três de bastões escrita por themuggleriddle


Capítulo 4
Os Jardins de Redcliffe Square




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/718697/chapter/4

Feliks Ravenwood suspirou enquanto deixava a caneta sobre a mesa, encarando a sua própria assinatura no relatório que havia acabado de terminar. Três meses haviam se passado desde que deixara Little Hangleton e agora, a medida que Outubro ia passando e os sinais do outono iam se tornando cada vez mais visíveis nas folhas amareladas e no ar fresco do fim de tarde, tudo o que o homem podia pensar era o quão frustrado ele ficara naqueles últimos meses.

Assim que o médico chegou em Londres, ainda em Julho, o Inspetor Chefe Harry Webster fez questão de lhe dar um sermão sobre o tempo que ele levou para voltar de Yorkshire. Depois disso, Ravenwood tentou ao máximo não pisar fora da linha no necrotério, mesmo que a vontade de visitar East Yorkshire estivesse quase sempre presente, nem que fosse apenas para escapar de todo o barulho da capital e trocar algumas palavras com Frank Bryce. Estar no interior o fazia se lembrar da sua infância na Escócia e só agora ele percebia o quanto sentia falta do ar fresco, do silêncio e das noites estreladas que as vilas longe de cidades grandes podiam oferecer.

Feliks levantou o olhar da sua mesa, escutando enquanto o assistente do necrotério guardava o último corpo do dia dentro de sua respectiva gaveta, antes de abrir um de seus cadernos e puxar dali de dentro um envelope. Agora que seu trabalho se tornara mais do que apenas identificar as vítimas dos ataques aéreos à Londres, sua rotina havia se tornado mais interessante, mas mesmo com os novos corpos que chegavam todos os dias graças ao aumento da violência desde o início na guerra (sem contar os casos inesgotáveis que sempre agraciavam a sua mesa no Hospital Westminster), o médico não conseguia evitar se fixar no caso dos Riddle. E ficava ainda mais difícil se esquecer do assassinato em questão por ainda receber, pelo menos duas vezes ao mês, cartas vindas de East Yorkshire.

As cartas de Frank Bryce normalmente tinham três ou quatro páginas cheias de reclamações relacionadas à vila e belas descrições dos campos de Yorkshire. De vez em quando a letra do homem parecia estranha e feia, difícil de ler, e Feliks sempre pensava que tais passagens eram escritas durante a noite, depois que o jardineiro havia sido acordado por algum sonho ruim ou durante uma insônia irritante. Algumas páginas tinham manchas de café ou chá, outras eram amassadas. Mas, no fim, elas eram boas cartas que sempre terminavam com a mesma pergunta:

“Achou alguma coisa?”

Mas Ravenwood não havia encontrado nada. Ele havia tentado procurar por informações sobre Morfin Gaunt nos arquivos na polícia, mas não havia nenhum traço dele por lá. Toda vez que estava fora de casa, Feliks prestava uma atenção redobrada para ver se via qualquer sinal de alguma cor estranha ou sombras parecidas com o que vira em Little Hangleton e, apesar de às vezes ver algo, nunca vira nada parecido com aquela geada que vira nos corpos dos Riddle.

“Doutor?” O homem ergueu o rosto para ver um jovem parado na porta do seu escritório.  “Já guardei eles. ‘To indo.”

“Certo. Eu fecho tudo quando terminar aqui.”

O jovem acenou e desapareceu da sua frente. O médico fechou os olhos e respirou fundo, tentando sentir o silêncio a sua volta. Aquela era uma das vantagens do seu trabalho: era quieto. Quando estava no laboratório, trabalhando com as amostras de tecidos vindas de biópsias e cirurgias, a quietude também estava presente (ou, pelo menos, era assim na maior parte do tempo). Feliks gostava disso e se sentia levemente mal por não sentir falta do contato com pacientes, coisa que tivera durante toda escola médica e enquanto ajudava como voluntário durante as blitz de Londres. O silêncio do necrotério ou do laboratório o ajudavam e o acalmavam.

Depois de permanecer com os olhos fechados por alguns minutos, aproveitando o silêncio, o médico finalmente voltou a si e começou a juntar as suas coisas para sair. Ele trancou o necrotério e, assim que pisou fora do prédio, respirou fundo e se perguntou como era o Outono em um lugar como Little Hangleton.

O homem empurrou os óculos para cima no nariz e olhou para o céu, vendo as cores deste começarem a mudar de cinza para um alaranjado estranho. Era a hora de mais uma de suas expedições começar.

Ele saiu para uma caminhada logo após uma rápida parada em sua casa para deixar a sua maleta (junto do seu relógio de pulso e sua caneta tinteiro), esconder parte do seu dinheiro dentro das meias e trocar os seus óculos por um par mais antigo cujas lentes estavam trincadas. Depois dos últimos meses, Feliks havia aprendido a tomar as devidas precauções caso quisesse dar uma volta por Londres após o anoitecer.

Desde que chegara de Little Hangleton e começara a aceitar o fato de que sua sinestesia talvez não fosse apenas uma simples sinestesia, o homem havia começado a fazer caminhadas pela cidade para ver se conseguia ver mais daquelas coisas que vira na vila. Feliks conseguira ver algumas coisas, luzes e cores e sombras onde não devia haver nada, e ele fora atrás dessas visões, mas nunca encontrara nada a não ser becos vazios e ruas sem saída. Bom, por três vezes ele encontrara assaltantes e os óculos quebrados, a perda de seu melhor relógio e as precauções foram um resultado desses encontros, assim como o hematoma em sua mandíbula que estava começando a desaparecer. O médico sabia que ele tinha mais sorte do que juízo, mas mesmo assim continuou com as suas caminhadas.

Naquela noite, Ravenwood decidira sair do território de Hammersmith e Fulham, pegando o metrô e indo parar no Chelsea. Quando chegara em Londres pela primeira vez, o Colégio de Artes do Chelsea fora um dos lugares que ele descobrira e o qual mais gostava de visitar quando a vida no hospital lhe permitia uma folga. Agora, aquela área da cidade ainda era uma das suas favoritas, apesar de ser raro ele encontrar tempo para ir até ali. Além disso, ele tinha esperanças de que fosse mais difícil ser assaltado naquela parte de Londres.

Eram quase nove horas da noite quando, depois de vagar pela frente das fachadas das casas coloridas, jardins, pubs e até mesmo do Clube de Artes do Chelsea, todos com as janelas tampadas por blackouts, algo finalmente chamou a sua atenção. Não uma galeria de arte ou um pub animado, coisas que normalmente o teriam parado em qualquer outra visita, mas um fio de luz branca, delicado e fraco, que serpenteava até o outro lado da rua e se esgueirava para dentro de um dos jardins do Chelsea.

Se preparando para qualquer situação (incluindo outro assalto), Feliks atravessou a rua e olhou em volta para ver se havia qualquer outra pessoa por perto, vendo apenas um homem andando na calçada, de cabeça baixa, muito provavelmente voltando para casa depois de mais um dia de trabalho e querendo sair da rua o mais rápido possível.

O jardim estava um breu, uma das particularidades de todas as cidades ao redor do Reino Unido desde que os ataques alemães haviam começado. O filete de luz saltava aos olhos no meio da escuridão e Ravenwood não pensou duas vezes antes de seguir ao longo deste, atravessando o jardim e indo parar atrás de uma árvore. Quando o o homem finalmente se viu ali, ele notou que o fio de luz parecia subir pelo tronco até desaparecer, após dar voltas em espirais ao redor de um nó na madeira.

Franzindo o cenho, Feliks correu os dedos por sobre a luz e a viu tremeluzir por um momento, parte dela ficando presa à sua pele. No tronco, a espiral formada pela luz parecia ficar mais forte a medida que chegava ao centro.

“Não creio,” ele murmurou para si mesmo, lembrando-se que poderia estar em casa, vestindo seu pijama e tomando uma boa xícara de chá antes de ir para a cama, mas não, estava no meio de um parque escuro, no meio da noite, arriscando ser roubado pela quarta vez em menos de três meses.

O homem ergueu a mão, hesitante, traçando a espiral de luz branca de fora para dentro e aplicando mais pressão sobre a madeira a medida que chegava ao centro desta. Ele pressionou o dedo indicador com força contra o tronco quando terminou de contornar o desenho e sentiu seus olhos se arregalarem quando o nó da árvore começou a se desenroscar de tal forma que o médico considerou realmente estar alucinando o tempo todo.

Quando o tronco finalmente terminou de se desenroscar inteiro, o que restou foi uma árvore oca que parecia mais um batente de porta no estilo art nouveau: o interior da árvore era iluminado por pequenas velas presas à pedaços de raízes e, o mais interessante, havia um lance de escadas escondido ali dentro, afundando-se na terra e levando ao que parecia ser um corredor.

Feliks respirou fundo e deu meia volta.

***

Quatro dias após o Dr Ravenwood ter encontrado a entrada misteriosa em uma árvore no Jardim da Praça Redcliffe, Frank Bryce colocou os pés em Londres, trazendo consigo um malão maior do que Feliks esperava e uma expressão azeda em seu rosto. Depois de mandar um telegrama o mais rápido que pôde, o médico não esperava que Frank fosse viajar tão rápido, mas ali estava ele, mancando pela estação King’s Cross e não parecendo estar muito animado com a multidão à sua volta.

Finalmente chegaram à casa de Feliks, depois de uma longa viagem em um taxi, durante a qual Bryce permaneceu em silêncio, apenas olhando a paisagem do lado de fora e vez por outra parecendo impressionado. O flat não era muito grande, mas os dois quartos deste finalmente iriam ser úteis com a visita de Frank, que parecia ter gostado do lugar.

“Eu não trabalho hoje, então podemos dar uma volta por aí, se quiser,” disse Ravenwood, parado na porta do quarto de visitas e observando o outro homem abrir o seu malão e começar a tirar as suas coisas de dentro deste, colocando-as sobre a cama. O médico não deixou de notar que era muita coisa para uma visita de uma semana.

“Por que não me diz o que achou, doutor?” perguntou Bryce. Ele parecia curioso e, talvez, um pouco impaciente. “Seu telegrama não explicava muita coisa.”

“Achei melhor não dar detalhes por lá,” disse Feliks, rindo fraco e se encostando no batente da porta. “Encontrei uma coisa há umas noites atrás. Bom, um lugar, na verdade.”

“Continue,” disse o jardineiro, sentando-se na cama e começando a tirar as suas roupas da mala com cuidado.

“Eu vi algo. Uma... ahm-“

“Uma dessas suas sinestesias.”

“Aye, e ela me levou até um jardim no Chelsea. Veja bem, era uma luz que entrava no jardim e ia até uma árvore e... Ela fazia um desenho interessante no tronco,” ele falou, desenhando uma espiral no ar com o dedo indicador. “Eu passei os dedos sobre o desenho e então...” Ravenwood parou de falar abruptamente, só agora notando o quão louco era tentar explicar para alguém que uma árvore simplesmente se abriu na sua frente. Bryce continuou o encarando com certa expectativa, fazendo Feliks rir. “O tronco da árvore se abriu.”

“Você achou uma porta?” perguntou Frank, arqueando uma sobrancelha. “Uma árvore de mentira com uma porta escondida?”

“Não, não era uma uma árvore falsa,” disse Feliks, aproximando-se e gesticulando como se quisesse explicar algo. “O tronco pareceu se remodelar e acabou formando algo que parecia um portal. Era muito bonito, como se a madeira tivesse sido esculpida a mão por algum artista como... Como Alphonse Mucha! Não sei explicar, a árvore simplesmente começou- era como se a madeira ganhasse vida e mudasse de forma.” O médico notou que estava sorrindo e se perguntou o quão bobo devia estar parecendo naquele momento, animado com algo tão impossível. “E o portal dava espaço para um corredor, eu acho. Tinha degraus indo para dentro de um buraco na terra. Havia velas iluminando o caminho e... Não tenho ideia de como tudo aquilo foi parar ali.”

O jardineiro o encarou em silêncio e Ravenwood estava certo de que ele estava prestes a perguntar por que diabos o médico o havia feito perder tempo indo até Londres apenas para ouvir uma história fantasiosa. Mas o homem simplesmente suspirou e esfregou o rosto com os dedos, relaxando os ombros e parecendo muito cansado pela primeira vez desde que chegara.

“No que a gente está se metendo?” ele perguntou, erguendo o olhar para o médico outra vez.

“Não tenho ideia,” disse Feliks. “Mas parece ser algo interessante e curioso-“

“E perigoso?”

“Bom, pode ser perigoso, mas ainda não podemos ter certeza,” ele falou e então franziu o cenho. “Oh, certo, perigoso! Estamos tentando achar a resposta para um possível assassinato.”

“Espero que se lembre disso, doutor,” disse Frank, logo antes de se inclinar para a frente, ainda sentado na cama, e estreitar os olhos. “O que é isso na sua cara?”

“O que?”

“Aqui.” Bryce apontou para a própria mandíbula, na metade do caminho entre o queixo e o ângulo desta, no lado esquerdo da face.

“Oh. Não é nada,” disse Ravenwood, erguendo uma mão para esconder o hematoma que começava a desbotar e que fora um presente de um dos assaltantes.

“Alguém te socou?”

“Eu... Aye,” ele respondeu, deixando os ombros caírem e enfiando as mãos nos bolsos da calça para evitar de ficar brincando com o tecido de seu suéter ou estalando os dedos. “Mas não foi nada. Já está sumindo e eu não quebrei nenhum dente.”

“Por que alguém iria socar você?” perguntou Frank, como se a resposta para tal pergunta fosse soar ridícula independente de qual fosse. “Quero dizer, olhe pra você.”

“O que tem de errado comigo?”

“Esse é o ponto. Você é... Extremamente educado e... Sei lá, mas por que alguém iria te bater?”

“Tenho certeza de que o homem que fez isso não estava nem um pouco interessado na minha educação, já que tudo o que ele queria era roubar o meu relógio,” disse Feliks, rindo nervoso. “Mas aprendi a lição depois da terceira vez: não sair de casa para procurar evidências antes de deixar o que tenho de valor em algum lugar seguro.”

“Você foi roubado três vezes desde que voltou?”

“Como disse, aprendi a lição.”

“E por onde você esteve zanzando?” perguntou Frank.

“Toda Londres.”

“Depois de anoitecer?”

“É o tempo livre que tenho.”

Frank Bryce o encarou por mais um tempo e então suspirou, sacudindo a cabeça.

“Realmente preciso te ensinar a socar alguém.”

***

“Como você sabe a hora da morte?” perguntou Frank enquanto acendia um cigarro e se encostava na parede da academia, olhando o homem sentado no chão ao seu lado.

“Não dá pra saber com certeza,” disse Ravenwood, erguendo o rosto para olhar o outro. Ele devia estar parecendo um louco, com o cabelo despenteado e suado. Já fazia algum tempo desde que fizera qualquer tipo de atividade física que não fosse nadar... E bater em sacos de areia era exaustivo em um nível bem diferente da natação. “É uma estimativa. Nós analisamos a temperatura do corpo, o estado de decomposição, alguns sinais que aparecem com a morte...”

“Sinais?”

“Sabe, quando o corpo fica duro, nós chamamos de rigor mortis. Normalmente leva entre seis a doze horas para que o rigor extremo se estabeleça e pode durar por... Trinte e seis a a quarenta e oito horas, em um clima ameno. No calor, pode durar menos de vinte e quatro horas,” Feliks explicou, tirando os óculos por um momento e piscando quando o mundo à sua frente se tornou borrado. “Livor mortis é quando a pele fica meio avermelhada ou arroxeada por conta do sangue se depositando nos vasos. As partes que ficam pressionadas contra alguma superfície dura não têm o livor porque os vasos ficam fechados. Depois da morte, leva meia hora para o livor começar a aparecer e, depois de um tempo, ele fica fixo, e assim podemos saber se o corpo foi movido, dependendo de onde está o livor.”

“Interessante,” disse Bryce. “E você só trabalha com isso? Gente morta?”

“Não, mas é o que eu mais gosto de fazer,” disse Ravenwood, sorrindo enquanto olhava o homem, que continuava sendo um borrão aos seus olhos. “Também trabalho no laboratório do Hospital Westminster. Faço análises de tecidos de biópsias, peças cirúrgicas, necropsias de mortes naturais... Sabe, se você tem alguma bola estranha crescendo no corpo, eles tiram um pedaço dela fora e mandam para nós cortarmos em pedacinhos e colocar no microscópio para identificar o que é.”

O jardineiro o olhou por um momento e riu, sacudindo a cabeça.

“Pensei que médicos estudassem para curar as pessoas.”

“Existem muitos tipos de médicos,” disse Feliks, dando de ombros. “Alguns curam as pessoas, outros preferem fazer pesquisas ou virar professores. Eu descubro o que tem de errado para que outro médico possa curar. Além disso, a parte dos mortos... Bom, os vivos têm muitos médicos para cuidarem deles, certo? Nós ouvimos os doentes e os tratamos, tentando curá-los ou diminuir as suas dores. Mas não é todo mundo que pensa sobre o que os mortos têm a dizer.”

“Oh, e eles falam muito?”

“Você não tem ideia.” O médico sentiu o seu sorriso aumentar. Ele devia parecer bobo quando começava a falar de seu trabalho. “Eles não falam com palavras, claro, mas têm a sua própria língua e se você aprender a entende-la, vai descobrir muita coisa. Por exemplo, descobri algumas coisas interessantes sobre os Riddle depois das necropsias,” ele falou, logo antes de perceber que talvez não fosse um assunto muito bom no momento. “Desculpe por falar deles novamente...”

“Estamos aqui por causa deles, não é?” perguntou Frank, tragando a fumaça do cigarro. “Vai lá. O que eles te falaram?”

“O Sr Riddle teve febre reumática quando era mais novo. Uma das válvulas do coração dele estava danificada, tinha sinais de algum processo inflamatório antigo que geralmente acontece na febre reumática. Se nada tivesse acontecido, ele provavelmente iria morrer de insuficiência cardíaca no futuro,” disse Feliks, olhando os óculos embaçados que agora segurava em frente ao rosto. “A Sra Riddle não podia ser mais saudável e ela costumava escrever – ou desenhar – muito, porque ela tinha um calo no dedo do meio... Na verdade, os três tinham calos de escrita, mas o do Tom era no dedo anelar. Aliás, Tom deve ter machucado feio o joelho direito alguma vez na vida, porque tinha uma cicatriz ali, parecia ter ralado. E ele tinha alguma noção do que fazia quando... Fez a sua tentativa de suicídio. Ele devia ter pelo menos uma noção básica de anatomia.”

“Ora, impressionante,” disse Frank, soltando a fumaça do cigarro. “Ele estudou anatomia, sabia? Quando estava estudando aqui em Londres. O Sr Tom me disse que estava estudando Arquitetura, mas ele e a amiga, a Sra Campbell, de vez em quando se esgueiravam para esses laboratórios de anatomia para estudar os mortos. Ele dizia que ajudava na hora de aprender a desenhar.”

“Desenhar ajuda muito a aprender anatomia,” disse Ravenwood, colocando os óculos novamente e olhando as próprias mãos, torcendo o nariz ao perceber as juntas machucadas pelos socos no saco de areia. “Não sabia que Tom Riddle era arquiteto.”

“Não era. Ele largou os estudos depois de Merope Gaunt. Tinha muito medo de sair de casa, imagine só voltar para Londres para voltar a estudar.” O homem tragou outra vez e depois deixou a fumaça escapar devagar por entre os lábios para então cutucar o outro com a sua bengala. “Vamos. Acho que já foi o bastante por hoje.”

***

Quase uma semana havia se passado desde a chegada de Frank quando eles finalmente decidiram planejar a expedição (como Feliks gostava de chamar) aos jardins da Praça Redcliffe. Se ele fosse qualquer outra pessoa observando a situação deles de fora, o médico diria que ele e Frank pareciam dois meninos animados demais com alguma aventura pela floresta ou um passeio do colégio, sentados em seu flat e conversando sobre o que fariam quando chegassem lá e o que poderiam esperar.

Depois das aulas de Bryce, Ravenwood agora conseguia socar alguém sem quebrar nenhum osso da mão e o jardineiro achou que isso já estava de bom tamanho. O homem estava curioso para saber o que eles encontrariam do outro lado no portal dentro da árvore no Chelsea e, também, impaciente. Feliks sabia que o outro ainda era assombrado pelo assassinato dos Riddle e tudo o que estava acontecendo, para Frank, significava estar um passo mais perto de descobrir o que acontecera com seus amigos e, talvez, conseguir algum tipo de vingança.

O flat onde estavam não era grande e, desde que Frank chegara, parecia quase estranho ter alguém na casa além do próprio Feliks. O jardineiro não comentara nada sobre não estar confortável, mas era possível ver que ele sentia falta do jardim e dos campos de Little Hangleton, afinal, tudo o que eles tinham ali era na Moore Park Road eram casas com jardins diminutos transformados em hortas e a rua asfaltada debaixo de um céu nublado. O médico também percebeu os olhares discretos que Bryce ocasionalmente dava para o piano de armário que havia no canto de sua sala de estar, apesar de nunca mencionar o instrumento.

“Só espero que a gente não dê de cara com a máfia ou algo assim debaixo dessa sua árvore,” disse Bryce. “Vou levar o meu rifle, de qualquer jeito.”

“Não acredito que você trouxe um rifle pra Londres,” murmurou Feliks enquanto folheava um de seus cadernos nos quais havia mantido as suas anotações sobre tudo o que vira em Londres nos últimos meses e que talvez pudesse ajuda-los.

“Eu trouxe tudo o que tenho.” Frank deu de ombros, esticando a perna machucada e flexionando o pé. “Eu disse na carta: não vou voltar para Little Hangleton.”

O médico parou de virar as páginas do caderno e ergueu o rosto para olhar o outro homem. Sim, ele havia lido a carta onde Frank dizia que iria pedir demissão da casa dos Riddle, mas por alguma razão ainda era difícil de acreditar... Afinal, ele parecia amar aquela casa e o jardim, mesmo odiando o vilarejo.

“Mas o jardim...?” perguntou Ravenwood, sentindo-se quase bobo ao notar que havia perguntado primeiro sobre as flores e não se Frank tinha algum plano de como sobreviver enquanto estava na capital ou onde ele iria ficar nesse tempo.

“Como disse, o jardim não é nada sem a Sra Mary e ela entenderia o meu ponto. Os Riddle conseguiam viver naquele lugar porque eles tinham uns ao outro, eles construíram um lugar seguro para eles dentro daquela casa e era assim que eles sobreviviam,” ele explicou e Feliks se sentiu mal por ele. Ali estava novamente aquele tom de voz que ele usava quando falava da família, como se ele estivesse com medo de que a sua voz o traísse a qualquer momento e demonstrasse alguma emoção. “A Sra Mary dizia que ela havia concordado em se mudar para East Yorkshire por causa da vista; ela se apaixonou pela vista do vilarejo. Às vezes me pergunto se o Sr Tom teria continuado lá se não estivesse tão mal... Acho que ele não viria para Londres ou qualquer outro lugar muito grande. Ele gostava da quietude, dos campos e de uma noite com bastante estrelas. Ele gostava do mar também. Acho que ele teria ido viver perto do mar.”

O médico observou enquanto Frank falava e massageava a própria perna, como se tentasse afastar o desconforto. Feliks queria ter tido a oportunidade de conhecer os Riddle ainda vivos, para pode conhecer essas pessoas das quais Bryce falava com tanto carinho, fazendo-os parecer uma família peculiar e curiosa.

“Vou sentir falta do interior. Deus, eu já sinto falta.” O homem riu. “Mas talvez eu encontre outro lugar para ir depois que acertarmos tudo isso, algum lugar longe de Londres. E, não se preocupe, eu não pretendo viver no seu quarto de visitas por muito tempo.”

“Se isso lhe serve de conforto, eu ainda sinto falta da Escócia,” disse Feliks, sorrindo. “E não se preocupe, pode ficar o quanto quiser.”

O médico olhou o relógio de pulso, vendo que já devia ter ido dormir há pelo menos duas horas se quisesse estar completamente funcional no dia seguinte, e então olhou Frank outra vez, vendo o olhar do outro passear pelo cômodo (ele parecia estar sempre analisando as coisas) até parar no piano.

“Está desafinado. Eu sempre esqueço de afinar,” disse Ravenwood. O jardineiro o olhou novamente.

“Você toca?”

“Um pouco, mas faz tempo desde a última vez que tive tempo de sentar e praticar,” ele explicou. “Eu tocaria pra você, mas se fizer isso agora, a vizinha de cima vai começar a bater no nosso teto e acho que isso não é algo muito legal de se ouvir às duas da manhã.”

Feliks sorriu ao perceber que havia feito Frank rir.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

1) Chelsea: um bairro de Londres que já foi conhecido como o 'distrito dos artistas', hoje em dia já não é mais assim, apesar do Clube de Artes do Chelsea ainda estar lá (a Escola de Artes do Chelsea foi mudada para outro lugar e hoje é conhecida como Chelsea College of Arts and Design). É um bairro mais distinto na Londres central;

2) Redcliffe Square Gardens: é um jardim dentro do distrito do Chelsea, aberto ao público (nem todos os jardins de Londres são abertos ao público);

3) Rigor e livor mortis: são sinais post-mortem que podem ser usados para ajudar (ou não) na determinação do horário da morte, mas não são totalmente confiáveis; o resto o Feliks já explicou;

4) Fulham e Hammersmith: um bairro de Londres; há um 'coroner office'/instituto médico legal que cobre essa área hoje em dia e eu usei ele como base para escrever o necrotério onde Feliks trabalha;

Espero que tenham gostado. Muito obrigado quem favoritou a história até agora e, por favor, podem ir dizendo o que estão achando. Reviews são sempre bem vindos e sempre ajudam muito. Os próximos dois capítulos são uns dos meus preferidos da fic inteira hehehe