Asas Quebradas escrita por CameronDittmann


Capítulo 5
Asas Novas


Notas iniciais do capítulo

Anteriormente em Asas Quebradas...
"Acabei de ouvir no rádio que sequestraram uma pessoa numa praça ali perto.

A quantidade de pensamentos que me ocorrem me dão a sensação de que as coisas que crio na minha mente são parte de um universo paralelo que se alimenta de situações ou pessoas reais.

Ainda assim, parece que minha cabeça que levou a pior nisso tudo, juro que senti meu cérebro chacoalhar. A queda foi tão repentina que nem tive condições de me proteger melhor."



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Quando passo novamente pelo portão lateral do colégio, o olhar surpreso do funcionário que vigia a entrada faz com que eu me pergunte mentalmente sobre o que está pior, meu humor ou minha aparência. Com isso tudo, eu nem sei que horas são e se já estou perdendo alguma aula. Teoricamente eu tinha uma hora para ir, ver a feira e voltar, e estava mais ou menos no meio do caminho quando sofri meu pequeno imprevisto. Mas com certeza voltar andando a passos lentos me custou mais tempo do que deveria, então a aula já deve estar começando. Atraso por atraso, resolvo passar na cantina antes de ir para a sala. Preciso de qualquer coisa pra acalmar a minha fome de criatura acidentada que ficou sem almoço.

Tenho uma grande surpresa quando vejo que boa parte das turmas de terceiro ano ainda está no refeitório, inclusive a minha. Ninguém parece notar minha presença, então me dirijo ao balcão da cantina, peço um hambúrguer e aproveito para observar o ambiente. O buffet onde fica o almoço está tão vazio que não dá pra encher um prato com o que tem ali. A televisão muda está exibindo o telejornal local, mas agora dá pra entender as notícias porque as legendas foram ativadas. Evan está sentado na mesma mesa do Rob, e eles estão conversando com três meninas que estão de pé. Duas eu reconheço, elas normalmente sentam no meio da sala e são legais, boas colegas pra se fazer trabalhos. A terceira é uma total estranha pra mim, não parece ser nenhuma das garotas loiras da sala. Talvez seja alguma não loira que pintou o cabelo.

Assim que meu sanduíche fica pronto, me dirijo à mesa em que meus dois amigos estão, ou melhor, estavam. Rob acaba de levantar e vai atrás das meninas que estão saindo da cantina. Evan parece atento à televisão. Puxo a cadeira plástica com o pé, de forma que ela faça bastante barulho para anunciar que estou ali. Assim que me sento, sou encarada por um Evan boquiaberto. Antes que ele possa falar alguma coisa, esclareço tudo de uma vez.

― Raio da roda quebrado. ― falo com o sorriso torto de quem está com um lado do rosto bem dolorido ― Tomei um tombaço e nem sei se vai dar pra pedalar de volta pra casa.

― Que azar. ― Ele volta a assistir o jornal ― Talvez você não tivesse mesmo que sair daqui, seu lugar é do lado dos seus amigos.

Sem resposta para a frase brega digna de um biscoitinho da sorte, resolvo olhar para a televisão também a fim de descobrir porque o noticiário local está tão interessante pro meu amigo. Assim que acaba uma reportagem sobre engarrafamentos devido a reparos no asfaltamento de alguma estrada, a apresentadora começa a falar sobre o desaparecimento de uma pessoa. Por mais que as legendas estejam ativadas, elas não acompanham muito bem o que a jornalista fala e ficam cheias de erros algumas vezes. Quando o vídeo da reportagem começa, ligo os pontos e percebo que deve ser o mesmo caso que a funcionária da biblioteca me contou.

Uma garota havia desaparecido num bairro perto da ponte, e existiam grandes chances de sequestro. Câmeras de segurança de uma loja haviam apontado um carro preto rondando o local e testemunhas viram a desaparecida saindo de uma casa onde ela trabalhava como babá na última sexta feira, mas não sabem o destino dela desde então. Várias fotos da garota estão aparecendo, e me surpreendo ao ver que ela não deve ser muito mais velha do que eu, ainda que a foto pareça meio antiga. Morena, olhos castanhos, cabelos na altura do ombro. A reportagem se encerra com um cartaz de “desaparecida” feito pela polícia, e telefones para contato caso ela seja vista em algum lugar. Victoria Hall. 20 anos. Vista pela última vez em...

― Esse não era o nome de alguém dos seus quadrinhos? ― A voz de Evan desvia minha atenção.

― Não sei, era? ― respondo a pergunta com outra interrogação. Com certeza não devia ser nenhum personagem principal, porque mesmo depois de alguns anos sem desenhar, ainda tenho lembranças de boa parte do que criei, por mais que o nome também não me soe totalmente desconhecido.

― Não sei. O nome só me pareceu familiar, mas sei que não é de ninguém que eu conheço.

― Pensando bem, acho que também tive essa sensação. Mas falando de gente que eu não conheço, quem é aquela garota ali? ― Aponto a garota que estava conversando com Evan e Rob mais cedo. Ela estava sentada sozinha em um banco próximo à porta de entrada, falando ao celular.

― Como assim “quem é”? ― Evan fala com um tom de voz de quem não consegue acreditar no que eu disse. ― É a aluna nova que chegou hoje.

― Aluna nova? Não sabia que o colégio aceitava aluno à prestação.

― Eu que faltei às primeiras aulas e você que está confusa? ― Meu amigo continua a falar ― Ela já estava na sala quando entramos pra aula de biologia mais cedo.

― Estava?

― Estava. ― Evan responde com um leve sorriso, provavelmente rindo da minha cara.

Abro a boca para responder, mas nenhuma resposta vem à minha mente. Apenas olho para o meu amigo e para a menina repetidas vezes, seria uma cena cômica se não representasse a minha extrema confusão no momento.

― Espera. ― Coloquei minhas duas mãos sobre a mesa. ― Você pode ter faltado, mas eu dormi durante a segunda aula de espanhol. E acordei com a coordenadora me chamando.

― E ficou matando aula até me encontrar lá embaixo ― Evan completou. ― Deve ter sido por isso que a Sra. Day foi até a nossa sala, ela foi apresentar a garota nova, justamente na hora que você saiu.

― Mas eu vi que…

Minha fala é interrompida pela sirene que anuncia o fim do intervalo do almoço. Antes que eu esboce qualquer reação, Evan pega a embalagem amassada do meu sanduíche e se levanta da cadeira para jogar fora. Me levanto num pulo, não quero ficar para trás de novo.

― Você vai ter tempo para conhecer a novata, Clair. ― Ele dá tapinhas no alto da minha cabeça. ― Ela também gosta de sentar na frente da sala.

***

Cabelos loiros e lisos, uma franjinha rala que ainda assim encobre as sobrancelhas. Corpo bem magro, porte e altura de modelo. Olhos castanho-claro e um sorriso com dentes de coelho. A garota nova escolheu se sentar a duas carteiras de mim. A sala não está totalmente cheia, de alguma forma as aulas de depois do almoço conseguem ter um índice de atrasos maior do que as aulas que começam de manhã cedo. Evan se acomoda mais uma vez no fundo da sala, ao lado de Rob, que tinha sua presença garantida só por ter deixado seu material. A novata parece estar anotando algo em seu caderno, por mais que o professor tenha saído para pegar algum material do qual eu não me recordo agora.

― Oi. ― Com um sorriso no rosto, balanço a mão para chamar a atenção dela ― Não te conheço ainda, qual o seu nome?

― Sophia. ― Ela responde, simpática ― Também não lembro de ter te visto quando cheguei.

― Prazer, eu sou a Clair. Eu acho que fui convidada pela coordenadora a dar uma saída bem na hora que você chegou.

― Nossa. ― Ela ri baixo ― A Sra. Day me dá medo até quando fala normalmente, nem quero imaginar ter que ir pra sala dela levar bronca.

― Ah, eu não fui pra sala dela. ― expliquei ― Dei a velha desculpinha de que estava passando mal pra justificar um cochilo durante a aula e fui pra enfermaria. Mas realmente, quando ela faz aquela voz amigável, é simplesmente... medonho.

― Parece aqueles personagens de filme em que fica claro que você não pode confiar desde o início. ― Sophia ri mais uma vez e balança a cabeça, concordando com a minha fala.

― Oi, gente ― imito a voz forçadamente simpática da Sra Day ― Não, fiz errado. É oi, geeente.

O riso da novata é mais alto dessa vez. Nunca fui a melhor pessoa em questão de imitações, mas não é difícil fazer rir quando só lembrar da voz original do imitado já é algo engraçado. Nossa conversa é interrompida com o professor abrindo a porta. Atrás dele, os alunos atrasados chegam pouco a pouco. Mas em meio a tudo isso, algo em Sophia parece capturar minha atenção, por mais que eu não saiba o que é. Por mais que os longos cabelos e a altura sejam vistosos, o que estou sentindo não é algo como inveja ou vontade de ser como ela.

Começo a transcrever as anotações do quadro para o meu caderno em uma tentativa de distrair meus pensamentos. Se me repararem olhando muito para a garota nova é capaz de acharem que eu estou, sei lá, sofrendo de paixão à primeira vista. Apago palavras que comecei a anotar errado e refaço meus escritos corretamente. Será que é possível ter dèja-vu com pessoas? Tipo, olhar pro rosto de alguém a ter a certeza de que já viu aquela pessoa antes? É por isso que gosto de escrever sempre à lápis, dá pra corrigir os erros. Talvez seja normal, ou talvez só passe depois de um tempo. Droga, minha mão está doendo, deve ser por causa da queda. Vou ter que escrever mais devagar.

Felizmente, o foco da aula sai de copiar anotações e vai para resolver exercícios no livro. Química é o tipo de matéria que é conhecida por ser difícil de entender, por isso sou muito grata ao professor que dá aula pra gente. Ele faz química parecer fácil, por mais que eu não seja capaz de realizar dois dos exercícios do livro. Vejo pessoas levantando para tirar dúvidas, mas sinto preguiça e as dores da queda só de pensar em me mover mais na cadeira. Resolvo fitar Sophia novamente, apenas para vê-la concentrada escrevendo, sem prestar atenção no mundo ao seu redor. Talvez eu conheça alguém parecido com ela, existem muitas garotas loiras de cabelos longos por aí. Evito pensar nisso novamente. Em busca de distração, passo a ponta da lapiseira pela borda colorida da página do livro, até parar no triângulo branco que marca a numeração da página.

Me recordo dos salgadinhos triangulares voando ao vento, e resolvo fazer vários triângulos no pé da página, subindo e diminuindo até desaparecer no ar. A história do casal viciado em junk food volta a me divertir. Há tempos não exercitava a criatividade criando enredos e personagens aleatórios como estava fazendo antes de me acidentar, e aí percebo o quanto isso faz bem pro meu humor. Eu definitivamente tenho que fazer isso mais vezes. Desisto dos triângulos e começo a fazer círculos no canto da página. Os círculos aumentam gradualmente e logo se tornam esboços de cabeças. Logo a cabeça ganha cabelos curtinhos e escuros como os meus. Mesmo sem desenhar as feições do rosto, finalizo pondo um óculos grande de armação redonda. Um curativo na bochecha representa graficamente meus machucados e não deixa dúvidas, o desenho sou eu hoje. Ficaria perfeito como foto de perfil nas redes sociais, porque não? Me viro para alcançar a mochila que está no chão e pegar meu celular. No meio do movimento brusco, quase vou de cabeça na canela de uma pessoa que ia passando.

― Que lindo, você desenha? ― Uma Sophia com o caderno nas mãos nem reparou o quase acidente no qual ia se envolver por minha culpa.

― É, eu... tento. ― Abro um sorriso sem graça e pego o celular no bolso da mochila, me movendo com mais cuidado dessa vez.

― É você, ficou igualzinho ― Ela sorri ― Faz uma boneca pra mim?

― Faço sim ― respondo, amigável.

Ela vira rapidamente as folhas do caderno e me oferece a última página. Não deixo de notar que a quarta capa tem a letra de uma música anotada à caneta em meio a alguns adesivos. O professor se dirige à Sophia pedindo para ela se sentar e ela corre em direção à mesa das meninas que estavam conversando com ela no intervalo, resgatando seu livro antes de se sentar. O professor anuncia que daqui a cinco minutos vai começar a corrigir os exercícios, e por um momento não me importo se vou acompanhar a correção. O desenho flui mais fácil do que eu espero, em alguns minutos o rascunho do corpo fica pronto. Coloco um vestido branco e longos cabelos loiros na boneca do desenho e faço feições simples que lembram levemente o rosto de Sophia. Olhos claros, boca sorridente levemente aberta, o rosto dela agora me parece bem comum, quase desinteressante. Talvez minha breve monomania pela novata tenha sido fruto da pancada na cabeça, assim como minha mãe me contou que eu delirava quando estava doente no hospital. Ou talvez eu esteja me acostumando com a sensação de que certas coisas podem parecer estranhamente familiares.


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Notas finais do capítulo

Se passar muito do mês 2 e eu não aparecer com capítulo novo, não se preocupem, meu pc não anda 100% legal e eu também estou numa fase meio chata sem muitas forças pra escrever, mas não é nenhum tipo de hiatus.
Eu juro que o próximo capítulo não tem nada a ver com a Kim Kardashian, mas vai quebrar a internet (ou talvez eu só esteja convencida demais)
Até o próximo mês,
Beijinhos,
Cam



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