava Tamires, esposa de General Urak e mãe de Kira. Trazia dor a um coração que bombeia não só sangue humano, mas também élfico, que havia nascido em Eyrell e que sofria pela perda da princesa que sempre fora bondosa com os súditos; trazia paz por mostrar que Darius, seu meio irmão e compadre, estava vivo e medo pelo risco que ele, sua filha e seu marido corriam… agora ainda mais.

Ela desaprova a escolha de todos eles em apoiar o grupo que conspira contra Harkuos, Deusa a quem dedicou sua vida para hoje ser a clériga de respeito que é.

Tamires sabia que Urak era um infiel; ele nunca escondeu essa informação, mas o amor é maior que qualquer adversidade da vida e, por isso, ainda assim, casou-se com ele. Sabia também que seu irmão por parte paterna seria infiel. Darius desde criança tendia a isso. Entretanto, jamais imaginaria que Kira seguisse os passos do pai e do tio se juntando aos hereges Guardiões das Chamas.

 

—Sei que minha família não merece perdão pelo que fez e ainda faz, mas, mesmo assim, peço que a Senhora os absolva dos crimes, os proteja e os instrua a abandonar esse caminho torpe que seguem desprezando vosso esplendor… -Rezava a clériga para a Deusa em posição meditativa, com o clericato aberto e apoiado sobre as pernas cruzadas. -Isso é o que peço, e antecipadamente agradeço.

 

***

 

Cena III – Novo Lar.

13 horas e 03 minutos, Reino Humano – Feltares. Q.G. das Dragonesas.

 

As Dragonesas haviam comprado uma estalagem grande por um bom preço, graças a mestiça elfa e humana do grupo. Laura é filha de pai e mãe humanos, contudo possui o Charme Élfico Persuasão herdado do avô. O sangue elfo é dominante a qualquer outro e transmite características de pureza até mesmo à terceira geração.

 

Meline decidiu aproveitar o dia sem aulas do sobrinho para apresentar as companheiras de clã a ele. Ela levantou cedo e resolveu algumas pendências antes de ir buscá-lo. Chegando lá, só não foi mal tradada por Hector porque ele já havia saído para trabalhar nas plantações da Condessa de Keneau.

 

—Criança, este é o Quartel-general das Dragonesas! -A maga abriu a porta e deixou que o menino fosse na frente.

—Moça, como você é alta! -Assim que entrou, Isaac viu uma gigante com a cabeça curvada e a cabeleira selvagem e loura cobrindo-lhe a face. O teto era baixo demais para comportar seus três metros e quinze de altura.

A gigante se abaixou até ficar cara a cara com o menino, deixando o rosto à mostra ao afastar as madeixas. Apesar do tamanho e da aparente brutalidade, possuía um rosto de traços finos e um sorriso gentil. -Rapazinho, como você é pequeno! -E riu. -Eu me chamo Kênia. Qual o seu nome?

—Eu sou Isaac! Por que você é tão alta? É uma gigante? A senhora Goatath disse que os gigantes são os maiores de todos os humanoides que podem pensar. -Disse ele.

—E ela está certa. -Concordou a tia do menino. -Kênia é nossa líder, criança. Ela protege a todas nós. -Meline abriu os braços para mostrar que havia outra pessoa presente no cômodo. Deveriam haver ali seis Dragonesas sem contar Meline, porém aparentemente estavam vagando pelo reino ou visitando os familiares.

—Preciso ir à capela desejar paz à alma da pobre Princesa de Eyrell, e pedir que Harkuos conforte os súditos e familiares. -Kênia se ergueu com agilidade surpreendente para alguém tão grande. -Ainda não acredito que existam pessoas capazes de duvidar da Herdeira de Zaatros e corromper o outro a ponto de fazê-lo cometer suicídio, desistir da vida… -Mesmo longe da terra natal, Kênia mantém fortes as suas crenças. Em Ramavel, é comum rezar pelos recém-falecidos, ainda que não os conheça intimamente, apenas por compaixão ao finado e a seus familiares.

—Se encontrar sangue de hidra por aí, traz um pouco para mim. -A autora do pedido era uma moça de pele negra, vestindo calça camuflada e camisa branca de mangas compridas. Ela usava um óculos de lentes grandes e ovais e tinha os cabelos feitos em tranças rastafari que lhe caíam quase até a altura da cintura.

—E o que você vai fazer com sangue de hidra, Catarina? -A gigante estava pronta para sair, mantinha a clava presa ao cinturão da armadura.

—Eu estou tentando criar um veneno novo, e também um antídoto para anular as toxinas presentes no sangue das hidras. -Catarina é a durona do grupo. Possui só dezessete anos e não pensa duas vezes antes de matar. É dona um amplo arsenal onde todas as armas têm relação com venenos. -Sabia que até hoje não existe um antídoto efetivo contra ele?

—Hum, verei o que posso fazer por você. A Rita comanda enquanto estou fora, até mais. -Dito isso, Kênia saiu do alojamento, aliviada em poder esticar as costas completamente.

—Catarina, este é meu sobrinho, Isaac Sereel. -Quando Meline se virou, o menino não estava mais atrás dela: descarregava golpes em um boneco de treino usando sua réplica elástica de espada eyréllica.

—É uma graça. -Catarina misturava líquidos e sais dentro de provetas. -Aqui há muitas coisas perigosas, não o deixe muito solto.

—Pode deixar, estou de olho. Sabe onde Rita está?

—Ouvi-a dizer que iria tapar o furo do telhado. -A assassina mergulhou a unha, enorme, diga-se de passagem, do dedo indicador na solução que estava preparando. -Posso testar uma coisa em você, Meline querida? -As duas olhavam a garra umedecida com o líquido.

—Isso é seguro? -Questionou a outra receosa. -Da última vez que testou suas porcarias quase matou sua irmã.

—Ruth é muito frouxa, mas você é forte! -Ela sorria de ansiedade. -Vamos, esse não é letal.

Meline, ainda com medo, estendeu o braço para a amiga Dragonesa, que o segurou com firmeza e arranhou-lhe a pele profundo o suficiente para que houvesse um pequeno sangramento.

—Ai! As vezes acho que você se aproveita dessas situações para descontar a raiva. -Meline afastou o braço com um puxão para poder avaliar o ferimento. -E agora? Quais são os efeitos previstos?

—Ah, esse é leve, você só vai sentir ardência e coceira a princípio…

—A princípio… só isso? E o que mais?

—Isto é uma toxina paralisante. -Catarina explicou segurando a proveta na frente de Meline. -Depois de algum tempo, ainda não sei quanto, seu braço ficará dormente até o ponto em que não consiga mais mexê-lo. -Uma a uma, as unhas foram mergulhadas no líquido amarelado contido no recipiente.

—O que!? -A voz saiu esganiçada, talvez por medo, talvez por raiva. Difícil dizer. -Você tem o antídoto pelo menos?

—Ei! Calma, eu inoculei uma quantidade miserável em você. Acho difícil chegar até a parte da dormência. -Não é à toa que Catarina seja quem cuida da parte ilegal das operações do clã. Quando alguém se nega a cooperar, é envenenado; logo, ou obedece ou morre. A assassina é responsável por chantagear os inimigos das Dragonesas. -Ainda não preparei o antídoto, mas, de qualquer maneira, o efeito dura no máximo quinze minutos.

—Espero que sim… mas com que propósito você criou isso se tem ação tão curta e não mata? -Embora não tivesse certeza se era o efeito da toxina ou paranoia, Meline começava a sentir queimação ao redor do arranhão.

—É uma arma a mais no meu leque de ataque. Durante a luta, a cada arranhão que eu der no adversário, inoculo uma pequena quantidade da toxina. -Havia um sorriso de realização nos lábios carnudos da assassina. -Depois de um tempo, ele não vai conseguir mais me atacar por causa da dormência, e também não fugirá.

—Genial. Insano, porém genial.

—Obrigada! Depois quero que me conte todas as reações que teve. -Outro sorriso.

—Certo… Isaac, vamos subir. Vejo você depois, acho bom esse veneno ser fraco mesmo. -Meline falou em tom de ameaça, mas era vazia e Catarina sabia disso.

 

A maga e o menino subiram as escadas da casa velha. As tábuas frouxas chiavam a cada passo que davam.

Rita se equilibrava sobre uma escada bamba para trocar a telha quebrada no momento em que a irmã e o sobrinho chegaram.

—Oi, pequeno! -Com um pulo, Rita estava no chão abraçada a Isaac. -Você cresceu tanto! -Diferente de Meline, Rita não é tão próxima ao sobrinho, mas, ainda assim, gosta dele.

—Você trouxe presentes também? -Perguntou ele, direto.

—Ah, eu acabei esquecendo… depois eu compro algo legal pra você!

—Tia por que você cortou tanto o cabelo? -Perguntou Isaac. Ele tem o hábito de fazer muitas perguntas em sequência, e isso acaba sendo irritante às vezes.

—Cortei porque me atrapalhava nas lutas. -Rita passava a mão nos cabelos castanhos e lisos, antes na metade das costas e agora na altura do queixo. -Como espadachins lutam corpo a corpo, não é aconselhável ter nada que possa ser agarrado facilmente. Aprendi isso depois de uma surra que levei.

—Entendi. -A mente do menino pensava rápido, e de fato o que ouviu fazia sentido. -Mas a tia Meline tem o maior cabelão.

—Ela não precisa cortar se não quiser, Isaac. Meline dificilmente se atracará aos socos com alguém. Ser bruxa tem suas vantagens.

Ao som da palavra “bruxa”, o menino deixou escapar um suspiro de medo. Sempre associou bruxos e bruxas a gente má, com razão, pelo menos até certo ponto.

—Não se assuste. Eu não posso estudar magia porque sou mulher e existe um tratado, daqueles que são seguidos por todos os reinos, proibindo o uso de magia por mulheres. -Meline se pôs a explicar, olhando feio para Rita vez ou outra. -Toda mulher que se envolve com mágica comete o crime de bruxaria, e por isso o apelido.

—As mulheres só podem usar magia quando nascem feiticeiras, porque, segundo eles, é um dom divino. -Rita havia se arrependido do que disse antes e tentava corrigir. -Mesmo que Meline não faça mal com o que sabe, ela ainda é vista como criminosa e, por causa disso, pouca gente sabe dessas habilidades.

Isaac mantinha no rosto expressões de dúvida.

—Veja bem… bruxo é todo homem que usa magia pro mal. Bruxa é toda mulher não-feiticeira que usa magia, independentemente do que faça com ela. Em resumo é isso. -Essa questão incomodava a maga/bruxa, em parte pela desigualdade e em parte por ter de esconder sua condição mesmo sem fazer mau uso da magia. -Conseguiu entender?

Isaac assentiu positivamente.

—Bom… às vezes nós cometemos crimes mesmo, mas só quando não temos escolha. -Rita pensava alto. -Em algumas ocasiões, temos de matar uma pessoa ruim, para que ela não mate a nós ou a alguém de bem.

—Chega desse assunto. -Meline cortou, cansada daquilo. -Isaac, se quiser peça a senhora Goatath para lhe contar sobre os termos do Tratado Número Cinco. Ela saberá explicar melhor do que nós.

—Boa ideia, agora vamos comer! -Rita pôs diante deles um saco grande com pães e um pote de geleia igualmente enorme. -Comprei agora há pouco, tudo fresquinho.

 

***

 

Cena IV – Mestre.

Mesmo dia, 15 horas em ponto, Reino Gigante – Ramavel. Pátio Sagrado.

 

No Reino Gigante, têm-se o hábito de prestar homenagens aos entes assim que se recebe a notícia de seu falecimento. Todos rezam pela passagem da alma e desejam que ela reencarne o quanto antes para viver uma vez mais.

Quando morre uma figura importante e querida, seja ela de Ramavel ou de outro reino, todos os ramavenos se reúnem pelo mesmo motivo.

Neste momento, o Pátio Sagrado se encontra apinhado de pessoas, bem como todas as catedrais de Ramavel, para a oração coletiva pela alma de Kayena, a Princesa de Eyrell. O vento gelado soprava furioso ainda que a neve não caísse. Sempre faz frio em Ramavel e a tensão da morte parecia combinar bem com o clima.

O Pátio Sagrado é famoso por ostentar a maior dádiva entregue por Harkuos: uma estátua de si mesma, esculpida em jade. A imagem da Deusa gravada na estátua aparece de pé e com postura ereta, usando um vestido longo de mangas compridas. Os cabelos lisos caem em cascatas até a linha da cintura e veem-se adornados por um fino aro que circunda a testa como uma coroa. As mãos, uma sobre a outra, com as palmas voltadas para cima e estendidas para frente, formam uma diagonal para baixo de modo que, quando alguém se ajoelhar diante dela, possa tocá-las. Tal toque traz conforto aos aflitos, calma aos afoitos e força aos abatidos. Através do contato com as mãos de jade da estátua, a Deusa Harkuos envia mensagens aos seus seguidores. Em alguns casos, a comunicação divino-mortal pode ocorrer também através de sonhos.

E, ali, naquele pátio, encontrava-se Kaegro. O mago híbrido, humano-gigante, é mestre em magia, e conhece tudo o que há para conhecer envolvendo magnetismo e eletricidade. O velho de sessenta e cinco anos tem o rosto enrugado e manchado pela idade; encontrava-se coberto por um capuz preso à capa curta cuja ponta tocava a cintura; por baixo, cabelos e barba compridos e grisalhos.

Kaegro não vivia mal, mas estava prestes a melhorar ainda mais sua condição. Um convite seria feito a ele…

 

—Kaegro Gorj? -Chamou a voz cansada de quem tem problemas de respiração ou havia corrido demais para estar ali.

—Pois não. -Ele disse, de má vontade, se levantando e ajeitando as vestes de tons alaranjados. Era imenso. Para os padrões gigantes talvez não, mas, comparado ao humano que o havia chamado, obviamente sim. -O que o senhor deseja? -E a estatura, sem dúvida, combinava bem com a voz firme e intimidadora.

—Eu me chamo Júlio Bree e venho em nome do Rei de Feltares, Juan Travelier. Meu Rei tem uma proposta que, creio eu, será oportuna.

—Ora, diga logo e não desperdice meu tempo! Tenho orações a fazer e você me atrapalha. -A substituição do pronome de tratamento “senhor” por “você”, bem como a forma rude com a qual as outras palavras foram ditas, demonstra claramente o lado humano de Kaegro. Um gigante ocultaria a raiva por não ser uma emoção cortês, ainda mais diante de uma proposta. Sobretudo a proposta de um rei.

—Ah… pois bem. -O mensageiro parecia temer mago. -Sua Alteza, o Príncipe Franco Travelier, terceiro filho de Rei Juan, completa hoje quinze anos de idade e tem interesse em estudar magia.

—E o que eu tenho com isso?

—Rei Juan deseja que seja o senhor o mestre do príncipe.

—Por que eu? -Questionou o mago. Ele mantinha um olhar de tédio sobre o mensageiro. -Apesar de rico, não sou nobre e nunca estive em Feltares; logo, não sou conhecido por lá.

—Si-sim, mas o senhor é sim conhecido quase que mundialmente por seus feitos. Sua fama é maior do que imagina e… e…

—O que eu ganho se aceitar? Vamos, seja direto, pare de gaguejar e cuspa fora o ovo da boca antes de falar.

O mensageiro tentou se acalmar e então continuou:

—Receberá cento e vinte peças de ouro por semana, alojamento em um dos melhores quartos do Palácio de Feltares e um título de nobreza.

—Parece-me muito pouco para deixar meu reino natal. Sou muito grato pelo convite, mas não estou interessado. -De fato, para alguém que vive em uma mansão rodeada de esculturas confeccionadas nos mais raros e valiosos metais, com jardins belíssimos e possuiu uma imensa riqueza, o convite soa mais como uma piada do que como uma proposta séria.

—Pelos Deuses Ancestrais, espere! -O pobre humano transpirava e ficava mais nervoso a cada segundo. -Trezentas peças de ouro por semana! -Ele gritava enquanto o velho mago se afastava lentamente. Pelo tamanho do desespero, parecia que algo importante para o mensageiro dependia da aceitação do convite. Talvez fosse sua vida, talvez a vida de alguém que ame.

Kaegro se virou e andou até ficar cara a cara com o mensageiro do rei, ou quase isso, na medida que as alturas desproporcionais permitiam. -Eu quero quinhentas peças de ouro semanais e o rei terá de aceitar meus termos se quiser que eu lecione para o príncipe. -Disse o mago olhando de cima o mensageiro humano. -Fui claro?

—Sim, senhor. E quais seriam os termos? -O homem respirava mais aliviado.

—Eu irei a Feltares e os apresentarei pessoalmente ao rei. -Kaegro é o tipo de pessoa audaciosa ou insana a ponto de se achar no poder de fazer exigências a reis.

—Como queira, senhor.

—Quando nós partiremos? Preciso preparar-me para a viagem e pensar em como ministrar aulas. -Ele nunca antes havia ensinado nada, aprendera tudo com os melhores magos e feiticeiros e então dedicou-se a trabalhar por contratos, exterminando pragas, abençoando armamentos, caçando ladrões, matando feras e daí em diante. Sempre muito bem pago por seus serviços.

—Ainda esta noite, senhor.

—Errado. Partiremos ao alvorecer. -E a última palavra foi do mago. Partiriam ao nascer da Astral.

 

***

 

Cena V – Princesa Mydorin.

Mesmo dia, 19 horas e 29 minutos, Reino Duende – Oroada. Palácio Real.

 

Oroada se situa ao leste de Ruthure. O reino compreende duas ilhas gigantescas ligadas por pontes em vários pontos. A atividade vulcânica de Ruthure certamente influenciou a geologia de Oroada, pois o Reino Duende também possui vulcanismo, ainda que em escala bem menor.

Boa parte das ilhas é tomada por grandes montanhas e cavernas. Os habitantes ergueram a maior muralha de todo o Zaatros ao redor de seu reino, não para guerrear, mas para desencorajar possíveis invasões.

Na Ilha Maior, a mais próxima do Reino Anão, está situada a capital do reino.

 

—…Eu gostaria muito de quebrar a barreira que nos afasta de nossos irmãos. -Dizia a Princesa Mydorin Jaatar aos pais. -Para mim, as pessoas dos outros cinco reinos são como são por falta de nossa intervenção. -A princesa era pequena, assim como todos de sua espécie, tinha cabelos castanhos bem cacheados, enfeitados pela coroa em forma de flor; e olhos castanhos e brilhosos que imploravam silenciosamente pela aprovação do pedido que fazia.

Rei Henrique passou a mão na barba curta e espessa antes de responder.

—Pequena, nós sabemos de sua ambição em fazer de Zaatros um mundo pacífico, contudo apenas nós duendes compartilhamos desta visão. -O pai entendia os motivos da filha, porém, para ele, não passava de um sonho de criança, uma visão utópica que jamais seria possível fora de Oroada. -Sobretudo nas atuais condições. Com a tensão que paira sobre todos neste momento de luto pela Princesa de Eyrell e pela perseguição aos radicais Infiéis… qualquer suspiro mal interpretado pode culminar em uma guerra.

—Exatamente por isso desejo partir, meu pai. -Mydorin estava inquieta, olhava para a mãe em busca de apoio, mas a rainha também não achava prudente deixá-la ir e evitava seu olhar. -Eu tenho fé de que posso motivá-los, pouco a pouco, a mudar e deixar essas barbáries de lado. Posso, inclusive, ajudá-los a prosperar como nós, oroanos, prosperamos. Através da nossa filosofia de crescimento mútuo.

—Querida, crê mesmo que sozinha vai ensinar a todo o mundo os ideais de nossa cultura? Acha também que eles lhe darão ouvidos? -Rainha Saramã tinha razão. Ninguém muda o jeito de ser e agir tão rapidamente, muito menos toda uma sociedade. -Além disso, o que nos garante que não seja você quem saia mudada dessa experiência? Aliás, você será uma e eles muitos; logo, a maior influenciada tende a ser você. Muitos com mais idade e estudo já tentaram, Mydorin. -A rainha temia falecer enquanto a filha estivesse fora. A saúde dela é frágil desde a gestação delicada de trigêmeos, dos quais apenas Mydorin sobreviveu ao parto há cinquenta anos; desde então uma sentença de morte pesa sobre sua cabeça e o que a mantém viva são as curas mágicas as quais se submete.

—Entendo que temam por Oroada. Eu sou a única herdeira e tenho um dever para com este povo, mas também tenho uma missão para com Zaatros! -Mydorin tinha os punhos cerrados amassando o vestido e retorcia o rosto segurando as lágrimas. -Sinto que posso melhorar o mundo e, mesmo que não resolva os problemas completamente, pelo menos sei que posso amenizá-los e preparar o terreno para que outros assumam a peleja. -Ela, então, tirou a coroa e segurou-a diante dos pais, sentados em seus tronos altos e intimidadores. -Eu partirei amanhã de qualquer forma. Espero abençoem minha viagem, contudo irei mesmo que a amaldiçoem. Não levarei a coroa caso neguem minha partida e renunciarei ao título de princesa e herdeira de Oroada.

—Isto é uma ameaça? E o que vai fazer? -Samarã estava prestes a jogar a toalha. Se Mydorin partiria de qualquer maneira, seria melhor que contasse com o apoio dos pais e do reino.

—Levarei meu gnomo, uma boa quantidade de ouro e alguns mantimentos. Não quero armas nem guardas. Se busco despertar a paz, não devo possuir nada que entre em contradição com meus objetivos.

—Como assim sem guardas? Você será sequestrada assim que cruzar a muralha. -O rei possuía muitos preconceitos acerca dos “externos” como ele mesmo os chamava. Estava nervoso, pusera-se de pé e andava de um lado para outro em frente à filha.

—Se assim for o meu destino… -Mydorin tornou a pôr a coroa. -Eu terei cuidado.

—Você enlouqueceu.

—Com todo o respeito, mas já sendo desrespeitosa… vocês é que estão loucos. -Os pais da princesa arregalaram os olhos, surpresos com a audácia da filha. -Há quantos anos nos isolamos com medo da violência? Desde o segundo milênio nos escondemos detrás desta muralha…

—Mydorin olha como fa…

—Escutem-me, ainda não terminei! Já pararam para pensar que talvez eles tenham mudado? Ou que na verdade nunca foram bárbaros, mas apenas menos pacíficos que nós? Por quanto tempo perpetuarão essa visão xenofóbica de nossos irmãos inteligentes?

—Não existe inteligência na guerra!

—Então me permita lhes mostrar isto.

—Tem certeza de que quer partir? -Tanto o rei, quanto a rainha se davam por vencidos. Emoções negativas abalam drasticamente os duendes e o ambiente ali estava imerso nelas.

—Sim, eu tenho. Se somos a espécie superior, como nós mesmos acreditamos, se somos os criadores de diversas ciências e artes únicas, é nosso dever disseminar o conhecimento ao redor do mundo. -O discurso fora convincente o bastante para reforçar todos os argumentos anteriores de Mydorin. -Não quero que outros sofram como Kayena.

—Então que assim seja. -Rei e rainha disseram em uníssono. Sentiam-se derrotados. Não querem que Mydorin parta, mas têm consciência de que não há outra saída para a situação. Não prenderiam a filha em uma torre como acontece em histórias de bardos, e em alguns reinos mais truculentos.

—Será rastreada magicamente, e manterá elo empático com um animal deste palácio para que possamos protegê-la. -Rei Henrique apresentou seus termos.

—Tudo bem. -E Mydorin os aceitou. -Algo mais?

—Irá disfarçada. Terá, ainda, um outro nome. -Acrescentou a Rainha Saramã.

—Excelente! -A princesa havia conseguido. Seria a primeira da realeza a deixar o Reino Duende desde o segundo milênio.

O trigésimo sétimo dia do primeiro mês do ano 7302 seria histórico para todo o Reino Duende. Ao menos seria, caso a partida de Mydorin Jaatar fosse anunciada publicamente…

E não seria.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Herdeira de Zaatros" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.