A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 13
Capítulo 12




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Quadragésimo dia do primeiro mês, ano 7302.

 

Cena I – Evocação.

04 horas e 06 minutos. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

 

Razatte, Luzabell, Kira, Cícero e Targus, é claro, estavam de pé do lado de fora, no pátio para treino, um diante do outro. Os magos e feiticeiros, foram ali para ceder a própria energia mágica, o mana, para o necromante. Targus, por sua vez, usaria esse mana extra para intensificar seu feitiço. Ele invocaria almas condenadas, almas que não passaram para o plano astral, lugar onde esperariam a próxima reencarnação. São almas que não aceitam a morte de seus corpos e, por isso, mantêm-se algemadas ao plano material mesmo após a morte da carne. Esses fantasmas serão mais uma defesa do clã, funcionarão como parasitas, sugando a força dos inimigos, deixando-os tontos e enfraquecidos.

O velho necromante, com a ajuda de Kira, rabiscou na terra, usando um osso, quinze runas organizadas em cruz. Sendo a central maior que as demais. Depois cada mágico tomou seu lugar em uma das extremidades da cruz: Targus na ponta superior, Luzabell e Razatte na esquerda, Kira na direita e Cícero na inferior. Todos já sabiam o que fazer. Não foi dita uma palavra sequer, pois haviam ensaiado antes e combinado o ritual inteiro, restava agora executá-lo.

De onde estavam, eles estenderam a mão esquerda na direção do necromante e puseram a direita sobre o coração. Os olhos dos quatro se acenderam, cada um na cor do próprio mana: Cícero em amarelo, Luzabell e Razatte em branco, Kira em roxo e Targus em vermelho.Enquantoisso, a energia deixava seus corpos, em forma de fios de luz, rumo a Targus. Os olhos mais brilhantes eram os dele, cor de sangue. Targus sussurrava palavras em outra língua e era repetido, em seguida, pelos demais. As runas se acenderam escarlates, primeiro uma de cada ponta e depois as seguintes. Quando a central brilhou, Targus, ainda com os olhos incandescentes, caminhou por cima das outras runas até ela. Sacou de dentro do robeum pequeno tubo de vidro com terra e derramou seu conteúdo sobre a runa-mestre. Era terra de um cemitério o que havia no frasco.

Os olhos de todos se apagaram e então o necromante atirou o vidro do chão teatralmente e disse com sua voz asmática:

—Está feito!

De imediato o que procedeu foi o a extinção da luz das runas e apenas isso.

Algumas palavras se formaram acima da cabeça de Kira, em sua tosca tentativa de se comunicar. Cícero havia posto sobre ela um feitiço para ajudá-la com a comunicação. As palavras diziam:

“E agora? Isso é tudo?”

—As almas errantes chegarão pela manhã e a maioria delas será invisível e indetectável para vocês… infelizmente algumas podem ter uma presença mais marcante e nós passaremos a conviver com elas.

—Não há como exorcizar ou banir os fantasmas desse tipo? -Perguntou Cícero. Ele tinha os cachos do cabelo completamente desgrenhados. Fora acordado no meio da madrugada para o ritual.

—Talvez, mas torçamos para que não seja necessário.

 

***

 

Cena II – A Princesa Suicida.

06 horas e 06 minutos. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

 

—Pessoal, acordem! -Chamou Manu depois de pular de sua cama no alto do beliche que dividia com Darius. -Eu estou ouvindo vozes, parecem vir das paredes.

—Volte dormir, nanico. -Urak bocejou virando-se para o outro lado.

—Darius, você ouviu? -Perguntou Manu sacudindo as cobertas do elfo.

—Eu… ouvi, mas pensei que estivesse sonhando… -Darius se sentou e Manu acendeu uma vela. O olhar do elfo parecia amedrontado.

—Apague essa luz! -Ralhou Urak.

—Urak, Darius não me parece bem. Olhe pra ele, acho que está delirando.

Darius, em um átimo, agarrou a Presa de Elefante pousada sobre a cabeceira e preparou um tiro. Mirou todo o quarto, esquadrinhou tudo, ofegando. Parecia prestes a ter um colapso.

—VÁ EMBORA! -Gritou agitando a flecha sem soltar a corda.

Urak finalmente acordou e resolveu dar atenção a Manu.

—O que você tem, orelhudo? -Perguntou ele se aproximando cautelosamente.

—Ouçam. -Disse o elfo aos sussurros. As orelhas pontudas se moviam como se fosse um tique nervoso. Estava empapado de suor. -Essa voz… eu a reconheço.

Os três ficaram em silêncio e então ouviram uma voz delicada, porém firme e de ótima dicção, dizer:

Você me deixou! E agora eu vou fazer da sua vida o pior dos infernos, Darius Quendra!

—SAIA, SUMA! -Darius soltou a corda e a flecha por pouco não se cravou no ombro de Manu.

Urak acendeu todos os archotes do quarto, tomou o arco das mãos do amigo e perguntou:

—Onde essa maldita está se escondendo? Espiã, apareça!

—Irmão! -O elfo o chamou tremendo. -É ela!

—Quem!? -Exclamaram Manu e Urak em uníssono.

—A noiva desse desgraçado! —Estrondou a voz.

—Noiva?

—É a voz… a voz… da Kayena! -Darius disse entre sibilos gaguejados. Seus olhos se moviam completamente alucinados em todas as direções. Sob a luz alaranjada das tochas, tinham uma aparência assustadora.

—Isso é impossível, Darius! -Falou Urak, retirando o arco das mãos do amigo. -Você mesmo disse que ela está…

—MORTA! —Gritou novamente a voz, ganhando a forma da Princesa Kayena Jardais diante dos três. Um fantasma.

Foi o estopim. Darius começou a berrar enlouquecido, ora pedindo perdão ora xingando as maiores baixarias ao espectro, enquanto chorava e tentava tomar de volta sua arma das mãos de Urak.

—Garras, vá chamar os outros, rápido! -Na mesma hora, a cascavel-camaleão se transformou em um cachorro e partiu latindo e correndo.

Urak conteve o elfo, mas a voz do fantasma da princesa continuava a falar. Dizia coisas sobre a hora da morte, que a culpa era de Darius e uma porção de coisas que torturavam o ex-noivo.

Alguns minutos depois, a ajuda chegou:

—Eu deveria ter previsto isso. -Comentou Targus. -O vínculo entre os dois e a forma cruel da morte somados a minha magia deve ter atraído a alma de Kayena para cá… eu devia ter previsto que ela estaria presa no mundo mortal.

—Então a expulse daqui. -Sugeriu Ezerk.

—Receio que não seja possível. Ela tomou uma forma bem consistente, não é uma simples alma penada. Notem como é quase impossível enxergar através de seu espírito. Princesa Kayena veio aqui com um objetivo e está tão obstinada que será impossível bani-la. -Concluiu. - Tirem o elfo daqui. Ele está às beiras da loucura.

Urak jogou Darius nos ombros e saiu do quarto depressa, com três curiosos nos calcanhares: Kira, Manu e Hilda. Garras ficara no quarto armando botes e tentando miseravelmente morder Kayena.

 

Lá fora, acomodaram Darius no chão e acenderam um cadeeiro para iluminar a noite nublada. O ladino estava mais calmo apesar de tremer um pouco.

—Meu irmão, do que tem medo? -Urak perguntou sentando-se de frente para o elfo.

—Eu não queria que ela morresse, só queria a pedra. Agora ela vai fazer o mesmo comigo e eu não quero morrer! -Darius tentou levantar, mas Manu o forçou a sentar novamente.

—O fantasma não pode te tocar, rapaz! Não pode te ferir. -Disse ele.

—Acho que não é disso que ele tem medo… -Supôs Hilda. -Com o que você estava sonhando?

—Ela me forçava a… -Ele pareceu desistir de falar. -Como sabe dos sonhos?

—Eu tive uma visão do que você fará, Darius. -A cigana resolveu abrir o jogo. -Há alguns dias, antes de chegar até vocês, eu vi. E, na realidade futura que eu vi, você tentava esconder de nós, até que finalmente sucumbiu à loucura e o fez.

Darius olhando para Hilda, sentado no chão, parecia um menino apavorado. Não foi capaz de dizer nada. Os demais estavam curiosos, mas não ousaram interromper a conversa, na verdade, o monólogo. Só a cigana falava.

—Previ também que você vem sonhando com o fantasma há umas três noites. Você precisa contar o que vai acontecer e talvez eu possa mudar o futuro, porque, até agora, ele não é bom.

—Do que ela está falando, orelhudo? Urak quis saber.

Silêncio.

—Se não me disser, vai acontecer exatamente o que você tem visto nos sonhos. Eu posso ajudar a mudar o futuro, mas, para isso, preciso saber o que você viu e do que tem tanto medo.

—Rapaz, acho melhor você abrir o jogo. -Manu sentia a turbulência na cabeça do elfo e, como antes, sabia que precisava conversar sobre os problemas para, assim, aliviar o peso deles.

Darius fechou os olhos, respirou fundo e então disse:

—A Kayena vem tentando me manipular, eu não sei explicar… ela me mostrou cenas de vocês mortos nos sonhos.

—Não entendi ainda. Mortos simplesmente? Continue. -Hilda encorajou.

—Alvejados… na outra noite, forçou-me a ver a mim mesmo disparando flechas contra vocês e hoje contra meu próprio pescoço depois de tê-los matado.

—Ela possuía seu corpo?

—Por poucos segundos, mas tempo o suficiente.

—Manu, chame Garras e vá agora a alguma loja de tecidos, traga-me uma tapeçaria sem bordados e bem grande. E não se incomode com o horário, invada a loja e pegue se for necessário. -Hilda falava com calma, contudo sua voz tinha uma autoridade firme. Andava remexendo os cachos do cabelo e arrastando a saia longa pela terra enquanto pensava.

—Para que você quer uma tapeçaria em branco? -Perguntou o híbrido.

—Coisas de cigana, agora vá. Kira, por favor o acompanhe. Manu não sabe quebrar regras.

O humano-duende pareceu ofendido com o comentário. Assobiou e em um instante Garras surgiu em forma de Keneau. Ele e Kira montaram e dispararam rumo à avenida na qual funcionava o mercado e a feira.

—Dá para você explicar o que vai fazer com o tapete? -Perguntou Urak com a voz cheia de raiva.

—Vou reescrever o futuro nele. Não garante mudança completa, porém é tudo o que temos até Targus expulsar o fantasma. Se for bem-feito, e será, pode alterar muita coisa; então, vou precisar de concentração máxima. É nossa melhor aposta.

—Certo, vá checar se já é seguro entrar. -Urak pediu, com certa autoridade, ao se levantar do chão.

—E por que você mesmo não vai?

—Porque se ele surtar outra vez você não vai conseguir contê-lo, Hilda. Sem ofensas, irmão. -Ele emedou ao ver a cara de poucos amigos de Darius.

A cigana dardejou-o os olhos, virou as costas e se afastou um pouco. Ela não voltaria lá então resolveu aproveitar o elo telepático com Cícero. Os olhos se iluminaram em amarelo e permaneceram assim por alguns segundos. Em seguida ela disse a Urak:

—Targus conseguiu confundir a princesa. Por hora, o fantasma o perseguirá e deixará Darius em paz.

—Como sabe se continua aí parada?

—Eu entrei na mente do Cícero e sei que está tudo bem. Agora se quiser mais informações, vá lá e pergunte você mesmo. -Respondeu ela de forma rude. -Estou entrando. - E se virou, rumo portão da fortaleza. Sem olhar para trás.

—Estou melhor, irmão. -Darius falou ao levantar. -Vamos.

—Já que está dizendo, vamos lá… que mulher arrogante!

Darius abriu um sorriso e disse:

—Ela é o cão e você ainda quer fazer ignorância?… aí não dá. -Os dois riram.

 

***

 

Cena III – Treino de Combate.

09 horas em ponto. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

 

Com o problema da Princesa Fantasma temporariamente resolvido, o clã voltou à rotina de treinos. A dinâmica seria diferente desda vez: todos participariam, incluindo também a Rainha Conaro, devidamente disfarçada e mascarada como Miragem, obviamente.

Hilda ficará de fora, ocupada em bordar a tapeçaria e escrever nela um futuro de sucesso aos Guardiões das Chamas. Manu insistiu para que Darius também fosse afastado, mas tanto o ladino quanto o general insistiram na participação daquele.

 

—Você também não vai ficar só olhando, Manu. Encontre uma arma e comece a aprender algumas técnicas. -Mandou Urak, girando seu martelo de guerra nas mãos. Estava de armadura completa, e instruiu os demais a fazerem o mesmo:

—Vistam-se e armem-se para o primeiro treino de combate!

—Achei que meu dever fosse apenas guiar Garras. -Rebateu o humano-duende.

—Você não pode ser um peso morto, tampouco terá sempre alguém te dando cobertura como da última vez. -Alfinetou Ezerk, citando o episódio do ninho de dragonesas no qual Darius o salvara da morte.

—Eu sugiro o bom e velho par de adagas. -Disse Darius. -Tente com as minhas, elas são ótimas para luta corpo a corpo, mas também funcionam bem para arremessos.

—Bom, nós estamos em dez, mas as Bruxas Siamesas lutam como uma só; logo, somos nove… -General Urak começou a explicar. -Manu, você teve sorte, vai ficar de fora hoje, mas não se acostume com isso. Pratique os arremessos que Darius sugeriu nos alvos pendurados naquela árvore.

Manu comemorou internamente, apanhou as armas e saiu de cena.

—Organizei os pares desta primeira luta tentando equiparar as habilidades para deixar o combate o mais equilibrado possível, contudo não se acostumem pois, no futuro, vou explorar as desvantagens de cada um aqui.

—Nunca vai ser equilibrado, Urak. -Queixou-se Darius. -As Bruxas Siamesas ainda são duas pessoas.

—Eu pensei em tudo, fique tranquilo. Continuando: a luta só termina quando um dos combatentes estiver caído ou for ferido de modo que impossibilite a continuidade da luta. -Alguns engoliram em seco e Ezerk sorriu. -As duplas são: eu versus Ezerk, Miragem versus Darius, Targus versus Kira e, por fim, Bruxas Siamesas versus Cícero e Garras. Quem quer ir primeiro?

—Eu quero! -Disse Miragem com uma voz retumbante e carregada de confiança.

—Excelente! É este o entusiasmo que espero dos demais. Miragem e Darius, ao centro do ringue. -o “ringue” era meramente uma grande marcação circular feita com giz nas pedras do calçamento.

Os dois andaram até o centro do círculo. Miragem tirou a capa que usava enquanto Darius sacava uma flecha da aljava e a punha no arco.

—Preparem-se… -Pediu o General. -Já!

Miragem, sem dar chance ao elfo, criou várias duplicatas de si mesma e cada uma correu em uma direção. Confuso, Darius buscava golpear, com o próprio arco, todos os clones que se aproximavam na tentativa de atingir a Miragem verdadeira. Presa de Elefante simplesmente transpassava as cópias.

—Você é pequena, mas o que te falta em altura sobra em… -A frase do elfo foi interrompida por um soco muito bem encaixado em suas costas, na base da coluna. Some isso ao fato dos anões terem uma força extra e imagine a dor sentida por ele. Tudo bem que o corselete de couso absorveu parte do impacto, mas, ainda assim, era um golpe e tanto.

Os demais aplaudiram o golpe que iniciava a luta. No chão, Darius tentava recuperar o fôlego e se levantar.

—Argh! -Exclamou ele levando a mão ao ponto golpeado e depois caindo de quatro novamente.

Miragem desfez as ilusões e se aproximou para encerrar a luta. O elfo, então, levantou os olhos, verdes e penetrantes, úmidos de dor. A anã exitou por um segundo, tempo suficiente para o elfo trapaceiro agir: com a própria mão, sem o uso do arco, ele pegou uma seta na aljava e cravou-a na panturrilha de Miragem. Sorriu, correu para longe e preparou um tiro.

—Por que ele não fez mais? Podia tê-la ferido o suficiente para acabar com a luta. -Observou Cícero. -Miragem estava dominada pelo Charme.

—É um dos defeitos dele. -Explicou General Urak. -Quer ser sempre o foco das atenções. Um verdadeiro pavão expondo as plumas.

Sangrando, Miragem reergueu as duplicatas e procurou repetir a primeira façanha, porém a flecha em sua perna não só impedia sua boa movimentação como também deixava uma trilha de pingos vermelhos diferenciando a real dos clones.

—Parece que não pode mais correr e me enganar! -Zombou.

A anã, sem dizer uma palavra, começou a mexer com a mente de Darius. A princípio ela queria derrotá-lo em luta física, mas, dada as suas condições, mudou de tática. Miragem o encarou por alguns segundos para, em seguida, vê-lo cair batendo as roupas e agitando as mãos aos gritos. Quem assistia não entendeu o que se passava, essa era uma ilusão feita para afetar somente Darius. Eram abelhas que ele sentia sobre o corpo.

 

—Fim de luta. -Urak falou após assistir o falso enxame atacar o elfo por dois minutos ininterruptos. -Vitória de Miragem!

A ilusão foi desfeita. Darius se levantou devagar e, ainda aturdido:

—Raios!

—Você perdeu por bobagem, poderia acabar com a luta quando teve a chance. -Ralhou Urak. -Miragem lidera com o recorde de quatro minutos e nove segundos, será difícil superá-la, parabéns. Quem serão os próximos?

Kira se levantou e surpreendeu a todos pela coragem. Ela enfrentaria Targus, o necromante, muitos anos mais velho que ela.

—Muito bem, Kira! -O pai a parabenizou pela iniciativa. -Targus, para o centro do ringue.

Targus alisou o talismã que prendia a capa e ficou em posição enquanto Kira parecia tranquila, batendo com o chocalho na mão.

—Prontos?… -General Urak perguntou. -LUTEM!

Targus fez o primeiro movimento. O necromante agitou as mãos e, mesmo sem tocar na jovem bruxa, empurrou-a para trás, derrubando-a de bruços na terra. Ele pegou o amuleto e marcou um triângulo no chão, sobrepondo o círculo do ringue.

Kira se recuperou e não deixou barato. Fincou o chocalho no chão, jogou os quatro braços para trás, tornou a puxá-los para a frente e bateu as palmas das mãos em um forte estrondo que fez as aves debandarem da copa das árvores para o céu. A onda sonora gerada atingiu o necromante antes que ele pudesse se proteger e o velho acabou deixando o talismã cair. Com isso, o triângulo se apagou.

A filha do General não perdeu tempo; pôs os dedos indicador e médio nos lábios e assobiou. Usando sua magia como amplificador para o som e direcionando as ondas para o amuleto, empurrou-o para mais longe do mago que, desarmado, levantou-se e tentou agarrar a adversária. Ela rapidamente conseguiu soltar o braço do aperto do velho com um solavanco.

O toque, mesmo breve, sugou a energia de Kira e, enfraquecida, a menina caiu de joelhos no chão três passos depois. O necromante caminhou até ela sem pressa, segurou um de seus quatro braços com a mão enquanto a outra a tocava o topo da cabeça dela.

O toque “parasita” continuou. Muito, muito lentamente, a pele, os lábios e os cabelos de Kira foram perdendo o brilho e empalidecendo, os olhos reviraram as órbitas para cima e a menina arfou de fraqueza e dor sem forças para contra-atacar. A energia da híbrida foi, pouco a pouco, absorvida pelo mago. General Urak, como pai, assistiu o ato calado e visivelmente desconfortável com o sofrimento da menina por mais alguns minutos antes de finalmente declarar a vitória de Targus:

—Fim de combate. Targus é o campeão com onze minutos e quarenta e oito segundos. Miragem ainda é a líder da competição com o menor tempo.

 

As lutas seguintes não foram tão rápidas nem tão emocionantes como estas duas primeiras.

As Bruxas Siamesas derrotaram Cícero e Garras por pouco, a telepatia do feiticeiro quase sobrepujou as irmãs, contudo elas resistiram bem e o venceram voltando contra ele o próprio feitiço de intimidação e medo. Todo o duelo durou uma hora, vinte e cinco minutos e sete segundos e foi muito bem equilibrado do início ao fim.

O mesmo se aplica à guerra em pequena escala travada entre Ezerk, o líder do clã, e o General Urak. Os machados de duplo fio de Ezerk se chocaram infinitas vezes contra o terrível martelo de Urak. A luta, morna do início até quase o fim, ferveu nos últimos minutos; como saldo, deixou quatro costelas fraturadas no anão, resultados de um golpe do martelo do General. Golpe que o sagrou vitorioso.

Urak também ficou bastante ferido. Alguns cortes foram tão profundos que nem a magia de cura das Bruxas Siamesas foi capaz de fechar, logo, elas recorreram ao bom e velho método não-mágico: costurar os cortes. Ao todo, somou-se um total de quarenta e um pontos distribuídos em talhos causados nas pernas, peito e em todos os quatro braços do kvarbrakoj. A luta terminou com duas horas, quatro minutos e doze segundos.

 

—Eu só perdi porque ainda estou atormentado com a Princesa Fantasma. -Disse Darius, durante o almoço.

—Errado. Você perdeu porque desperdiçou a chance de finalizar a luta. -Rebateu Urak, engolindo de uma vez só uma coxa de galinha com osso e tudo. -Precisa trabalhar esse seu maldito ego. Ninguém aqui é plateia para suas graças e isto aqui não é um circo. Em uma luta real poderia ter te custado a vida.

—Não choramingue, elfo! -Zombou Miragem. -Desculpa de aleijado é muleta. Você perdeu porque foi burro e ponto.

Todos riram enquanto Darius espumava de raiva sem ter uma resposta para aquilo até que, modificando a expressão carrancuda por um sorriso maldoso disse:

—Antes burro do que boi como o seu marido, não é, Miragem.

Todo o clã se calou. Não entenderam a ofensa de primeira, mas compreenderam bem o recado.

—O está insinuando, imundo?!

—Ora, se eu consegui dominar você, uma mulher casada, com meu Charme Beleza, mesmo usando só um quarto de todo o potencial dele… bem, tire as conclusões você mesma. -Ninguém na mesa respirava. Darius havia perdido o juízo, estava cutucando um ninho de maribondos! -Todos sabem que a iniciativa de uma pessoa comprometida é a melhor forma de bloquear este Charme Élfico…

—COMO OUSA, SEU MALDITO! Acaba de insultar de uma vez só o Rei e a Rainha dos Anões! -Miragem explodiu.

—Acabei de insultar um rei e uma rainha? Está louca? Eu acabei de insultar uma pessoa mascarada cuja a identidade real eu desconheço! -Disse o elfo. No rosto um ar debochado e canalha causava ainda mais ódio na anã.

Ela ia voltar a gritar quando Ezerk interveio:

—Miragem, pro favor, se acalme… por mais que você seja quem é fora daqui e sem a máscara, neste lugar é apenas mais uma de nós.

—Vocês conhecem minha identidade e me devem respeito!

—Sim, devemos, mas não como se estivéssemos diante da Rainha Conaro. Aqui o líder sou eu e você é um soldado como Darius ou como qualquer outro. Controle seus rompantes de fúria.

—Que ultraje! Ainda assim todos vocês deveriam pensar muito bem antes de injuriar alguém. Ainda mais sobre um assunto tão grave!

—Com toda a certeza, Miragem. Darius, dobre a língua antes eu a corte fora, ela não fará falta a nenhum de nós, eu lhe garanto!

—Argh, que saudade que casa! -Darius exclamou ao sair da cozinha e bater a porta como uma criança mimada.

—Urak, não acha melhor ir atrás dele? -Ezerk perguntou, enchendo o prato outra vez.

—Deixa pra lá. Ele já é um homem crescido, só precisa aprender a perder de vez em quando.

 

***

 

Cena IV – Feiticeira Deusa.

17 horas e 08 minutos. Reino Duende – Oroada. Cúpula da Intelecção.

 

Mais uma vez, as mentes mais sábias de Zaatros estavam reunidas. Havia quatro duendes ali. Lígia Voajeir não participaria. Ela não se sentia bem e pediu abstenção da assembleia de hoje.

Todos eram pura ansiedade. Ávidos por conhecer a teoria que seu líder criara e que poderia amenizar os conflitos.

Azmut, então, disse:

—Ouçam com atenção:

“Harkuos reúne, ao mesmo tempo, certas características que a configuram como feiticeira e outras como deusa. Esta teoria levanta uma nova e neutra questão, a qual a coloca como uma entidade que combina os dois elementos.

Postulamos que Harkuos fora a primeira forma de vida de Zaatros. Em decorrência disso, Ela se apresenta como a Herdeira dos Antigos, entretanto, a questão é mais complexa… Ela, com isso, quer apenas deixar claro que foi a primeira vida e não deusa em si. Logo, Harkuos fora criada para transmitir um dos dons: o dom humano da feitiçaria. Desempenhou tão bem a sua função que estendeu a magia para além dos humanos, adaptando a dadiva para que todos possam aprendê-la se assim o quiserem. Isso certamente fez com que os humanoides de outras raças atribuíssem a ela o título de divindade, uma vez que era dona de habilidades únicas, as quais expandiu, posteriormente, aos demais.

Com o passar dos séculos, essa devoção aumentou seguindo o ritmo de crescimento da população mundial. A fé depositada em Harkuos fora tamanha que, mesmo sendo uma mulher comum, ela passara a ser de fato uma deusa ao receber todo o poder que o povo transmitia. Em dado momento, Ela se consolidou uma deusa completa. Mesmo tendo vindo ao mundo como uma mortal, Harkuos conquistara a vida eterna e poderes infinitos. Ela, então, isolou-se de seus seguidores na maior montanha de Zaatros, o que provocaria, milênios depois, o questionamento.

Hoje, após esse questionamento ter germinado, o impasse dicotomiza os homens dividindo-os em Fiéis e Lumes Antigos e isto gera uma hostilidade infrutífera. Harkuos, sendo ou não deusa, não causa mal algum ao mundo, porém, ainda assim, os homens guerreiam para impor suas vontades sobre os que discordam.

No fim das contas, o que nós da Cúpula da Intelecção sustentamos é que Harkuos nasceu como uma humana e feiticeira comum e, com o passar dos anos, tornou-se deusa pela vontade e fé do povo que a alimentou e lhe forneceu o poder de um imortal. Deuses nem sempre nascem deuses, algumas vezes pessoas comuns se transformam em deuses pelo amor e pela fé dos povos que auxiliou ao longo de sua jornada em vida terrena. Logo, concluímos que todo deus é real desde que haja uma única pessoa que nele creia e que a ele transmita fé.”

 

—Brilhante! Eu concordo com tudo. -Disse Ônix, aplaudindo extática.

—Também aprovo, mas como a nova teoria vai amansar os conflitos? -Questionou Umbare enquanto limpava as lentes grossas de seus óculos.

—Sinceramente, velho amigo, não vejo como vá amenizar a situação. -Explicou Azmut. -Contudo vai pôr Oroada em uma posição imparcial… torço para que surta efeito nas frentes e desistam da invasão, contudo não creio que isso aconteça, infelizmente.

—Talvez sirva para despertar o bom senso nos outros reinos. Ramavel, Ruthure e Kaotheu vão à guerra, porém Feltares e Eyrell podem ser convencidos a se manter afastados. -Emendou Ciano.

—Conversei com Rei Henrique antes de vir para cá e ele prefere que todos os reinos recebam a teoria, inclusive os envolvidos diretamente. Imagino que seja para evitar acusações de auxílio oroano a qualquer lado que seja. -Disse Azmut.

—Precisamos de um nome para ela. -Sugeriu Ciano.

—Algo impactante. -Emendou Ônix.

E os quatro ficaram minutos em silêncio, cada um pensando em um nome para a teoria de Azmut Nipamateno.

—O que acham de “Harkuos, a Feiticeira Deusa”? -Perguntou Ônix.

—Não é tão atraente... mas, levando em conta a clareza de entendimento, está de bom tamanho. -Disse Umbare.

—Todos a favor de “Harkuos, a Feiticeira Deusa”? -Azmut perguntou erguendo a mão primeiro.

—Sim. -Disseram os outros.

—Então está concluída. Enviarei ao rei para que ele decida quando divulgar. -Finalizou Azmut.

 

***

 

Cena V – Complô.

21 horas e 40 minutos. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

 

—Pediu para me chamarem, Hilda? -Disse Manu ao entrar no novo quarto da Cigana. Ela ganhou um cômodo só para si para poder se concentrar na tapeçaria e também nas previsões que faria quando a hora chegasse. -Está ficando muito bonita, os fios prateados sobressaem bastante no pano vermelho.

—Obrigada, Manu. E sim, pedi que o chamassem por dois motivos. -Respondeu, lançando-lhe um olhar misterioso e firme, fazendo-o desviar o olhos para os pés, desconfortável.

Hilda deixou o bordado de lado, ajeitou-se na cadeira de balanço e disse:

—Primeiro: sobre o alçapão nos Arquivos de Ruthure. Conversei com Darius e ele disse que, pela descrição da tranca que eu fiz, não será tão difícil arrombar. Iremos amanhã, nós três, Garras e Kira.

—Iremos? Kira também? Por que contaram a ela? -Atropelou-se o pequeno híbrido.

—Sim, iremos! E, não contamos a ela; acontece que Kira é uma bruxa do som e fica difícil manter um segredo longe da superaudição dela. Por um lado é bom, não sabemos o que há lá em baixo e quanto mais ajuda melhor.

—E eu, quando opino nessa história? -Queixou-se.

—Nunca. Continuando: o outro assunto é sobre capturar um anão e dá-lo para Garras como jantar. -Disse a cigana sussurrando, talvez por medo de que Kira, mesmo longe, a ouça de novo.

—Hilda, isso eu não farei! É desumano!

—Escute antes de ter um chilique! -Ralhou a cigana agitando as mãos e afinando a voz para imitar os gestos de Manu. - Teremos baixas na guerra, isso é um fato… vamos alimentar Garras com um anão que tenha perecido em combate. Assim não precisaremos matar ninguém.

—Hum, se for assim acho que não tem problema. -Manu disse, um pouco mais calmo. -Posso ver a tapeçaria? -Perguntou

E Hilda assentindo:

—Claro. -Pegou o trabalho e estendeu diante do companheiro de clã. No tecido, estava bordado a princesa fantasma amarrada por correntes presas ao chão, ao lado, um Darius inacabado com os braços abertos para uma Estrela Astral também pela metade. Era um desenho com perspectiva e profundidade, altamente rebuscado e milimetricamente planejado.

—Está muito bonito, quando vai terminar?

—Talvez em duas semanas. Ainda falta colocar todos nós vivos e ao lado de Dairus, Targus por trás de Kayena controlando-a como um mestre de marionetes… coisas assim. Quanto mais criativo e subjetivo melhor. Assim diminuo a chance de alterar demais e causar um dano grave. É muito perigoso jogar com o futuro.

—Vai dar certo, não é? -Perguntou um arrepiado Manu.

—Vai, medroso. Era só isso, agora tenho que voltar ao trabalho e você aos arremessos. Soube que foi um fracasso com as adagas! -Comentou rindo.

—Ha ha ha, vou tentar outra arma. Aliás, Cícero disse que tem um presente pra mim, talvez seja uma arma mais simples de manejar.

—Mais simples que uma adaga? Deve ser um canivete do tamanho de um dedo! -Disse entre gargalhadas. -Boa sorte!

Manu apenas revirou os olhos e saiu do quarto.


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