três de bastões escrita por themuggleriddle


Capítulo 2
Um Jardim de Tinta




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Little Hangleton era um vilarejo pequeno que seria muito belo se não fosse pelos seus habitantes. Desde a primeira vez em que pisou no lugar, Feliks percebeu pessoas murmurando e apontando para ele, se perguntando quem ele devia ser ou o que ele estava fazendo ali... Ele era da polícia? Estaria ele investigando o assassinato dos Riddle? Será que ele iria entrevistar mais pessoas? Ou ele era um jornalista, curioso para saber mais sobre a misteriosa morte na casa dos Riddle? Quantos anos ele tinha? Era casada? De onde era?

No entanto, os habitantes da vila não tiveram muito tempo para ficarem lhe observando. Ravenwood fez uma parada rápida no pub, O Enforcado, para perguntar se os Riddle já haviam sido enterrados e, se não, onde poderia encontrar o funeral deles. O dono do bar lhe deu as direções para o cemitério logo fora dos limites do vilarejo, olhando-o desconfiado quando ele saiu. Não havia nenhuma dúvida de que ele iria contar para todos o que aquele estranho fora fazer em sua cidade.

Apesar do dia ter começado com um céu limpo em Beverly, quando Feliks chegou em Little Hangleton, no fim da tarde, as nuvens estavam começando a se amontoar e o som de trovões podia ser ouvido ecoando à distância. Quando ele finalmente encontrou o cemitério, o céu já estava escuro com o anúncio de uma tempestade.

Os relatórios não estavam mentindo quando falavam que os Riddle não eram muito bem vistos na vila. A capela onde o funeral ocorria estava vazia a não ser por um homem parado perto dos caixões, vestido com um uniforme militar. Ele parecia duro e não muito feliz enquanto se apoiava em uma bengala e observava Ravenwood se aproximar com cautela. Bom... Ele seria rápido, assim não precisava se preocupar com o sujeito rabugento, certo?

Feliks se aproximou de Tom Riddle primeiro, franzindo o cenho ao perceber como o pessoal da funerária havia conseguido esconder as sardas do homem por detrás de maquiagem, apesar de ele parecer rosado e, de certa forma, vivo por conta daquilo. Qual era a lógica do embalsamamento para deixar os mortos com uma aparência mais “natural” se o processo acabava por esconder as características das pessoas? Mas, apesar da pele do homem parecer corada e as sardas estarem escondidas, aquela fina camada de gelo continuava ali, grudada às sobrancelhas e cílios. Os cabelos do homem haviam sido penteados e os cachos haviam sumido, mas, caso olhasse de perto, o médico conseguia ver o farelo de gelo ainda preso às mechas castanhas.

Ravenwood olhou para as mãos de Riddle, cruzadas por sobre o seu peito, mas não havia mais sinal da mancha azulada que havia visto no dia anterior. Quando voltou a observar o rosto de Tom, o médico tocou de leve as sobrancelhas deste, vendo que aquela poeira gelada parecer grudar na sua pele, mas sem desaparecer por completo do outro homem.

“Com licença.” Feliks pulou, assustado, e virou para ver o homem no uniforme o olhando de cara feia. “Posso perguntar o que está fazendo, senhor?”

“Eu só...” ele começou a falar, mas parou e sacudiu a cabeça. A ruga na testa do outro homem ficou mais evidente. “Ouvi falar do que aconteceu e pensei em passar para... Oferecer meus sentimentos.”

O médico viu as sobrancelhas do outro se arquearem quando ele obviamente não acreditou na resposta que recebeu. Talvez estivesse na hora de ir. Ele já havia passado três dias longe de Londres mesmo já tendo terminado o seu trabalho... Sem contar que já estava na hora dos Riddle serem colocados para descansar. Eles ainda estavam com uma aparência boa por conta de terem sido guardados em refrigeradores e, agora, como efeito dos produtos do embalsamamento, mas a família já estava morta por quase três dias já.

“Boa tarde, senhor,” disse Feliks, fazendo um leve cumprimento com a cabeça enquanto se apressava para sair da capela.

Quando Ravenwood chegou no vilarejo outra vez, a chuva já havia começado a cair em torrentes e o dono d’O Enforcado o convenceu de passar a noite ali, alegando que ninguém iria querer leva-lo até Beverley debaixo daquela tempestade. Dessa forma, a noite foi repleta de fofocas sobre a família Riddle, mas o médico tinha que admitir que, no fim das contas, foi bom aquelas pessoas não pararem de falar sobre o acontecimento, pois assim ele conseguiu entender quem era o homem presente no funeral.

“Ele sempre foi esquisito, o Frank. Se quer saber a minha opinião, está no sangue, sabe? Quero dizer, a mãe dele...” disse uma mulher chamada Dot, que havia ocupado a cadeira vazia na mesa na qual Feliks estava terminando de tomar a sua sopa naquela noite. “E quando ele voltou da guerra, pareceu ficar ainda pior.”

Frank Bryce, o jardineiro acusado do assassinato da família Riddle. Feliks havia visto uma foto do homem nos arquivos que recebera na delegacia, mas ele parecia mais novo e... Menos sério. Agora, enquanto tentava lembrar de Bryce na capela mal iluminada, tudo o que lhe vinha em mente era expressão aborrecida e a rigidez de sua postura.

“Como assim ficou pior?” perguntou Feliks, sentindo-se mal ao perceber que estava colocando lenha na fogueira das fofocas.

“Ele é todo quieto e tem se isolado cada vez mais nos últimos anos,” disse Dot. “A vida dele é aquele jardim. Ele vivia para cuidar das flores da Sra Riddle. Às vezes eu me pergunto se ele e a Sra Riddle não tinham um-“

“Não comece com baboseiras, Dot!” disse o dono do bar, rindo.

“Se o jovem Sr Riddle teve um caso com outra garota quando todos esperavam que ele se casasse com alguma moça fresca de Great  ‘Angleton, não vejo por que a Sra Riddle não poderia ter feito algo desse tipo?” a mulher falou e depois olhou de novo para Feliks. “Além disso, isso explica o motivo de Frank acabar com eles todos, não é?”

“Na verdade, não parecia ser um assassinato passional,” disse Ravenwood, antes que pudesse se restringir. “Crimes passionais geralmente são bagunçados e envolvem tiros ou múltiplos ferimentos cortantes.” Ele viu os olhos de Dot se arregalarem enquanto falava, mas não conseguiu evitar de pensar que aquilo não era nada surpreendente. Mas, de novo, ele estava em uma vila no meio de East Yorkshire, não dentro do necrotério de Londres, onde amantes assassinados eram o normal. “Tudo estava muito... Limpo.”

“És da polícia, rapaz?” perguntou o dono do bar.

“Não...” ele falou. Não queria que aquelas pessoas soubessem que ele estava trabalhando no caso dos Riddle; seria um incômodo sem tamanho ter que lidar com as perguntas deles. “Só ouvi falar sobre o que aconteceu.”

“E o que foi que ouviu sobre isso?”

“Que os três Riddle apareceram mortos ontem de manhã e que ninguém sabe o que aconteceu,” ele falou, repetindo uma versão simplificada da primeira história que ouviu do caso. “Que o time de investigação não conseguiu fechar isso como assassinato.”

“Mas Frank-“

“Ouvi que não acharam nada que ligasse as mortes à alguém,” disse Feliks, dando de ombros e, enquanto Dot e o dono do local discutiam a ineficiência da polícia local, olhou para a própria mão, vendo a fina camada de gelo que ainda estava sobre os seus dedos, fazendo parecer geada. “Se me dão licença... Acho que vou dormir. Foi um dia longo.”

Ravenwood ainda conseguia sentir os olhares dos outros em suas costas quando ele subiu as escadas para o quarto que havia alugado no local. O sono demorou mais para chegar naquela noite, já que não havia álcool em seu sangue e nem o cansaço da viagem de trem para ajudar os seus olhos à se fecharem.

***

A casa dos Riddle era grande comparada com o restante das casas de Little Hangleton e ficava em um local privilegiado, no topo de um pequeno morro com vista para o vilarejo. O portão de ferro estava destrancado e, depois de hesitar um pouco, Feliks adentrou a propriedade, encontrando um jardim cheio de arbustos esverdeados bem cortados e flores das mais diversas cores: havia belas rosas vermelhas e brancas, gerânios cor-de-rosa e digitalis arroxeadas, lírios-do-vale e sinos-azuis, lavandas com um perfume leve, simples e belas margaridas e prímulas, e até mesmo gardênias que exalavam um cheiro forte e doce.

Era quase engraçado como as cores das flores o faziam se lembrar do sonho esquisito que tivera na noite anterior, depois de pegar no sono no quarto alugado n’O Enforcado: no sonho, ele estava no que parecia ser o jardim de um castelo e as cores que a sua sinestesia trazia para a sua visão pareciam ainda mais vivas, aparecendo em todas os cantos. Ele até viu Tom Riddle (claramente um sinal de que devia tentar pensar em outra coisa que não fosse aquele caso) com seus dedos longos, que brincavam com o as gardênias do jardim, manchados de azul de forma ainda mais vívida do que vira no necrotério.

Mas agora as cores que via agora pertenciam às flores e... Certo, ele conseguia ver uma fina linha de prata ou azul ao redor de algumas flores, mas o médico tentou dizer a si mesmo que aquilo devia ser apenas a sua cabeça lhe pregando peças e o efeito do sol quente de verão.

O homem andou ao redor da casa, levando um tempo para observar as janelas fechadas e se perguntando o que ele teria visto ali se tivesse andado pela propriedade quando os Riddle ainda estavam vivos. Será que veria Sra Riddle cuidando das suas flores ou sentada no meio delas enquanto bordava algo? Estaria o Sr Riddle parado na porta da casa, observando a sua esposa? E será que Tom Riddle estaria espiando por uma das janelas, amedrontado demais para sair de casa, mas ansioso para aproveitar um dia ensolarado no jardim? Mas tudo isso não importava agora, já que tudo o que conseguia ver eram as cortinas fechadas.

Assim que chegou ao outro lado da casa, viu umo pequeno chalé no outro lado do gramado, ao lado do que parecia ser um jardim de ervas e uma pequena horta. Feliks sentiu seus batimentos acelerarem. Havia uma razão muito clara para ter escolhido ser um patologista e isso era porque a patologia permitia um menor contato com pacientes... Não que ele fosse ruim em interagir com pessoas (ele ministrava aulas e conversava com colegas e pacientes várias vezes ainda), mas aquilo o deixava nervoso, principalmente quando se tratava de falar coisas importantes.

Quando Ravenwood bateu na porta do chalé, ele realmente não sabia o que falar ao Sr Bryce e nem teve muito tempo para pensar nisso, pois logo o jardineiro estava ali, com a porta aberta e o encarando.

Agora que eles não estavam em uma capela mal iluminada, Feliks podia ver que Frank Bryce tinha um rosto sério e mantinha os lábios pressionados um contra o outro com força, parecendo já ter aguentado muita gente fazendo brincadeiras com ele e não aguentando mais isso. Ele não tinha cicatrizes como muitos homens que enfrentaram o front (ou pelo menos nada que fosse visível ali), mas também não era exatamente bonito, com cabelo castanho e olhos escuro, e pele de um tom marrom claro. O olhar que lançou ao doutor tinha um objetivo muito específico: fazê-lo entender que ele não era bem vindo ali; mas aquele mesmo olhar sério e entediado pareceu estremecer por um milésimo de segundo, como se ele tivesse se lembrado de algo, antes de voltar ao normal.

“O que quer aqui?” o jardineiro perguntou e Feliks apenas conseguiu pensar que ele não devia estar ali. Primeiro, porque aquele não era o seu trabalho e, segundo, porque ele não sabia como lidar com jardineiros em luto e claramente irritados.

“Olá,” ele falou, tentando sorrir e imaginando que devia ter falhado na sua tentativa de um sorriso amistoso, a julgar pela forma com que as sobrancelhas de Bryce se franziram ainda mais. “Nós nos vimos ontem-“

“Eu sei.”

“Meu nome é Feliks, Feliks Ravenwood. Sou médico, eu trabalhei nas...” ele começou a falar e deixou a sua voz ir sumindo enquanto olhava para a casa grande atrás deles. “Nos Riddle.”

“Foi você quem os abriu,” disse Frank, parecendo ainda menos contente, se fosse possível.

“Fui eu quem fez o exame médico-legal, aye,” disse Feliks, sentindo seu rosto esquentar. Ele não devia ter vergonha do seu trabalho, certo? Mas do jeito que o outro homem falara, parecia que ele havia cortado a sua amada família em pedacinhos e misturado seus órgãos em uma sopa ou os vendido no mercado negro. “Gostaria de saber se podemos trocar algumas palavras, Sr Bryce-“

“Já falei tudo que podia para a polícia. Posso te garantir, senhor, que não tem nada que possa te dizer que eles já não sabem, então é melhor voltar para Great Hangleton e ler a papelada deles,” disse Bryce, começando a fechar a porta e fazendo uma expressão ainda mais descontente quando o médico o impediu com a mão, que logo foi afastada da madeira quando percebeu o que havia feito.

“Por favor! Eu sei que você não fez nada,” disse Ravenwood, dando um passo para trás apenas para se garantir. “Não havia nenhuma evidência da causa de morte e nós nem conseguimos dizer se foi algo natural ou induzido... Sabe, se realmente foi um assassinato. A acusação não faz sentido, bom, nada além do fato de que só o senhor tinha a chave-“

“Se eu concordar em responder as suas perguntas, você promete parar de falar assim?” o jardineiro perguntou, erguendo uma mão como se pedisse um intervalo.

Feliks abriu a boca para responder, mas apenas concordou com a cabeça. Era fácil esquecer, por um momento, que aqueles corpos eram pessoas de verdade que, há quatro dias, estavam vivas e conversando com Frank Bryce. Quando o jardineiro abriu mais a porta e gesticulou para ele entrar, Ravenwood o fez, olhando em volta com cautela.

“Comece,” disse Bryce, mancando até o fogão para cuidar de uma chaleira fervente.

“Como disse, eu fiz as necropsias dos Riddle,” o homem explicou. “E eu vi algo... Que não podia simplesmente colocar nos relatórios, mas que chamou a minha atenção e eu queria saber se poderia entrar na casa para... Ver se encontrava algo por lá.”

“O que foi que você viu que não podia escrever em um documento oficial?” perguntou Frank, virando-se para lançar um olhar de julgamento para ele. “E o que é que você quer achar na casa? Não tem nada lá, só as coisas que os Riddle deixaram para trás. Como já deve saber, não havia sangue e nem nada que um médico poderia examinar.”

Ravenwood observou o homem apanhar uma caixinha de lata e tirar dali um emaranhado marrom de raízes. Um cheiro forte e enjoativo preencheu o ar enquanto Bryce colocava um pouco das raízes dentro de uma xícara de metal e despejava água quente dentro. Feliks não conseguiu não se sentir mal pelo homem, se perguntando o quão ruim os últimos dias haviam sido, para ele tentar usar raízes de valeriana para se acalmar.

“Como expliquei, as autopsias foram inconclusivas, porque não havia nada de errado com os corpos, mas... Tinha.” O médico riu. Como ele iria explicar aquilo? “Eles pareciam congelados-“

“Realmente espero que eles tenham sido mantidos gelados antes de você os abrir,” disse o jardineiro. “Acredito que seja necessário cadáveres frescos e não apodrecendo para o senhor fazer o seu trabalho, estou certo?”

“Aye, mas eles não deviam estar congelados e... Tinha gelo no rosto deles. Bem, no rosto do Tom Riddle mais jovem. E, no funeral, ainda estava lá! Se fosse gelo mesmo, já devia ter derretido,” disse Ravenwood enquanto observava o outro mexer o chá na caneca e, depois, retirar o emaranhado de raízes para colocá-lo em cima da pia. “E as mãos de Tom Riddle estavam manchadas-“

“Ele pintava. As mãos dele estavam sempre sujas de tinta, ele não conseguia pintar sem fazer uma bagunça, diferente da Sra Mary,” disse Frank, sem hesitar.

“Eu sei que ele era um pintor, mas o corpo dele foi lavado antes de eu começar, logo não devia ter restado nenhuma tinta-“

“E por que você não podia escrever isso na sua papelada?” perguntou Bryce, finalmente tomando um gole do seu chá e olhando para o outro com desdenho.

“Porque... Eu sei que outras pessoas não conseguem ver essas coisas,” disse Feliks, baixinho, enquanto olhava em volta para evitar ver a expressão no rosto do outro.

Houve um momento de silêncio até o médico ter coragem de olhar o outro de novo.

“Está me dizendo que você estava delirando enquanto fazia o seu trabalho, viu coisas que não estavam realmente ali e agora quer que eu te deixe entrar na casa da qual eu devo tomar conta para você ver se encontra mais das suas evidências imaginárias?” Bryce perguntou lentamente, como se tentasse entender o quão louco tudo aquilo era. “Você, senhor, devia ir se tratar para parar de ver coisas antes de tentar abrir gente alheia para descobrir do que eles morreram. Não é surpresa alguma que a sua autópsia foi inconclusiva.”

“Não há nada errada comigo, posso lhe assegurar, Sr Bryce, e eu levo o meu trabalho muito a sério, caso contrário não estaria aqui agora,” disse Feliks, antes de acrescentar em voz baixa: “E se eu estivesse vendo coisas, estaria alucinando e não delirando-“

“Daqui a pouco vai me dizer que os Riddle foram abduzidos por fadas e que os cadáveres eram changelings, não é?” Certo, Frank Bryce estava realmente irritado e o médico não sabia como remediar a situação. “Talvez seja assim que você preenche seus documentos no seu país, mas aqui seria muito bom se você levasse as coisas a sério quando fosse tentar explicar o assassinato que aconteceu naquela casa.”

“Lhe garanto que o fato de eu ser escocês não tem relação alguma com o que eu acredito ter visto,” disse Feliks, sentindo o rosto esquentar novamente e, como que apenas para irritá-lo mais, ouvindo seu sotaque ficar mais evidente. “Além disso, não era Tom Riddle que ficava falando sobre coisas estranhas como bruxarias? Pensei que você fosse ser mais mente aberta quando falasse sobre-“

“Fora,” disse Bryce, mancando até a porta e a abrindo com força.

Ravenwood o encarou por um momento e depois suspirou, indo até a porta. Parte de sua mente concordava com Bryce: como ele poderia ter acreditado em um truque de sua cabeça? Como ele fora até a casa daquele homem para fazer mais perguntas incômodas sobre um crime pelo qual ele havia sido acusado erroneamente? Ele só estava sendo tolo e, para completar, inconveniente.

A luz do sol machucou os seus olhos quando saíram do chalé (o interior desta estava escuro por conta das cortinas fechadas), mas logo foi possível ver o jardim outra vez. Ouviu passos abafados atrás de si e ao virar, viu Frank Bryce o seguindo, usando a sua bengala de apoio enquanto atravessavam a propriedade. O homem com certeza iria querer trancar os portões agora, para evitar gente enxerida como o próprio Feliks.

“Aposto que tem um grande cuidado com elas,” disse Ravenwood, tentando falar algo para acalmar o outro, nem que apenas um pouquinho, enquanto apontava para o arbusto de gardênias perto deles. Ele conseguia ver o que parecia ser tinta azul pingando de algumas pétalas, enquanto outras tinham um delineamento sutil em prateado. “Aposto que os Riddle também cuidavam muito delas... Vocês cuidavam do jardim juntos, certo? Você e a Sra Riddle?”

“A Sra Riddle nunca deixaria o jardim aos cuidados de outra pessoa apenas,” disse Bryce, parando de olhar e olhando o outro homem tocar as flores brancas como se estivesse vendo mais do que apenas as pétalas aveludadas. “Todos sabiam disso.”

“E Tom?” perguntou Feliks. O azul nas flores era do mesmo tom que ele havia visto nas mãos de Riddle, apesar de parecer mais vívido. “Aposto que ele gostava delas também. Elas... Parecem estar pingando tinta. O senhor disse que ele era um artista, aye? Ele devia gostar disso.” O médico sorriu enquanto deslizava os dedos pela gardênia, vendo a mancha azul aparecer em seus dedos. “Elas parecem uma pintura na qual o artista tentou fazer com que elas brilhassem, com a tinta ainda molhada...”

Quando não houve nenhum comentário irritado vindo do jardineiro, Ravenwood percebeu que estava fazendo aquilo de novo: tocando as flores que pertenceram à uma mulher morta e falando besteiras. Mas, quando se virou, esperando ver uma expressão irritada no rosto de Frank, ficou surpreso ao encontrar o homem o observando com a boca entreaberta e olhos curiosos.

“Eu estava falando bobagem de novo, me desculpe,” disse Feliks, começando a andar novamente, mas parando ao ver que o outro não se movera. Ele o olhava como se o médico tivesse acabado de falar algo muito importante.

“O Sr Tom costumava dizer que conseguia sentir elas,” disse Bryce, apontando para as gardênias. “Ele dizia que as gardênias pareciam tinta fresca; as rosas eram quentes como um dia de verão e as margaridas, frias como se estivessem cobertas por geada.” O homem encarou as flores por um momento, antes de respirar fundo. Ravenwood podia jurar que viu algo diferente brilhando naqueles olhos castanhos, algo que Frank Bryce parecia estar tentando manter quieto dentro de sua mente. “Tom era louco por gardênias. Eu dizia que o cheiro delas era muito forte e doce, nem todos gostavam, mas ele insistia que era bom, fresco e... Elas o lembravam de uma noite limpa com um bom caderno e tintas aquareláveis. A Sra Riddle amava as rosas mais do que qualquer outra flor, ela estava sempre cuidando delas, e certa vez me disse que o Sr Riddle gostava das margaridas, que ela achava interessante como um homem tão sério e lógico como ele conseguia achar bela uma flor tão simples como uma margarida,” ele explicou, devagar. “O Sr Tom às vezes dizia que... A mãe dele era o verão que conseguia derreter o personagem de inverno do pai.”

“Ele devia ter sido alguém interessante de conversar,” disse Feliks. “Alguém com uma visão interessante do mundo.”

“Ele era. E ele normalmente levava um bom tempo até parar depois que começava a falar, principalmente quando estava com insônia,” disse Frank, deixando uma risada fraca escapar de sua boca. “Ele falava sobre como sentia as flores, sobre o que as estrelas estavam tentando nos falar, sobre o que as raposas estavam perseguindo, sobre as formas que via na fumaça do cigarro.” O jardineiro olhou para a casa. “Às vezes ele ficava quieto. Ele saía aqui fora no meio da noite e sentava no meio do jardim apenas para ficar olhando o céu a noite toda... Às vezes ele escapulia e ia até Hornsea, para ficar perto do mar, e o Sr Riddle tinha que ir atrás dele no dia seguinte, porque tinha vezes em que ele esquecia que os pais ficariam preocupados. Mas, mesmo quando ficava em silêncio, ele parecia estar pensando sobre essas coisas. Sobre as flores que pareciam uma pintura e as estrelas que pareciam nos desejar boa noite.”

O médico permaneceu em silêncio. Ele realmente não tinha ideia do que falar no momento... Frank Bryce havia, de repente, deixado de lado toda a sua máscara de raiva, o personagem sobre o qual todos falavam em Little Hangleton, e agora estava parecendo o que ele realmente era: um homem que havia sido acusado por um crime que não cometera e cujos amigos mais próximos (pois era óbvio que os Riddle eram mais do que apenas chefes aos olhos de Frank) haviam sido mortos há pouco tempo.

“Espero que goste de chá ou whiskey barato, é tudo o que tenho para oferecer, doutor,” disse Bryce, antes de virar a volta e acenar para o outro lhe seguir na direção do chalé.


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Notas finais do capítulo

Vocês acabaram de conhecer o meu mais novo filho, Frank Bryce, o personagem que merecia muito mais respeito de todos no fandom, afinal, o cara encarou Lord Voldemort de frente e ainda fazendo piadinha logo antes de morrer.


1) Acho que já devo ter explicado isso, mas a localização de Little Hangleton, pra mim, é em East Yorkshire, entre Leven e Hornsea (uma cidade litorânea);

2) O sotaque do Frank Bryce: ele tem um sotaque de Yorkshire, que eu realmente não sei como reproduzir aqui. Senti muita tentação de colocar o sotaque de Santa Catarina nele na tradução, mas não iria ficar do jeito certo;

3) Changeling: do folclore escocês/irlandês/inglês, são fadas que são trocadas e colocadas no lugar de humanos. A maioria das histórias fala sobre crianças trocadas quando uma criança ficava muito doente ou não crescia direito, mas também há histórias de adultos que eram 'trocados' e começavam a mudar o comportamento, ficando mais em casa e não fazendo nada da vida (ter depressão hoje em dia já é horrível, imagine nessa época);

4) Delírio/alucinação: um detalhe divertido, mas as duas coisas não são a mesma coisa. Alucinação é ver, ouvir ou sentir algo que não existe, enquanto delírio é uma ideia recorrente demais que chega a prejudicar (ex delírio de perseguição é achar que todo mundo está te perseguindo; delírio de grandeza é achar que você é a pessoa mais importante do mundo, etc).

Como sempre, espero que tenham gostado e reviews sempre ajudam muito (por ex, o review da Bruba/Ivory me deixou quicando, assim como o da Vika, apesar de ela já ter comentado a história inteira via Whatsapp), então, por favor, digam o que estão achando :)))