A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 15
Capítulo 14




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Quadragésimo primeiro dia do primeiro mês, ano 7302.

 

Cena I – O Saque.

23 horas e 20 minutos. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

 

Os quatro estavam ali, às portas da fortaleza, para saírem em uma missão às escondidas do restante do clã. Todos em roupas escuras para se misturar melhor à noite. Hilda usava seu único vestido de tons sombrios, cinza chumbo com luas e estrelas prateadas; Kira, um manto roxo escuro e bem justo. Manu, de calça e camisa pretas, tremia de nervosismo com Garras enrolada no pescoço. Já Darius estava como um puma: trajava seu corselete de couro negro, projetado especialmente para ações noturnas, uma calça bem justa de tecido flexível, uma capa preta sobre as costas e uma máscara que cobria-lhe a boca e o nariz. Tudo obscuro em contraste com os braços brancos e nus que não eram cobertos pela roupa.

 

—Trouxe tudo de que precisa? -Perguntou ao elfo a cigana.

—Tudo aqui. -Disse ele afastando a capa e mostrando uma pequena mochila. -Ainda não entendi como você conseguiu enganar o Cícero, Hilda.

—Ele sabe que estamos saindo. Sabe tudo que eu penso, mas preferiu não ir junto. Vai dar o alarme aos outros, caso nos metamos em perigo.

—Cícero é um cara legal. -Elogiou-o Manu. -Olhem o que ele me deu. -Disse estendendo a mão e exibindo um anel dourado com uma pedra quadrada e vermelha.

Sobre a cabeça de Kira se formou uma frase:

É mágico ou ele te pediu em noivado?”

Todos, incluindo Manu, riram da piada e ele respondeu:

—Sim, é mágico. Eu não tenho talento com nenhuma arma e esse anel vai ser a minha. Ele não é do tipo que produz feitiços. Cícero explicou que ele contém um feitiço de energia gravado em si, que se traduz em um tiro de energia ou em um campo de força pequeno.

—É melhor do que nada, amigo. -Disse Darius. -Vamos andando?

 

E foram. Não era um longo caminho até os Arquivos. Caminharam sem pressa, observando a paisagem até a cidade. A noite estava muito abafada, seu céu ricamente pintado de estrelas e o belíssimo Satélite Raus em sua fase crescente.

Às portas dos Arquivos, Hilda os parou e repassou os planos: entrariam rápido e destrancariam o alçapão. Procurariam algo importante lá dentro, roubariam o que pudesse ser útil e dariam no pé para longe dali, deixando tudo exatamente como antes. Sem rastros.

—Você fala como se eu fosse um principiante, querida. -Disse Darius aos sussurros ao remexer a bolsa à procura das gazuas certas para abrir o portão de entrada.

—Não sou sua querida, na verdade tenho um leve nojo de você. -Rebateu ela.

—É assim que começa. Só não se atire aos meus pés depois, implorando um pedaço do elfo mais bonito de Zaatros! -Riu-se Darius, fazendo a fechadura girar e abrir. -Damas primeiro. -Arrematou com uma reverência, dando passagem para Hilda e Kira.

—Ah se algum dia eu quiser um pedaço seu, Darius, pode deixar que não pedirei. Arrancarei eu mesma, por livre e espontânea vontade, com uma faca cega e o atirarei aos cachorros famintos da praça. -Disse a cigana esbarrando forte e jogando o cabelo na cara elfo ao passar por ele.

O ladino ia abrir a boca para retrucar, mas Manu o repreendeu com um olhar severo e ele se calou novamente.

—Não toquem em nada, pode haver armadilhas ou alarmes. -Disse Hilda. -Venham, é por aqui!

Chegaram ao alçapão e moveram a estante pousada sobre ele fazendo quase nenhum barulho.

—Como podem deixar um lugar deste desprotegido? -Perguntou Manu desconfiado.

—E por que protegeriam uma biblioteca? -Perguntou Hilda de forma irônica. -Os anões não são do tipo que gostam de ler e também não são do tipo que vandalizam o próprio reino. Darius, faça seu trabalho. -Disse, apontando para a fechadura.

—Com prazer, minha querida! -Zombou o ladino, examinando a tranca.

—O que há de errado? -Perguntou Manu.

—Eu preciso de luz.

Kira encontrou um candeeiro e o acendeu perto do padrinho.

—Duas coisas: ou trocaram a tranca desde a última vez que estiveram aqui ou você foi péssima na descrição dela, cigana.

—Impossível! -Hilda Bufou. -Deixe-me ver… tenho certeza de que é a mesma de antes.

—É melhor irmos embora.

—Ninguém vai embora, Manu! -Ralhou Darius. -É uma fechadura mais elaborada do que pensei, mas eu consigo abri-la.

 

Cinco minutos e uma Hilda irritada depois, o ladino finalmente ouviu o clique da tranca se abrindo.

—Fiquem aqui, eu vou na frente. -Disse o elfo cobrindo os ombros e os braços pálidos com a capa preta, pondo o capuz na cabeça e, em seguida, desaparecendo da escuridão escada abaixo com uma adaga em cada mão.

Darius vasculhou tudo enquanto os demais esperavam no topo da escada com o coração aos pulos. O de Manu aos saltos suicidas de quem se atira de um precipício.

Algum tempo depois, o ladino subiu as escadas e disse:

—Não há nada importante lá só umas quinquilharias mágicas. Devia dar uma olhada, Kira.

Todos desceram as escadas, Hilda com o candeeiro em punho, e puseram-se a revirar tudo nas prateleiras.

—Garras, ilumine aqui. -Pediu Manu. A cascavel-camaleão se transformou em um vaga-lume rei. Uma espécie do inseto que chega a ficar do tamanho de uma laranja bojuda. -Encontrei um triângulo de vidro. Esperem, é de diamante! Kira, venha ver, acho que são runas gravadas nele.

Kira estava na metade do caminho quando Hilda disse:

—Algo tocou minha perna…

—Não venha pôr a culpa em mim! -Defendeu-se Darius pondo as mãos para cima em posição de rendição.

—Estou falando sério, paspalho! É melhor sairmos daqui agora.

Ninguém questionou. Hilda sempre fora a líder daquela pequena incursão e Manu deu graças aos Deuses Ancestrais por estarem de saída daquele calabouço.

 

Uma vez fora dali, os invasores voltaram depressa para a fortaleza com o caco de diamante na mochila do elfo. Não foram notados quando entraram e combinaram de analisar o objeto no dia seguinte. Longe dos olhos atentos dos parceiros de clã.

 

***

 

Cena II – Salvaguarda Legítima.

Quadragésimo segundo dia do mês, ano 7302.

07 horas em ponto. Reino Elfo – Eyrell. Castelo Real.

 

O dia começou bastante luminoso, como se saudasse a paz que tentava se impor sobre a turbulência. Os vitrais coloridos do castelo coavam a luz da Estrela Astral, desenhando suas imagens pelo piso esverdeado e brilhante do palácio. Ali estavam três reis e duas rainhas. Infelizmente, Saramã, a Rainha Duende, teve de se ausentar da reunião que marcaria o surgimento de uma nova sociedade entre Feltares, Eyrell e Oroada. Humanos, Elfos e Duendes.

Cada um ali presente usava a cor símbolo de seu reino. Juan e Tenniza vestiam roxo; Henrique, laranja e Zadell e Maya, verde. As coroas de cada um deles estava devidamente polida e bem aprumada em suas cabeças. Impecáveis, todos eles.

 

—Estamos imensamente contentes com esta aliança! -Disse Rei Zadell, apertando a mão do Rei Duende, Henrique Jaatar, e depois do Rei Humano, Juan Travelier. Em seguida, cumprimentou a Rainha Humana, Tenniza Travelier, e lamentou não poder fazer o mesmo com Rainha Saramã Jaatar. Depois dele, sua rainha cumprimentou os monarcas.

—Não se preocupe, Zadell. -Tranquilizou-o Rei Henrique. -Saramã se sente melhor nesta manhã, apenas preferiu não abusar… o teletransporte sempre lhe causa náuseas. Aliás, mudando de assunto, estou encantando com Eyrell. É um reino belíssimo!

—Sendo a primeira vez que deixa seu reino, Henrique, fico lisonjeado em agradá-lo com a visão de Eyrell. -Respondeu Rei Zadell com um sorriso sincero.

—Então, vamos aos termos?! -Chamou Rainha Tenniza, de braços dados com Rainha Maya. Quando jovens, as duas frequentaram as mesmas aulas e até hoje compartilham um laço de amizade.

—Sim, claro! -Respondeu Rei Zadell, conduzindo-os a um corredor largo e comprido, cheio de pinturas a óleo das antepassadas famílias reais de Eyrell.

Ao fim da caminhada, entraram por uma porta de metal prateado e vidros verdes que dava em uma sala espaçosa, ricamente arejada por janelas amplas e claraboias. Havia muitos vasos grandes de cerâmica escura e grossa com plantas e flores tão bonitas quanto tudo ali e, junto a uma pequena estante de livros, uma mesa circular de madeira lustrosa para que pudessem se sentar e conversar.

—Muito bem, gostaria primeiramente de agradecê-los, não só por aceitarem meu convite, mas também por adaptarem as leis de vossos reinos seguindo meu exemplo. -Iniciou Rei Zadell.

—Para mim é uma honra seguir o sábio, Zadell.

—Faço das palavras de Juan as minhas. -Disse Rei Henrique.

—É emocionante ouvir isto. -Disse Rei Zadell, fazendo uma pequena mesura com a cabeça.

—Então, meus caros, o que propomos é bem simples e, creio eu, agradará a todos os envolvidos. -Falou Rainha Maya, hoje com os cabelos soltos sob a coroa e um vistoso colar de pérolas adornando o pescoço moreno. -Negaremos fornecimento de contingente, armamento, comida, água e medicamentos para as zonas de guerra.

Henrique se sobressaltou, mas Maya ergueu levemente a mão pedindo silenciosamente que esperasse a conclusão de sua fala:

—Precisamos de um ideal eficaz e precisamos defendê-lo. Nós ajudaremos os feridos sim, embora com um grupo sob nosso poder. A equipe partirá rumo ao local atacado após o cessar fogo, prestará seu auxílio e recuará para um ponto seguro antes que o combate recomece. -Maya respirou fundo e umedeceu os lábios pintados vermelho antes de continuar. -Entregar mantimentos aos exércitos será como financiar a guerra e assisti-la da segurança de casa não acham?

Todos concordaram, gesticulando com a cabeça.

—Por isso, nós não forneceremos nada. Voluntários irão e farão pessoalmente o serviço. Algo a objetar sobre este assunto? -Perguntou Maya. -Ah, antes que surjam questionamentos sobre minha índole, gostaria de alertar que não apliquei Charme Élfico algum sobre os senhores para que concordem comigo. Meus Charmes são Inteligência, Beleza e Carisma. Dou minha palavra de Rainha dos Elfos de que não foram induzidos por nenhum deles.

—Sem querer ser deselegante, Rainha Maya, mas como saberemos se realmente estamos agindo por vontade própria e não por hipnose ou manipulação? Sem ofensas. -Questionou o sempre cauteloso Rei Henrique.

—Não me ofendeu. O fato de fazer-me essa pergunta já é prova, pois, se eu os tivesse amarrado em algum Charme, jamais perceberiam e não duvidariam das minhas intenções… Entretanto, se ainda tiverem dúvidas, podem recorrer a um teste de arcanismo com um mágico de confiança para detectar traços de magia élfica em vossas mentes.

—Magia élfica? -Indagou Juan.

—Sim, meu rei. -Respondeu Tenniza. -Permita-me esclarecer, Maya. -Pediu a Rainha Humana. -Todos os seres vivos são permeados por magia. Os humanos a dominam, manipulam e modificam, contudo todas as espécies possuem seus dons únicos. Os dos elfos são os Charmes que podem ser traduzidos em uma leve magia se comparada à humana.

—Espetacular! -Elogiou Henrique. -Como sabe tanto sobre os elfos, Rainha Tenniza?

—Eu sou uma elfa. -Disse ela afastando o cabelo chanel e mostrando uma orelha pontiaguda e branca como um caco porcelana. -Sou a Rainha dos Humanos pelo casamento. Biologicamente falando, sou elfa. -Concluiu ela sorrindo.

—Ah, é verdade. Foi esquecimento meu. -Disse Henrique rindo.

—Prosseguindo… os senhores aceitam os termos? -Perguntou Zadell.

—Sim. -Disseram todos.

—Excelente. -Comemorou o anfitrião. -O segundo e último tópico aborda a possibilidade das coisas nos fugirem do controle.

—Por exemplo? -Perguntou Tenniza.

—Imagine que uma de nossas equipes sofra um ataque. Como estamos fora da guerra e só iríamos a campo para socorrer os feridos, eu consideraria tal ato uma traição a nossa boa fé e cessaria a ajuda imediatamente.

—Sim, é claro. -Disse Juan e todos concordaram. Henrique por último, ainda pensando na crueldade de abandonar os feridos à própria sorte.

—Ainda sobre esse assunto: todos nós sabemos que Feltares e Eyrell são alvos fáceis à invasão e eu gostaria de contar com as muralhas de Oroada para guardar algumas coisas inestimáveis à cultura élfica e convidar Juan a fazer o mesmo… isso, é claro, se não houver problemas.

—De maneira alguma será incômodo. -Respondeu Henrique. -Oroada é o lugar mais seguro de Zaatros, nada transpassa aquelas muralhas. Se houver algo ou alguém a quem queiram proteger, meu reino é o melhor lugar para isso.

—Perfeito. Alguém tem algo a acrescentar? -Perguntou Maya. -Ninguém? Então encerramos por aqui os debates. Precisamos de um nome!

—Que tal A Tripla Defesa? -Sugeriu Henrique.

—Hum, eu estava pensando em A Defesa Legítima. -Disse Tenniza.

Depois de discutirem por breves minutos, acabaram por decidir que o nome da aliança seria Salvaguarda Legítima porque que Defesa Legítima era um clássico clichê.

—Meus sábios elaboraram uma teoria sobre Harkuos de agradar Gigantes e Anões, literalmente… -Disse Henrique, já de saída. -Mas deixemos isso para depois. Acho melhor divulgá-la apenas quando a guerra estiver para estourar e os soldados estiverem tensos.

—Bem pensado, a chance de afetá-los e dissuadi-los será maior. -Concordou Zadell.

 

—E então? -Perguntou Príncipe Hélio aos pais assim que os convidados se foram.

—Estamos oficialmente unidos! -Disse Maya ao filho.

—Já? Que rápido. E o meu arco? Quero atirar, devolvam-me! -Desde o dia que antecedeu a última e conturbada assembleia da União Real, quando Hélio ameaçou se matar, seu arco e suas flechas foram confiscados.

—Não vá fazer nenhuma besteira! -Bradou o rei. -Estão no pessegueiro dos jardins internos.

—Eu nunca faço besteiras! -Disse o príncipe, correndo para buscar as armas, com uma das mãos na coroa para que não caísse, os cabelos louros sendo golpeados pelo vento.

 

***

 

Cena III – Azar.

13 horas e 05 minutos. Reino Anão – Ruthure. Fonte termal, a 2 quilômetros da Fortaleza.

 

—Agora que chegamos, vocês podem trabalhar. -Disse Darius tirando a roupa. -Eu vou aproveitar o dia e relaxar! -Finalizou ele, agora só de cuecas, pulando de cabeça na piscina natural.

—Que idiota. -Queixou-se Hilda.

—Kira, você é quem entende das runas aqui… o que significam? -Perguntou Cícero, que só agora resolveu participar as missões secretas.

Kira pegou um pequeno caderno da bolsa e pôs-se a folheá-lo e comparar com a peça. Em seguida a tosca forma de comunicação da menina se fez visível, e sobre seus cabelos louros surgiu:

Uma runa significa Azar e a outra está pela metade e não consigo traduzir.”

A frase se apagou e uma nova tomou seu lugar:

“É óbvio que este triângulo na verdade é parte de um círculo. Olhem aqui as marcas, algo poderoso partiu o círculo de diamante ao meio e não tenho como entender seu significado apenas com uma runa e meia.”

—Azar. -Repetiu Manu. -É melhor jogarmos isso fora.

—Não! -Disse Hilda. -O restante pode estar lá na sala secreta sob o alçapão.

—Não está, querida. -Disse Darius saindo da fonte bem ao lado da cigana e deixando-a desconfortável com a seminudez. -Eu vasculhei tudo antes de vocês, lembram? -E agachou-se ao lado dela, pondo um braço atrevido e molhado sobre seus ombros.

—Não importa. Eu não vou jogar essa peça fora e você SAIA DAQUI, ATREVIDO! -Explodiu Hilda, desferindo uma cotovelada no rosto do elfo que perdeu o equilíbrio e caiu novamente dentro da fonte. O impacto do corpo na piscina respingou uma grande quantidade de água nos demais, encharcando-os.

—Hilda! -Reclamou Manu, afastando a franja molhada da testa.

—Qual é o seu problema?! -Perguntou Darius, furioso, emergindo com sangue no nariz e voltando a sair da fonte termal.

Hilda se levantou cuspindo fogo e partiu para cima do ladino enquanto os outros apenas observavam incrédulos. Com a mão direita, agarrou o pescoço do elfo, com a esquerda sacou o punhal que carregava entre os seios e pressionou a ponta nos flancos de Darius. Mesmo ele sendo mais alto e mais musculoso que Hilda, acabou sendo rendido tanto pela lâmina quanto pela surpresa de um golpe que não esperava.

—Desde o primeiro dia que te vi senti uma energia ruim emanando de você, uma aura podre e nojenta! -Disse a cigana, entre dentes, bem junto do rosto de sua presa. Seus olhos de esmeralda arregalados. -Quero que fique longe de mim ou não exitarei em te apunhalar até a morte! -E então forçou a ponta do punhal nas costelas do elfo. Pouco, mas o suficiente para ver escorrer um filete de sangue. -Só fale comigo quando for importante para o clã. -Finalizou ela, mandando o elfo de volta para a piscina com um empurrão.

—Hilda, acalme-se, por favor. -Pediu Manu, pondo-se na frente dela, impedindo-a de se afastar. -Darius é estúpido, mas nunca te faria mal.

A cigana afastou os cabelos molhados e selvagens do rosto e pensou um pouco antes de responder:

—Eu tenho minhas dúvidas, Manu. Algo dentro dele é antigo e mau… como se fosse capaz de tudo… como se fosse marcado para isso por algo que ainda não sei o que é. E o mais sombrio é que ele parece ter sido assim desde que nasceu.

—Como assim!? -Espantou-se Cícero.

—Exatamente o que você entendeu. Eu vejo na aura dele que não houve sequer um momento na vida que ele não tivesse pensamentos maus. Imundo!

 

Enquanto isso, Kira ajudava o padrinho a sair da fonte.

—Cuidado, Silêncio! -Advertiu ele. -Não caia na água. Mesmo não sendo tão densa quanto um kvarbrakoj puro, você ainda é pesada demais para nadar e esta fonte é muito profunda.

A palavra Relaxe” formou-se acima da menina.

Ela usou dois braços para segurar-se em uma árvore e os dois restantes para ajudar Darius a sair da água.

—Obrigado, pequena. Está cada vez mais forte! -Elogiou. -Logo vai poder lutar com o velhote do seu pai de igual para igual sem usar magia.

Não exagere”

—É, parece que o caco de diamante estava certo. -Comentou Darius, olhando Hilda se queixando raivosa com Manu e Cícero.

Azar.”

—Azar.

 

***

 

Cena IV – Sorte.

18 horas e meia. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

 

—A Hilda ficou mesmo irritada com você. -Disse Manu, sentando-se ao lado de Darius, no piso do terraço.

—Eu não fiz nada! -Respondeu ele, levantando-se e indo se sentar na mureta de proteção. Ali ficou balançando os pés e olhando o chão, três andares abaixo. E pensando.

 

—Você ainda está aí, não é? -Perguntou o elfo sem olhar para trás, depois de passados cerca de dez minutos.

—Estou. -Respondeu o pequeno híbrido, pacientemente.

—Vá embora, eu não vou pular daqui, se é o que está pensando.

—Sei que não vai. Não estou aqui por isso.

—E por que então?

—O que a Hilda vê em você me assusta. -Disse Manu. -Assusta a ela também.

—Dane-se ela.

Manu resolveu levantar e, sentando-se no murinho ao lado do amigo:

—Ela não sente medo de você, e sim receio do que pode fazer… acha que está destinado a causar sofrimento.

Uma pausa longa. O vento estava forte e quente, desprendia as folhas das árvores lá fora. Darius continuou calado, não perguntou nada e Manu resolveu falar mesmo assim depois de longos minutos:

—É como se você não percebesse que agride as pessoas. Sempre as mulheres: Zomba da condição das Bruxas Siamesas, ofendeu Miragem e o marido, provoca Hilda… como fez com… com Princesa Kayena.

—Não diga esse nome. -Repreendeu-o, com voz embargada virando o rosto para o outro lado.

—Desculpe-me, não fiz por mal. Mas, vamos, não fique assim. -Pediu Manu, dando-lhe um empurrãozinho com o ombro. -Você é a pessoa com o sorriso mais sincero que conheço, não consigo te ver assim, Darius.

—Eu não estou assim por causa daquela cigana maldita.

—Então, qual o motivo?

Darius voltou a olhar para a frente. A pouca luz que o Raus pousava sobre eles foi suficiente para Manu ver os olhos marejados do elfo.

—Pela minha família que destruí, por Kayena, pelo irmão dela, Hélio, que era meu amigo. -Enumerou ele, somando nos dedos. -Ele deve me odiar agora…

—Talvez algum dia você o encontre e ele te perdoe. -Disse Manu desistindo da conversa, descendo da mureta e caminhando em direção à escada em espiral. -Se foram mesmo amigos, ele poderá te perdoar.

 

Naquele instante algo começava a tomar forma no ar diante de Darius. Parecia poeira rodopiando depois de um vendaval, embora não o fosse. O elfo ficou ali curioso, observando, por alguns segundos até notar o que era e cair, por sorte, para trás, apavorado.

—SAIA! -Gritou ele, rastejando para longe do fantasma recém-consolidado de sua ex-noiva.

—Você tentou me enganar. De novo! -Gritou Kayena. -Achou que eu não perceberia o truque do necromante!?

Manu, ouvindo a gritaria, subiu correndo as escadas:

—Droga! Outra vez?

—É mesmo um miserável, não é Darius?! -Falou o fantasma.

—Não mais do que você! Nem depois de morta me deixa em paz! -Rebateu o elfo, ficando de pé. Ainda com medo, mas não mais submisso a ele.

A Princesa Fantasma pareceu ofendida e surpresa com a fala. Amansou o semblante, trocando-o por um que aparentava dúvida e deu um volta, contornando o terraço. Agora ela estava próxima de Manu, na escada, de costas para uma parede e de frente para Darius, postado de costas para a mureta.

—Como ousa? -Perguntou o fantasma. -Eu sou uma princesa!

—Você foi uma princesa! Você… está… MORTA! -Disse o elfo, pausadamente, a plenos pulmões.

Manu, assustado, nada fazia. Apontava debilmente o seu anel mágico para Kayena com a mão trêmula.

—Ainda hoje você terá o mesmo fim! -Exclamou Kayena voando em direção ao elfo com as mãos estendidas para o pescoço dele, como se pensasse ser possível em esganá-lo apesar de sua condição imaterial.

Darius, por puro reflexo, tirou a mochila das costas e jogou-a na avantesma. A bolsa a atravessou sem causar-lhe dano algum, chocou-se contra a parede e despencou no chão, aberta. Rolaram alguns objetos de dentro dela, dentre eles o caco de diamante com a Runa Azar. A peça triangular quebrada deslizou, parando coincidentemente abaixo do espectro enfurecido.

—Onde conseguiu isto?! -Gritou ela, recuando para trás, afastando-se do objeto como se aquilo a queimasse ou causasse dor.

—Não interessa. -O ladino pegou o diamante do chão e se aproximou dela. -Tem medo? Te machuca? -Perguntou ele, sorrindo amarelo.

—Para trás!

—Ou o que? -Desafiou ele, com a peça na mão, apontando-a para Kayena. -O que é isto?

—Eu não sei… embora a dor esteja estampada em cada centímetro disso, eu não sei.

—Dor? -Perguntou Manu, ainda estagnado na escada.

—Dor de quem?! -Darius avançara tanto que a princesa estava agora de costas para a parede. -Responda!

—Sofrimento das pessoas erradas. Pesares antigos de séculos passados, é o que sinto. -Respondeu ela, transpassando os tijolos. -Isso não ficará assim, Darius Quendra, e quando eu acabar com você não restará nem sequer pó para espalharem sobre as flores.

—Volte aqui! -Bradou o ladino golpeando inutilmente a parede depois do espectro tê-la atravessado completamente.

 

—Mas que raios aconteceu aqui? -Perguntou Manu, saindo do choque.

—Eu não sei, mas, se ela tem medo disto, vou carregá-lo dentro das cuecas se for preciso. -Decretou Darius, puxando a calça para frente e guardando o Diamante Azar ali dentro. -Será meu novo amuleto da sorte.

 

***

 

Cena IV – A Promessa.

23 horas e 14 minutos. Reino Elfo – Eyrell. Pátio Interno, Castelo Real.

 

Uma seta cortou o ar e se cravou em um pêssego, derrubando-o no chão. Um par de pernas caminhou sobre o gramado úmido de orvalho e se abaixou para apanhar a fruta.

 

—Algum dia, eu vou encontrá-lo, Quendra… -Sussurrava Príncipe Hélio para si mesmo, retirando a flecha do pêssego. -E quando acontecer eu vou te vingar, irmã. Até lá… -E deu uma grande e sonora mordida. -Sonharei com esse momento. Eu prometo.


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