A Rainha da Beleza escrita por Meewy Wu


Capítulo 2
I - Sorte e Ouro


Notas iniciais do capítulo

Mil desculpas, o capítulo deveria ter saído ontem a noite, mas houveram imprevistos! Espero que gostem ♥



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Foi Isis quem me acordou. Seus cabelos ruivos estavam aninhados em volta de sua cabeça como uma nuvem no por do sol, brilhando mesmo na luz cinzenta que entrava da janela, e ela parecia um lindo fantasma flutuando sobre mim.

—Bethany, acorde... Acorde! – ela gritou, desesperada, puxando meu braço enquanto eu forçava meus olhos a se manterem abertos – Bethany, precisamos ir. A casa está pegando fogo. A cidade inteira está em chamas!

—O que? – arregalei os olhos, me levantando em um só pulo, e me forçando a ficar em pé apesar da tontura – Vamos, vamos descer...

—O andar de baixo está inteiro em chamas – ela grito, tossindo com a fumaça que começava a encher o quarto – Mamãe está lá fora. A única saída é a janela!

Respirei fundo, abrindo a janela. Era uma queda de dois andares, mas ainda sim podia causar um ferimento grave se caísse de mau jeito. Marian nunca me perdoaria se Isis quebrasse uma perna ou um braço – Me de sua mão, eu te seguro e você desce.

—Mas e você? – perguntou ela, apavorada.

—Eu posso pular, sem problemas – falei, pegando sua mão. Ela levou a mão livre ao pescoço, como se fosse rezar, e me encarou na expressão de mais puro pavor que jamais imaginei ver em seu rosto.

—Minha correntinha! – ela arfou, tossindo mais uma vez – Está em cima do criado mudo, pode ir sem mim, eu já venho...

—Não vai conseguir pular depois – puxei a mão dela. Ela não podia mesmo estar cogitando voltar para toda aquela fumaça por causa de uma gargantilha.

—Estou acostumada a pular a janela do meu quarto, estarei lá fora antes que possa fazer a volta – ela falou, sorrindo travessamente, e encarando meu olhar cético – Desculpe Bethany...

Antes que eu pudesse entender o que se passava na cabeça dela, ela me empurrou com seus dedos finos com toda a força contra a janela, me jogando para o lado de fora sem qualquer resistência, surpresa demais para reagir.

Bati com as costas na grama, urrando de dor. Minha cabeça doía como se meu crânio estivesse se quebrando em centenas de pedacinhos, e eu sentia um líquido escorrendo por trás da minha orelha direita.  Não havia dúvidas que eu estava sangrando.

—Isis? – Marian perguntou, entrando no meu campo de visão e se aproximando correndo – Bethany? O que aconteceu? Onde está Isis?

—Ela me... Empurrou – falei, sem folego – Voltou para buscar... A correntinha.

—Não, não, ela não pode ter feito isso – Marian falou, se levantando e correndo para dentro da casa em chamas, como se pudesse atravessar o fogo. Entrei em desespero assim que ela desapareceu casa adentro, tentando me levantar. Era como se uma mão gigantesca me empurrasse contra o solo, me impedindo de me mexer.

A rua inteira estava enfumaçada. Eu conseguia ouvir as pessoas gritando de suas casas, sentia o cheiro de carne queimando, e não podia fugir disso. Estava presa ao chão.

Olhei para a casa queimando. Talvez tenha sido naquele momento em que percebi, em choque, que Isis e Marian nunca sairiam de lá. Já deviam ter sumido em pó e fumaça aquela altura.

O fogo estava quase sumindo, quando os primeiros raios da manhã surgiram e o som da sirene encheu meus ouvidos. Por que a ajuda sempre chegava tarde demais?

—Encontrei uma! – gritou a voz de um homem, se aproximando de mim no jardim lentamente, como se estivesse em dúvida se eu estava viva ou morta. Ele se abaixou ao meu lado na grama, colocando meu pulso entre os dedos – Sente isso?

—Sim – falei, com uma voz que poderia pertencer a qualquer outra pessoa, menos a mim – Estou morrendo?

—Não, não hoje criança – ele sorriu, me levantando com facilidade nos braços – Vamos levar você para a prefeitura.

—Prefeitura? – perguntei zonza, enquanto ele me colocava em uma ambulância, ao lado de outras pessoas que eu precariamente conhecia.

—É para onde estão indo os que sobreviveram – Jane, a filha mais nova do padeiro, falou, sentada logo acima da minha cabeça. Senti vontade de chorar por ela; se estava sozinha, então toda a sua família deveria ter morrido.

Pensei em como seria difícil para ela viver em um orfanato cheio de crianças, quando percebi quão terrível era a verdade. O orfanato havia queimado também. Toda cidade se tornará cinzas.

Eu me lembro de chorar, chorar muito, tanto o quanto minha dor física permitiu que a emocional se estendesse. Em algum momento, eu devo ter dormido.

...

Minha lembrança mais antiga é de madame Marsella, dona do orfanato, me ninando para eu dormir quando eu era apenas uma menininha, depois de um pesadelo que havia sido apagado da minha mente há muito tempo.

Talvez por isso eu tenha ficado surpresa em encontra-la ali, me observando dormir depois de tanto tempo. Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

—Minha menina... Você acordou – ela sorriu, enquanto eu tentava me sentar – Feliz dos Deuses, você está viva!

—As crianças? – foi à primeira coisa que perguntei, enquanto ela me entregava um copo d’água.

—Elas se foram, todas se foram... Minhas crianças, pobres crianças – ela piscou, tentando conter o choro – Eu estava fora da cidade, cheguei pela manhã, e me deparei com tudo em cinzas. Não sobrou nenhuma delas, as pobrezinhas. Só posso esperar que não tenham sofrido muito...

Bebi a água em um gole só, surpresa em quão seca minha garganta estava. Eu não sabia o que fazer, não era costume de Marsella deixar-se abater, mas aquilo era algo que destruiria qualquer um. Ela havia dedicado à vida aquele orfanato, aquelas crianças que não eram suas. Eu muitas vezes já ouvirá a história de como o marido a abandonou por não poder ter filhos, e agora ela perderá todos eles.

—O que vai acontecer agora? – perguntei, ainda um pouco zonza, sentindo minha garganta ranger.

—Ainda estão procurando por sobreviventes, eu acho... Nós somos todos que encontraram – ela falou, mostrando-me a pequena quantidade de pessoas no hall da prefeitura – É o único lugar que não queimaram, como sempre. Os guardas da rainha devem chegar amanhã, para nos escoltarem para outras cidades.

Uma menina de cabelos ruivos no canto me chamou atenção, mas bastou que a pequena Jane se aproximasse dela, entregando uma toalha e um prato de comida, para eu perceber que era velha demais para ser Isis. Ela se fora, para sempre. Assim como Marian.  

No dia seguinte, quando os guardas chegassem, eu seria levada para algum lugar longe dali, e a não ser que Apolo estivesse entre os guardas da escolta, eu provavelmente nunca mais o veria também. Não conseguia imaginar uma vida longe de Corippo, dos duzentos que convivi minha vida inteira – dos quais sobraram menos de trinta. Não estava pronta para ser mandada para alguma cidade grande da Grande Paris para trabalhar em uma fábrica, ou ter um destino ainda pior.

Olhei para a pequena Jane. Eu a vi ainda um bebê, nos braços da mãe que visitava uma vez por mês o orfanato. Lembrava-me de ouvi-la explicar para a menina, com apenas quatro anos, por que chamavam Corippo de Cidade dos Órfãos. Éramos uma cidade pequena, com tão poucos habitantes que nem éramos cotados para o exército da Rainha, a não ser que algum dos nossos se voluntariasse. Mas nos últimos vinte anos a cidade se tornou famosa pelo orfanato de Marsella, casais vinham do mundo inteiro para adotar criança, e crianças de toda Eurásia eram mandadas para lá.

Se essas fossem circunstâncias diferentes, eu quase ficaria feliz por Jane. Se ela pudesse viver com Marsella, seria amada, protegida e talvez encontrasse uma boa família. Mas eu não fazia ideia de como era o mundo fora daquela pequena cidade.

—Bethany! – Marsella me chamou, sua voz tão cheia de preocupação que me deu vontade de chorar – Está tudo bem?

—Está, só estou pensando em como as coisas serão daqui para frente – dei os ombros, pegando a toalha e o prato da bandeja que Jane estendia em minha direção – Obrigada!

—Não perca a cabeça pensando nisso, não é como se tivéssemos alguma escolha – falou ela, passando as mãos gorduchas no meu cabelo – Amanhã, os guardas decidirão nosso destino. Hoje, só podemos rezar e permanecer unidos.

—Somos pessoas fortes, aqui em Corippo – falei, sorrindo, e me virando para Jane – É com ela que me preocupo.

—Ela vem sendo bastante forte, na verdade – Marsella sorriu – Me lembra de você quando era criança, todos choravam por dias quando alguém ia embora do orfanato, mas você sabia que estavam indo para um lugar melhor. Ela se sente do mesmo jeito em relação aos pais e as irmãs.

Assenti, tentando comer. O arroz era seco e a carne dura, bem diferente da comida de Marian, que nunca confiaria em uma cozinheira. Os legumes estavam cozidos demais, quase um purê de batata, cenoura e beterraba, mas era a melhor parte. Não doía quando passava para engolir, e tinha tanta água misturada que acalmou a secura na minha garganta.

—Estou pensando em apresenta-la como minha sobrinha – falou Marsella, por fim, quando acabamos de comer e um menino, de uns quinze ou dezesseis anos, começou a passar para recolher os pratos – Jane, estou dizendo. Sabe, meu marido era irmão do pai dela, então talvez me considerem a parenta mais próxima.

—Seria bom – falei, tentando me agarrar aquele pedacinho de confiança – Para vocês duas.

...

Fechei a porta do pequeno banheiro da prefeitura, olhando para meu reflexo no espelho. Nunca fui de dar muita importância para a aparência, apesar de só ter sido escolhida para ser ajudando de Isis por que Marian me julgara “uma beleza pura”. Eu estava em um estado que Isis chamaria de deplorável.

Meus cabelos estavam embaraçados, cheios de grama, e cheirando a poeira. Meus braços estavam cobertos de hematomas, mas eu ficava feliz por conseguir me mexer depois da dor da noite anterior. Havia um curativo na lateral da minha cabeça, sujo de sangue seco, que Marsella me proibirá de mexer.

Não havia janelas no banheiro, mas imaginei que fosse melhor assim: eu não estava pronta para ver o que acontecerá com a cidade.

Só havia água gelada no chuveiro, mas isso não era um problema. Eu sempre era a última a tomar banho na casa de Marian, não estava acostumada a banhos quentes, embora um fosse ser bem vindo. Não consegui me lavar muito bem, apenas fiquei parada por um tempo vendo á agua tornar-se rosa e cinza aos meus pés, antes de pegar o sabonete que Jane me entregará e passar, das orelhas aos pés.

As únicas roupas limpas que haviam eram uniformes verdes da prefeitura, não eram o tecido mais confortável, mas pelo menos não eram minha camisola cheirando a fumaça.

O restante da tarde seguiu da mesma forma: ficamos no salão, tentando fingir que não estávamos sofrendo tento quanto estávamos e sendo fortes por pessoas que estavam sendo fortes por nós.

A garota ruiva chamava-se Suzi e vinha da Itália, tinha 24 anos e estava noiva de um garoto da cidade, que conhecerá em uma viagem. Agora, voltaria para casa dos pais, solteira e quebrada. O menino que recolheu os pratos era Luigi, e tinha tios em Portugal. Karl, o jornaleiro, havia perdido toda a família no incêndio e Cinthia, que tinha uma loja de roupas no centro, estava viúva, com metade do rosto queimado e sofria o risco de perder o bebê que carregava.

Entre as vinte e duas pessoas que sobreviveram, talvez eu fosse a mais sortuda. Apesar de tudo, os Drake’s não eram minha família de verdade. Eu sabia que Marsella estava bem, e ela foi minha mãe por dezessete anos. Ouvir o sofrimento dos outros, porém, me fazia sentir mais egoísta sobre minha própria dor pela perda de Isis e Marian. Isolei-me do grupo, e fingi dormir até a noite cair e os paramédicos da cidade vizinha virem nos ver.

O homem que me ajudará mais cedo, que aparentava ter uns cinquenta anos, trocou o curativo da minha cabeça, me deu um remédio para que a dor do meu corpo passasse e uma pomada para os hematomas.

—Pronto criança. Usa a pomada duas vezes ao dia, e tome um comprimido antes de dormir – ele falou, sorrindo gentilmente, e colocando a mão no bolso – Alguma dúvida?

—Cinthia e o bebê ficarão bem? – perguntei. Eu sabia que ele a tinha atendido antes de mim, e precisava sabe.

—É difícil dizer, mas acredito que sim – falou ele, sorrindo – Fiz meu melhor. Minha filha não é muito mais velha do que ela e sofreu muito quando perdeu seu segundo filho no parto.

—Eu sinto muito – falei, envergonhada por ter trazido a tona um assunto como aquele.

—Não é nada, eu já vi muito disso na minha profissão – ele deu um sorriso triste, e colocou a mão no bolso – Isso estava na grama quando te encontrei, é seu?

Peguei a correntinha nas mãos, olhando para a correntinha, com uma pequena moeda dourada endurada. O Nó de Isis gravado em um lado, e um I do outro.

—Era da minha irmã – falei confusa, mexendo a peça entre meus dedos – Não faço ideia de como tenha ido parar lá.

—Talvez ela tenha jogado pela janela – ela deu os ombros – Acho que ninguém vai se preocupar se você ficar com ele, não é?

Assenti, colocando a corrente em volta do pescoço enquanto saia da ambulância. Eu podia ver Isis à beira da janela, pronta para com a corrente na palma da mão. Marian fica presa no fogo, e ela olha para trás, sabendo que não pode salvar a si mesma nem a mãe, mas voltando mesmo assim, jogando a corrente pela janela antes de sair correndo.

Apertei a moeda contra o peito enquanto voltava para o salão da prefeitura. Quando o sol nascesse, meu destino seria decidido por homens que nunca me virão nem sabiam nada sobre mim. Esperava que em algum lugar, Isis – a deusa e a pessoa – estivessem me protegendo do destino que estava por vir. Eu entendia as palavras de Marian agora: eu precisava do melhor ouro e da melhor sorte para passar pelo que estava por vir.


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Notas finais do capítulo

Meewy Wu avisa: Esse capítulo ainda não foi revisado. É muito importante que qualquer erro seja relatado nos seus comentários para melhoria do texto, e para que esses erros não se repitam no futuro.



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