A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 12
Capítulo 11




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Quadragésimo dia do primeiro mês, ano 7302.

 

Cena I – O Orbe de Vidro.

05 horas e 45 minutos. Reino Humano – Feltares. Pátio interno, Palácio real.

 

—Neste segundo dia de aula, a moleza acaba. -Decretou Kaegro ao príncipe aluno. -Imagino que esteja entusiasmado para usar o gelo, porém antes disso precisa saber as noções básicas de proteção. Não sou do tipo que prefere defesa, mas não devemos ignorar esse fundamento. -O mago subiu as mangas do manto teatralmente. -Algo a dizer antes de começarmos?

—Bem mestre, eu ganhei isto ontem a noite. -Franco estendeu a mão e mostrou um anel prateado com uma pedra azul em forma oval. -Ulisses me deu quando contei que escolhi o gelo para começar, disse que se chama Anel Geada e que não é um grande amuleto, mas basta para iniciantes.

—Ótimo, foi uma boa escolha a do seu irmão.

—Eu pensei que poderia usá-lo hoje…

—Sim, mas não com táticas ofensivas. Não ainda. Entenda: para um iniciado, a defesa é indispensável. Você não tem cacife pra lutar comigo, por exemplo; então, a estratégia número um nesses casos é a proteção, depois a camuflagem ou algo que facilite sua fuga e, por fim, a fuga em si. É covarde, eu sei, porém é assim que funciona.

—Mas…

—Sem discussão! Você é um peixe de aquário e não pode com uma lula gigante.

—Sim, senhor. Desculpe-me, mestre.

—Observe. -Pediu Kaegro. -Técnica básica de campo de força, é o mais fácil de todos e, depois do que fez ontem, não espero nada menos que o sucesso na segunda tentativa, no máximo.

O velho se afastou um pouco do príncipe e fez um gesto: algo como se fosse abraçar-se, só que com as palmas das mãos voltadas para a frente e não para si. Instantaneamente uma bolha de aparência frágil e vítrea o envolveu.

—Onde nasci, esta mágica se chama meramente de Casulo, mas aqui acho que o nome seria Orbe de Vidro. -Explicou. -Repita o movimento e diga: Tutela, Vitrum Orb.

Franco, sem dizer nada, executou o movimento de “abraço invertido” e disse as palavras do feitiço. Isso gerou um campo de força oscilante que aparecia e desaparecia para logo depois repetir o processo incessantemente.

—Sabe como acessar a energia do anel? -Perguntou o mago.

—Não, senhor.

—Não sou o melhor para explicar isso, mas pense no seguinte: a magia flui de pontos como a cabeça e o peito para a ponta dos dedos... e da voz, no caso de feitiços falados. -Príncipe Franco era todo ouvidos. -O anel será mais um desses pontos além de um tipo de canalizador que te ajudará a externar o poder. Ficou claro?

—Sim, mestre. Tentarei novamente.

E Franco mais uma vez repetiu o movimento e o comando do feitiço, desta vez obtendo um melhor resultado.

—Sustente, vou atirar um raio leve e testar a eficácia do seu Orbe de Vidro.

O príncipe enterrou os pés na terra e se concentrou em resistir o máximo possível. Então veio o raio, amarelo e luminoso igual ao primeiro, o mesmo que o havia arremessado para trás no dia anterior. O choque dele com o campo de força emitiu um som alto e retumbante. A bolha defletia o raio para os lados e, dentro dela, Franco sorria.

—Atenção, vou aumentar a carga. Estique lentamente os braços para frente, com as palmas horizontalmente voltadas na direção do raio. Mantenha os dedos juntos, uma mão com eles voltados para a direita e a outra para a esquerda.

Franco assentiu. Kaegro elevou a força do ataque e, como instruiu seu mestre, o aprendiz agiu. Estendeu os braços devagar e representou a pose.

A potência do raio dobrou e Franco começava a sentir dificuldades para sustentar o Orbe de Vidro. Ele era lentamente empurrado para trás, com campo de força e tudo. Depois de alguns segundos, perdeu o equilíbrio e caiu, desfazendo a magia. Por sorte, o raio passou acima de sua cabeça, estilhaçando um chafariz no fim do pátio.

—Franco, diga-me onde errou. -Cobrou Kaegro.

—Ah, eu cai (?) -Não ficou muito claro se era uma resposta ou uma pergunta.

—Antes disso, criança! -Kaegro gritou perdendo a paciência, mas o príncipe não fazia ideia de onde estava o erro, então apenas abaixou a cabeça.

—Não existe base defensiva onde as pernas fiquem juntas. Isso não dá apoio nenhum e fica fácil desequilibrá-lo. Deve separá-las, não importa como, desde que fiquem afastadas.

—Está certo, senhor.

—Mas é claro que estou! Cansei de você por hoje. Quero que procure livros sobre mágicas defensivas e que os leia para amanhã! Mais uma coisa: é bom praticar sozinho a Orbe de Vidro e qualquer outra técnica de nível iniciante que achar prudente.

—Sim, mestre.

—Amanhã tentarei arrancar sua cabeça, estude e me surpreenda.

 

***

 

Cena II – Igualdade Reconquistada.

07 horas em ponto. Reino Elfo – Eyrell. Praça dos Charmes.

 

Era um lugar belo. O terreno era irregular e quase todo coberto por um tipo de grama fina que mais lembrava pelo. Havia, muitos ipês de folhas coloridas. Existiam, ainda, alguns quiosques construídos com o bambu mais verdinho que possa existir. Costumavam ser muito disputados pelos casais, principalmente durante o dia dos namorados.

Mas o que dava o nome de Praça dos Charmes eram as seis esculturas de granito, sobre a elevação mais alta, no centro do local. Cada uma representa um dos Charmes Élficos, motivo de maior vaidade e orgulho da espécie.

O gato era símbolo do Carisma; esguio, de rabo comprido, bigodes cheios, impecavelmente sentado sobre as patas traseiras enquanto lambia uma das dianteiras. Do lado esquerdo, o elefante: uma das patas dianteiras erguida, como um cão de caça que aponta a direção da presa, olhar feroz e orelhas e presas gigantescas; a Força. Seguindo na mesma direção, o pavão; de cabeça erguida e olhar soberano, representava a Beleza, exibindo as plumas da cauda como se fosse um leque aberto. Depois, a serpente, vultosa e comprida, enrolada em si mesma, pescoço longo terminado em uma cabeça chata com a língua de fora; a Persuasão. O próximo animal, o sabiá, era o menor dentre todos os outros, mas tampouco ficava para trás no quesito beleza; de peito estufado, asas levemente esticadas e bico aberto, ele simbolizava a Voz Sedutora. E, fechando o círculo, a Inteligência, o polvo: dois dos tentáculos tocavam a enorme cabeça mole enquanto os outros forneciam apoio, elegantemente espalhados como vinhas pelo chão.

 

No dia anterior, os moradores receberam um aviso que os pedia a presença ali no pátio. Foram muitas pessoas, não todas. A convocação era um convite sem obrigatoriedade de presença.

O arauto sacou um pergaminho e começou a lê-lo exatamente as sete horas. Dizia o seguinte:

“-Com o fim da União Real, Eyrell não mais se sujeitará às limitações e desigualdades as quais os demais reinos se submetem. A partir de hoje, quadragésimo dia do primeiro mês do ano 7302, todo primogênito será herdeiro do trono, seja homem ou mulher, como no início. As antigas regras de pureza racial se mantêm em vigor; logo, apenas elfos reinarão em Eyrell.

A magia poderá ser praticada e estudada livremente por homens e mulheres, desde que não causem mal nenhum a ninguém e sigam as restrições acerca das técnicas proibidas de magia.

Em resumo, tudo o que os homens podem fazer se estende também às mulheres se elas assim o desejarem.

Uma cópia das alterações será enviada a Feltares e a Oroada, os honrosos aliados da Coroa Élfica, com o objetivo de estender a igualdade por todo o Zaatros um passo de cada vez.”

 

Ao fim do pronunciamento, o povo gritou e aplaudiu, estavam felizes com a mudança. Por tempo demais a cultura eyréllica foi oprimida pela União Real e agora tudo estava de volta aos eixos.

 

***

 

Cena III – Erguendo Muros.

10 horas e 18 minutos. Reino Gigante – Ramavel. Arredores do Monte Nublado.

 

Rei Danan fora pessoalmente aos limites de seu reino, próximo de onde se iniciava o território sagrado habitado pela Deusa Harkuos e próximo também do limite com o braço de mar que dava para o Reino Anão. Lá estava ele para instruir nos mínimos detalhes os magos, feiticeiros e soldados responsáveis por guardar o lar da Herdeira de Zaatros.

 

—Quem é o responsável pela proteção mágica? -Perguntou ele em tom cordial. Estava andando de um lado para outro, observando as conversas dos envolvidos no trabalho. À distância de um lançamento de catapulta, erguia-se a imponente montanha da Deusa: O Monte Nublado.

—Sou eu, majestade. -Falou uma gigante, aproximando-se por trás. Era quase dois palmos mais alta que Rei Danan. Ela exibia porte atlético sob o corselete de couro vermelho-escuro que usava; os cabelos, cheios e ondulados, passavam um pouco dos ombros, os lábios eram grossos e maquiados com batom da mesma cor do corselete; a pele negra trazia marcas mais claras como cicatrizes de uma antiga e grave queimadura no braço direito.

Ela esperou até que o rei a olhasse e continuou:

—Fui nomeada para o serviço no lugar de Kaegro Gorj, que agora é funcionário da Coroa Humana em Feltares. Se me permite dizer, sou mais apta do que ele, pois, além de feiticeira, sou imortal e uma exímia lutadora. Irei hoje mesmo me oferecer como voluntária para a linha de frente ou para guarda da realeza, ainda estou por decidir. -Disse ela. -Meu nome não é conhecido por ninguém vivo e eu acho melhor assim. Sou conhecida pela alcunha de Aço Voador.

—Muito bem, chamar-te-ei apenas de Aço. -Falou Danan estendendo a mão para cumprimentar a feiticeira. -Perdoe-me se for rude perguntar, mas a senhora é a gigante da maldição, não é?

—Eu mesma. -A feiticeira sacou um punhal de uma das algibeiras e passou-o no pulso. A pele de todo o antebraço se transformou em aço e defendeu o golpe. -Chame-me como preferir, meu rei. Aço pela pele e Voador porque nunca toco o chão. Se observar bem, estou sempre flutuando. Creio que seja parte da maldição, não me lembro mais… já faz mais de setecentos anos.

—São poderes surpreendentes, Aço. -Cortou o rei, desconfortável por importuná-la com questões pessoais por mera curiosidade. -Então, quais os planos? O que precisa para executá-los?

—Manterei a sugestão de vossa majestade: ergueremos um grande muro de energia que circundará o palácio. -Explicou. -Infelizmente não há como a parede protegê-lo completamente. A proteção se estenderá até mil e setecentos metros, aproximadamente, ou seja, se invadirem pelo ar e estiverem acima de tal altitude, será inútil.

—Há como levantar uma cúpula que envolva toda a montanha? -Perguntou o Rei, entrelaçando os dedos com as mãos atrás das costas.

—Isso não será possível. Como disse, a altitude máxima de alcance fica em torno de mil e setecentos metros, a cúpula só teria essa amplitude. A montanha é muito maior que isso.

—E o que fará para proteger além da parede?

—Sinto muito, mas não há nada que possamos fazer. Sugiro guarnecer as fronteiras e aumentar o contingente de arqueiros.

O rei pareceu desconcertado por um momento, mas logo se recompôs e disse:

—Possui material para construir a proteção?

—Sim, nada falta. Contudo, se a situação for mesmo grave, convém convocar mais soldados para o trabalho braçal a fim de acelerar a construção. A informação da parede mágica pode vazar e isso consequentemente pode provocar a antecipação de um ataque Infiel para, deste modo, nos encurralar antes do fim da conclusão do nexus.

—A parede de energia é resistente ao fogo? -Quis saber Rei Danan, lembrando-se do aviso da Deusa.

—Praticamente imune. Será difícil causar danos consideráveis a ela usando fogo. -Garantiu Aço Voador.

Rei Danan deixou escapar um suspiro de cansaço antes de confirmar o envio de mais homens para o serviço e sair.

***

 

Cena IV – Reinos, Alianças e Desavenças.

Mesmo dia, 13 horas em ponto. Reino Humano – Feltares. Mansão Goatath.

 

A turma havia sido liberada uma hora atrás. Professora Layla fez questão de servir almoço ao seu novo pupilo, tudo fora acertado com Mary naquela mesma manhã.

 

—Pronto para as aulas avançadas? -Perguntou ela, pondo os óculos.

—Sim, e animado!

—Imagino que queira saber sobre a União Real...

—Isso. Eu quero saber o que pode acontecer agora que tudo se desfez.

—Certo… -A senhora Goatath se levantou, subiu a escada da estante e pegou um rolo de papel. -Este é o mapa de Zaatros. -Falou ao desenrolá-lo sobre a mesa. -Comecemos pelo meu povo, os duendes.

—O que têm eles?

—Como pode ver, Oroada é muito próximo de Ruthure e os ruthuranos são uma das maiores frentes do conflito.

—Ramavel é a outra…

—Exato. Os duendes não são guerreiros. Meu reino tem conhecimentos muito mais avançados que o restante do mundo. A medicina oroana, por exemplo, conhece a cura para doenças que até hoje matam rapidamente no resto do mundo. Entende onde quero chegar?

—Que os ruthuranos possam planejar invadir Oroada para roubar recursos? -Isaac apoiava os cotovelos na mesa e inclinava-se para a frente.

—Sim, mas não me preocupo com isso. A muralha dos duendes nunca foi penetrada, lá dentro é o lugar mais seguro de Zaatros.

—E se a guerra estourar e as pessoas quiserem se abrigar lá dentro?

—Infelizmente não há espaço nas ilhas para abrigar nem mesmo um quarto de reino. O rei deve oferecer proteção a algumas pessoas, um número bem seleto.

—Que Harkuos nos guarde…

—Lembrei-me de outra coisa. -Acrescentou a professora estalando os dedos. -Eyrell sem dúvida vai restituir os direitos que a União Real negava às mulheres.

—Verdade, nada os impede agora! Mamãe e tia Meline ficarão felizes com isso.

—Depois de Eyrell, talvez outros reinos sigam o exemplo. Oroada e Feltares são aliados ao Reino dos Elfos, é possível que adotem, aos poucos, as mudanças deles.

—Senhora Goatath, acha que podem estender o uso da magia para mulheres não feiticeiras? -Perguntou o menino, pensando na tia.

—Sim, por que não? Talvez isso esteja sendo feito agora, neste momento. Seria o maior ato de igualdade entre os súditos e ao mesmo tempo de afronta aos reinos de visão mais patriarcal, como Ruthure e Ramavel… -Layla riu. -É curioso, como os maiores envolvidos no conflito não são tão diferentes assim, não é mesmo?

Isaac concordou com um aceno e disse:

—Feltares também tinha um perfil meio desrespeitoso com as mulheres. Acho que a nossa Rainha Tenniza tem mudado isso.

—Sem dúvida. A presença de uma elfa na realeza de Feltares tem feito muitas transformações na corte.

—Mas isso não pode provocar revoltas?

—Sem dúvida provocará, contudo acho que não internas… creio que um reino venha a se ofender com outro e é certo algum tipo de bloqueio ou ataque. Também é possível que as afinidades entre alguns se fortaleçam agora e novas alianças se formem.

—Sim.

—Ruthure e Kaotheu sem dúvida continuarão unidos, Feltares pode se unir a Eyrell, Oroada e, talvez, muito remotamente, com Ramavel.

—Acho que os eyréllicos e os ramavenos não se dão bem. -Acrescentou o menino.

—E está certíssimo. São cicatrizes da União Real. Feltares provavelmente terá de escolher a quem se aliar, o certo é que Oroada e Eyrell são aliados, aliados de longa data, diga-se de passagem…

—Então cabe a Feltares escolher entre ficar com Eyrell e Oroada ou com Ramavel.

—Precisamente.

 

***

 

Cena V – Desmascarada.

18 horas e 30 minutos. Reino Elfo – Eyrell. Hospedaria Seta Afiada.

 

Em um cômodo, ao lado da recepção, era servido o jantar. A mesa muito bem decorada e farta, não como Mydorin estava acostumada em seus dias de princesa, mas estava boa o suficiente para a agora Nyra Anthe. Ela caminhava, seguida por Calu, rodeando a mesa e se servindo apenas de pratos que desconhecia. Queria experimentar as novidades.

 

—Olá, senhorita Anthe! -Tizana cumprimentou, sentando-se ao lado dela. -Parece preocupada.

—Boa noite, Tizana… é, realmente estou. -Admitiu ela, após engolir a primeira garfada. -Saí de casa com um objetivo, mas pouco tenho conseguido cumpri-lo. Na verdade as coisas parecem caminhar na direção contrária. Pode me chamar de Nyra, não sou muito adepta a cordialidades bobas.

—Se precisar conversar com alguém sou toda ouvidos. Isso, é claro, se não estiver me intrometendo.

—Obrigada, é muita gentileza. Eu deixei muita coisa para trás e saí do meu reino em busca de fazer do mundo um lugar melhor, porém mais uma vez dividiu-se o que já estava separado.

Uma gata branca e vesga pulou na cadeira vaga ao lado de Tizana e a dona da pensão disse alisando o pelo do animal:

—Não são uma gracinha esses olhinhos tortos?!

—É linda mesmo. -Falou Nyra sorrindo.

—Ela se chama Nuvem. Mas, continuando, fala da dissolução da União Real?

—Sim, estive lá e não me deram atenção. -Nyra, cabisbaixa, espetava uma azeitona com a ponta da faca.

—Soube que esteve lá… quando chegou aqui, não imaginava que fosse a representante do Rei Henrique.

—Depois do fracasso, não sei mais se mereço esse cargo.

—Não, não é isso! Pela Deusa, não! -Desculpou-se Tizana. -Falo sobre sua simplicidade. Não procurou um lugar luxuoso para pernoitar e nem voltou a Oroada após da reunião.

—Toda a vida tive luxo, quero variar um pouco… A família real de Eyrell até me convidou para ficar no castelo, mas eu recusei. Muito receptivos eles… aliás, todos os elfos que conheci até aqui o são.

—Fico lisonjeada, trocar um palácio por um hotelzinho…

—Eu estou amando minha estadia aqui, Tizana. Este é um ótimo lugar e, devo admitir, tenho um fraco pelo aroma de madeira e luzes; meu quarto tem tudo isso. -Um sorriso. - Tudo era mármore onde eu morava em antes, uma palidez sem graça.

—Aqui tem mais cor. Preciso de dizer uma coisa... -Tizana abaixou o tom de voz para que ninguém a ouvisse, se aproximou de Nyra e disse: -Eu tive dúvidas, mas agora sei quem você é, Princesa Mydorin.

 

***

 

Cena VI – Violência.

Quadragésimo primeiro dia do primeiro mês, ano 7302, meia-noite e 31 minutos. Reino Humano – Feltares. Q.G. das Dragonesas.

 

Mexiam na fechadura pelo lado de fora. Em menos de trinta segundos, ouviu-se um estalido, a porta se abriu e alguém entrou.

Todas as Dragonesas dormiam, algumas em redes, outras em colchonetes forrados no chão. Não havia velas ou candeeiros acesos e a única fonte de luz provinha do Raus com seu brilho levemente avermelhado no céu cheio de estrelas.

O intruso caminhou sem fazer chiar uma tábua sequer do assoalho. Esgueirou-se lentamente pela estalagem e, mesmo sem enxergar, não esbarrou em nenhum móvel. O único som emitido era a respiração cansada e por vezes entrecortada por gemidos baixos.

Pôs-se a galgar as escadas. Astutamente pulou o degrau que range durante a subida e, chegando no fim da escada, sentiu uma picada no pescoço. Um dardo.

 

—Que droga, Catarina! -Exclamou a voz feminina da invasora perdendo o controle das pernas e descendo rolando de volta ao primeiro piso.

Um archote foi aceso para iluminar o cômodo. Estirada do chão, ao pé da escada com os dentes trincados de dor, estava uma Vívian bastante ferida.

—O que aconteceu com você? -Perguntou Catarina pondo as mãos nos quadris. -Sumiu por cinco dias e está péssima!

—Você me fez cair da escada… e foram quatro dias. -Ao fim da frase, outro gemido.

—Finja que me engana e eu finjo que acredito. -Catarina provocou enquanto a ajudava a se levantar. -Acha mesmo que eu vou acreditar que todos esses hematomas, sangue seco e tudo o mais surgiram agora, depois da queda? E pro seu governo são cinco dias sim, já passa da meia-noite.

—Não importa. -Murmurou, desvencilhando-se de Catarina. -Onde estão as outras?

—Dormindo ou fingindo dormir e ouvindo a conversa. Então, desembucha. O que aconteceu?

—Pela manhã eu conto, estou morta de cansaço e não quero ficar repetindo. -Bocejou ela ainda zonza pelo dardo paralisante ao subir as escadas.

—Não precisará repetir. -Kênia falou. A gigante desceu e levou Vívian pelo braço, deixando-a cair sobre uma velha cadeira de balanço. -Podem vir, todas sabemos que estão ouvindo a conversa.

O restante do clã deixou seus esconderijos e falsos sonos ao chamado da líder. Aglomeraram-se todas as seis em semicírculo diante da recém-chegada vinda da farra.

—Pode se explicar. -Kênia pediu meio que mandando.

—Por onde eu começo?… Bem, lembram daquela noite na taberna? -Todas assentiram, inclusive as que não foram, estas também sabiam o que havia acontecido pela boca das outras. -O garoto com quem eu saí…

—Garoto não, Vívian. -Ruth interrompeu. -Aquele homem tinha idade para ser seu pai.

Vívian não deu confiança ao comentário e seguiu a narrativa:

—Eu dormi com ele naquela noite. No dia seguinte acordei sozinha e trancada em um porão, amordaçada e acorrentada.

—Como você permitiu isso?! -Exclamou Meline.

—Olhem, se forem me interromper a cada frase eu não vou terminar nunca! Estou cansada e quero dormir, além do mais não devo satisfação nenhuma a vocês. Estou fazendo a gentileza de contar para que não fiquem preocupadas.

Meline torceu o nariz para a grosseria e se calou.

—Como eu ia dizendo, acordei nesse tal porão. Com o passar das horas, lembrei-me de ter sido golpeada na cabeça depois de termos feito amor.

Houve algumas exclamações mudas de surpresa. Mais pela agressão do que pelo fato da assassina se deitar com um homem que acabou de conhecer em uma briga de bar.

—Ele me disse que era casado, mas queria continuar se envolvendo comigo. Eu disse que não nasci para pertencer a ninguém e deu no que deu.

—Como a mulher dele não ouviu os seus gritos por socorro?! -Perguntou Kênia, um pouco alterada.

—Eu fui mantida em cativeiro em outra casa. A que ele dividia com a esposa ficava na rua ao lado. Eu estava presa e desarmada. -Ela então desviou os olhos para os sapatos. -Uma ou duas vezes por dia… é difícil dizer eu não sabia quando era dia ou noite; ele ia até mim e me violentava.

A assassina levantou a cabeça e olhou para cima tentando segurar lágrimas.

—Hoje ele levou um punhal preso no cinto. Eu o peguei quando ele tirou as calças e o furei.

—Você o matou?! -Perguntaram Ruth, Rita e Kênia ao mesmo tempo.

—Não, ele ainda está vivo. Deixei-o definhando, perfurado em pontos não letais, vertendo sangue e atado às correntes que me mantiveram presa! -Vívian mostrou um sorriso amarelo. O rosto sujo de poeira e lágrimas exibia os dentes em um riso de vingança. -Ele deve morrer ao nascer da Astral… gota por gota de sangue.

—Mas isso não explica como se soltou das correntes. -Observou Kênia.

—Eu o fiz destrancar todos os cadeados que ainda me prendiam. Ele costumava liberar meus braços para… argh! Só mantinha fechado os cadeados de uma das minhas pernas e do pescoço.

—Que horror! -Exclamou Meline com as mãos sobre o rosto.

—Assim que pus as mãos no punhal, mirei-o onde mais dói em um homem, prendi o cara de uma forma que, se ele recuasse ou fizesse qualquer movimento brusco, seria ele mesmo a decepar o órgão… e o ameacei: solte-me ou seja um inútil deste dia em diante. Escolha! -Vívian ria muito enquanto mais lágrimas caiam. -Ele me soltou, eu o prendi em meu lugar, o enchi de furos e… -Desta vez um riso agudo e ensandecido ecoou pela estalagem. -E o castrei!


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