Aos olhos de alguém - Mudanças escrita por Loressa G M


Capítulo 2
Fria como neve




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*Joseph

  – Mãe, por favor, eu estou cansado! – imploro enquanto continuo a segui-la afundando meus pés nas grossas camadas de neve do norte do Alasca.

  Ela não têm ao menos o trabalho de se virar para olhar para mim, apenas diz: “Você já tem nove anos”.

  Espero alguns minutos, nunca me ousaria a parar de andar e descumprir uma ordem de Sofi Deverron, mas o frio intenso começa a me machucar, e eu estou morrendo de fome.

  – Mamãe. Podemos ao menos comer algo? – sinto uma lágrima congelar em minha bochecha.

  Ela para de andar. Um arrependimento percorre toda a minha espinha. Não deveria ter dito nada, nunca. Ela se vira, e um cortante olhar gélido saí de seus olhos azuis para os meus verdes.

  — Você não pode me chamar de “mamãe” depois do que fez. – Sofi apenas diz essas palavras e volta a caminhar afundando suas botas na neve. Entretanto, ela mantém a postura elegante, demonstrando que o frio não a afeta. E que eu também não deveria ser afetado.

  Não é justo. Sofi ainda me culpa por algo que fiz aos dois anos de idade. Eu nem me lembro direito do que acontecera, ou melhor, eu queria ter uma mente humana e não me lembrar de nada do que fiz com aquela idade.

  Minha mãe sempre planejou algo grande para mim, conquistou o reino Wolf, e planejava me treinar como um guerreiro naquele estão medieval, para que um dia, pudesse superar Alinpç. Porém muitos de seus planos deram errado pelo caminho. Quando eu nasci, não estava no estado em que ela governava, estávamos de táxi no estado Maya. Ela planejava que eu nascesse em algum local onde só estaria ela e meu pai verdadeiro, entretanto, quis o universo que eu nascesse no táxi mesmo, matando sete horas após o taxista, e não herdando os poderes de kirian do meu pai.

  Assim, causei a primeira decepção à Sofi, nasci apenas nível um. Estraguei mais dos seus planos ainda quando abri meus olhos, a essa hora ela já tinha matado o amante de raiva, com um veneno que ela sempre carrega em sua bolsa, – posto no milk-shake que ele havia comprado – ao olhar para mim, mesmo sendo o vazio olhar de um kirian, ela se apaixonou. A outra Sofi dentro dela assumiu o corpo. Aquela Sofi era alguém que pude chamar de mamãe.

  Depois daquela noite, a kirian largou todos os seus planos para ser uma verdadeira mãe. Ela saiu do estado Wolf, da ilha, e fomos morar em Nova York. Foi onde ela se apaixonou por um cara, o único homem que tive a chance de chamar de pai. Como tudo na vida de Sofi é intenso, eles logo se casaram, e, dois anos depois, Sofi e Diego tiveram uma filha. Uma linda garotinha de olhos castanhos e cabelos pretos. Eles a amavam, entretanto, na minha cabeça de criança mimada, achei que eles estavam me substituindo por Cassie. Achava que eles não me amavam mais.

  Foi assim que, um dia, com a garotinha ainda tendo meses, minha mãe a banhava. Entrei no cômodo, minha mãe sorrindo e se divertindo com a outra criança. Ela me deixou entrar, talvez tivesse se esquecido de que sou um kirian, e como todos da minha espécie, tenho uma alma escura, predestinada a ser amiga da morte. Olhei para aquela criança, minha mãe se levantara para ir pegar o shampoo que havia esquecido, e então foi minha chance, olhei para a bebezinha sorridente e compeli-la a se afundar.

  Mas, para minha surpresa, a garotinha simplesmente desapareceu.

  Até hoje tento convencer minha mãe de que Cassie não morreu. Soube dos boatos de que Alinpç estava desaparecendo com as pessoas ligadas à ilha, mas Sofi nunca acreditou em mim, e se em algum momento passou a acreditar, já era tarde demais. Sofi nunca mais voltou a amar.

  O pior foi quando aconteceu. Eu vi a Sofi de hoje tomar o corpo da outra quando ela se agachou à minha frente, e, ao invés de gritar ou se apavorar pelo sumiço da filha, ela simplesmente sorriu, orgulhosa por fazê-la voltar ao seu plano original, orgulhosa pelo seu guerreiro ter dado o primeiro passo sozinho.

  Nunca mais vira Diego. Sinto saudades dele, sinto saudades de minha mamãe, e até mesmo de minha meia irmã.

  – Chegamos! – diz Sofi empolgada, parando em frente a uma caverna escondida entre tanta neve.

  – Onde? – Só de olhar a entrada já tenho arrepios, não deve ser nada seguro lá dentro. E aliás, o que tem nela?

  Sofi se ajoelha, olhando-me da cabeça aos pés.

  – Você tem os olhos de seu pai – um relampejo da antiga Sofi passa por seus olhos, mas logo se desfaz – Bom, acho que já está pronto para enfrentar desafios maiores do que um simples vento gelado.

  Percebo que não estava mais sentido frio. Há alguns passos atrás, enquanto pensava, meu cérebro conseguiu impedir a si mesmo de captar sensações. Não sei se é algo bom ou ruim para ser sincero.

  – O que tem lá? – pergunto, apontando para a caverna, enquanto ergo o meu queixo. Se ela quer um destemido guerreiro, darei um a ela. Talvez assim um dia consiga minha mãe de volta.

  – Um Wendigo. – as palavras saem quentes de sua boca.

  Não faço a mínima ideia do que seja. Percebendo minha expressão de perdido, Sofi diz para entrar em sua mente.

  Já havia o feito antes, fora uma das primeiras lições que ela me ensinara. Entrar na mente de um kirian de nível superior ao meu.

  Entro em sua mente, imagens bem nítidas de um monstro quase esquelético de chifres e boca enorme me apavoram. Respiro fundo, e continuo. “Um ser humano, que por algum motivo se alimentou da carne de seus semelhantes”, “Alguns anos depois, ele ganhara a imortalidade – talvez desejada”, “Entretanto, o preço a se pagar é caro. Ele passará a maior parte de sua vida hibernando e quando acordar, só conseguirá caçar mais humanos, para seu estoque de inverno”.

  — E agora meu filhinho, é a época desse monstro acordar de seu sono profundo – sua voz continua, dessa vez na realidade. Ela abre um macabro sorriso – Provavelmente já está criando seu novo estoque.

  – E o que a senhora quer que eu faça? – digo, impondo-me sobre o completo vazio de neve. Obediente, como um cão treinado.

  Ela aprova minha postura. Dez pontos!

  – Quero que entre na mente dele. – o medo volta ao meu corpo. Tento não demonstrar meu abalo. Como vou entrar na mente de algo que não pensa?! – E o torne humano, pelo menos em pensamentos.

  Acho que talvez... o mundo esteja girando um pouco.


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