A filha do louco escrita por Loressa G M


Capítulo 4
Apenas estrelinhas




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  – Temos que voltar – digo, já movendo minhas pernas.

  Cafira e Sheiji me seguem. Passamos por dezenas de árvores distantes e “poças de águas”, as quais de perto não passavam de simples reflexos de luz. As garrafas acabam, a sede nos consome, cada raio de luz solar parece derreter-nos um pouco mais. Queria que fosse noite, pelo menos estaria frio... apesar de que seria mais difícil ainda correr, e enxergar.

  Após algum tempo, finalmente chegamos. O portão está intacto. Meu pai e Adrien não estão à vista.

  – Como o monstro entrou? – diz minha irmã, se virando para olhar Sheiji, e ficando de costas para o refúgio.

  – Não entrou. – o garoto parece extremamente cansado. – O senhor... o médico – nenhum de nós conseguimos guardar o nome de um homem tão calado – ele guardava zumbis abaixo do solo da Sala Hospital. Não deu tempo de me contarem muito, melhor vocês perguntarem para... – seu olhar caí em direção ao chão – quem sobrar.

  Cafira faz um gesto para que a sigamos. Não sei até que parte ela prestara atenção. Viro-me para meu melhor amigo, não quero que ele entre. Digo a Sheiji que na mínima aproximação com aqueles zumbis, ele corre grande risco de ser contaminado. O garoto concorda cabisbaixo, dizendo que, como quase tudo, o laboratório foi destruído, junto a todos os frascos da cura que haviam nele.

  Engulo em seco. Sheiji é uma bomba relógio, o que faremos se ele se transformar?

  Entro pelo portão, junto à Cafira. Uma nas costas da outra, com as espadas em mãos e armas de fogo na cintura. Elas são em último caso, zumbis podem ouvir, ver e sentir cheiro, não queremos atrai-los pelo som das balas.

  Quem diria, depois de tantos anos, finalmente vejo a mãe de Alex conseguir andar sem suas intensas dores. Fecho meus olhos e digo a minha irmã: “Eu não posso decapitar a mãe do seu namorado, não consigo”. Ela olha sobre o ombro para o corpo morto vagando.

  – Nem eu – sussurra Cafira.

  Continuamos a andar em formação, até aquilo nos ver. O corpo caminha até nós, torto, como se não devesse estar andando, como se não devesse ter vida. Ela começa a andar mais rápido, nós também, até nos depararmos com mais zumbis. O médico, a esposa de Miguel, e Damian ao chão com um tiro em sua testa.

  Cafira quebra a formação, indo em direção ao médico e o degolando. Me deixando sozinha com sua sogra. Fecho meus olhos e movimento a espada. Desculpa. Ao abri-los vejo sangue podre e um líquido esverdeado correr por minha arma, vindos da cabeça do zumbi enfincada na espada. Puxo-a de volta antes que o líquido alcance minhas mãos.

  Viro-me. Há mais zumbis, não apenas os moradores, talvez sejam os outros que o médico escondera sobre o solo. Mas não vejo ele, o zumbie que verdadeiramente me preocupa.

  Cafira corre até mim. Assim como eu minha irmã não consegue matar aqueles que conhecia, ainda mais com a esperança de um dia redescobrirmos a cura. Por sobre o ombro a vejo, uma lágrima escorre do rosto dela, a princípio não entendo, então viro-me para onde minha irmã direciona seu olhar.

  Nosso pai agachado, sobre o corpo de um dos gêmeos, comendo-o.

  As lágrimas encharcam meus olhos, não há mais como lutar. Meu corpo cai de joelhos ao chão, simultaneamente ao de Cafira. Nos rendemos.

  Por que lutar? Todos morreremos alguma hora. – com certeza Cafira pensa o mesmo que eu, ela sempre pensa. Entretanto, nossa pergunta é claramente respondida.

  Um choro de recém-nascido ecoa pelo refúgio. Eu e minha irmã nos entreolhamos. Essa batalha não é apenas por nós, existem mais sobreviventes. Seria egoísmo demais deixar crianças morrerem apenas porque não nos importamos mais com a nossa existência. Se não quero mais lutar por minha vida, lutarei pela de Sheiji, do recém-nascido, e quaisquer mais vidas que encontrarmos aqui.

  – Cafira... – olho para ela, seus cabelos castanhos arruivados sujos de sangue e areia.

  A garota se levanta junto a mim, enxugando suas lágrimas com a costa da mão. Pela primeira vez, eu e minha irmã não apenas pensamos igual, reagimos também.

  O bebê não mais chora, porém ao gritarmos que estamos de volta, ouvimos outra voz de criança, Kath, a irmãzinha de Allie. Seguimos em direção ao som de nossa prima, enquanto pedimos para ela continuar a dizer palavra, sem gritos, pois baixas frequências podem ser menos percebidas pelos mortos.

  Chegamos à pequena padaria, a qual um zumbi de longos cabelos soltos tenta entrar antes de nós. Decapito-a sem esperar para ver seu rosto. O sangue se espalha pelas portas de vidro, tento abri-las, enquanto minha irmã espeta com sua espada o crânio do zumbi ao chão. Vejo através do vidro Alex tirar a tábua de madeira que trancava-os. Entro no recinto, Kath pula em meu colo, e a abraço fortemente. Cafira tranca novamente as portas e beija o namorado.

  Coloco Kath de volta ao chão, ela corre até Adam. Seu irmão a abraça junto a um dos gêmeos, provavelmente Sebastian. Um horrível pensamento passa por minha mente, mãe...

  – Onde está Allie? – Pergunta Adam pela irmã. Desvio o olhar. Ele entende – Thomas também...

  Aperto meus olhos, tentando expulsar a lágrima presa. Ainda não é hora para chorar.

  – Eles estão onde? – pergunta a pequena Kath.

  Viro-me, não aguentaria responder. Entretanto, enquanto tampo meu rosto com as mãos e Cafira se afunda no ombro do namorado, o garoto de doze anos atrás de nós conforta a irmã.

  – Eles estão no céu – diz o pequeno ruivo, enquanto o vejo sobre meus ombros. Adam olha diretamente para a irmã, como meu pai olhava para mim e Cafira – E toda noite você poderá vê-los, brilhando junto à Lua, e aos outros anjos da guarda.

  – Allie me disse uma vez, que entre aquele monte de anjos no céu a noite, estava a vovó – A loirinha percebe meu olhar, e então viro-me para vê-los direito – será que nosso pai e a Allie conseguiram um lugar perto do Billy e da vovó Adam?

  Adam engole em seco e olha para mim. Ele segura as lágrimas em seus olhos, talvez até melhor do que eu e Cafira já conseguimos durante esses três anos.

  – Ainda não sabemos se Billy virou um anjinho – digo a ela. Não quero acreditar que o pestinha virou um deles, ou pior, “uma estrelinha”.

  Viro-me novamente e sigo em direção à porta. Cafira entende. Ela carrega Kath em seu colo, enquanto o namorado leva Sebastian – identifico-o pela queimadura em seu tornozelo. Assim que abro as portas, consigo ouvir o garotinho dizer a Alex que sabe que seu irmão Arthur não virou uma estrela, apenas um canibal sem vida. O namorado de minha irmã fica sem reação assim como eu, mas continuamos a andar em direção aos veículos de emergência, achei que nunca precisaríamos usá-los.

  Uma vã com espaço para quinze pessoas, sendo o último banco, de quatro passageiros, ocupado por bagagens. E um carro com espaço para cinco pessoas, e um grande porta malas. Ambos os veículos sempre estiveram preparados, com todo o necessário para sobrevivência, caso precisássemos sair às pressas.

  Alex e Cafira acomodam as crianças junto a Sheiji na vã. Minha irmã então abre a porta do carro para dirigi-lo – entre todos que sobraram, apenas ela e Alex sabem dirigir. O assistente de cientista liga a vã e começa a tentar fazê-la mover-se para frente. Os zumbis, que começaram a se aproximar assim que Kath falava, agora nos vêm, e seguem lentos até os veículos. Cafira liga o carro, e a vã finalmente funciona. Alex acelera para fora do refúgio, antes que zumbis de desconhecidos chegassem mais perto das crianças nos bancos de trás.

  Olho pela janela, me assusto com um corpo próximo demais. Logo após fechar os meus olhos de medo, vejo o mesmo corpo já dentro do carro. Grito.

  – Calma Milena! – sussurra nervosamente Adrien – e a propósito, obrigado por me esperarem.

  Mais mortos vivos são atraídos pelo meu grito. Entre eles, um em especial aparece, aquela mutação. Começo a respirar nervosamente, se acelerarmos ele nos alcança, e dessa vez não há os cabelos cor de sangue de Allie para me distrair da realidade. Fecho meus olhos e rezo para que ele se atraia por outro barulho e nos deixe em paz.

  Maldito pedido.

  – Milena! – o inocente Billy grita ao me ver pelo vidro do carro.

  Adaline segura-o com a mão esquerda, enquanto a direita está ocupada com um bebê recém-nascido, o filho de Marjorie.

  Por que eles não podiam estar juntos com os outros? Tinham que se esconderem em outro lugar caramba?

  Olho para Cafira em desespero, ela compartilha de meu sentimento. Poderíamos muito bem deixar a mulher que separou nossos pais para trás, mas... Billy e um recém-nascido, nunca.

  Saímos do carro. O monstro avança em direção a Billy, já abrindo sua mandíbula, tento alcançá-los, entretanto, Cafira é mais rápida. Ouço o recentemente familiar barulho do ar sendo cortado, mas ao abrir meus olhos, percebo que ela errou.

  Minha irmã acaba rasgando metade do tronco do “carniçal”, enterrando sua espada na pele morta. O monstro se vira para ela.

  – Ei! Grandalhão! – berro o mais alto possível.

  O desespero pela possibilidade de perder Cafira me engloba. A criatura olha para mim. Em um salto aquilo se prostra à minha frente, deixando as pernas e partes inferiores onde estava. Começo a correr.

  Por que deixei minha mochila e espada no carro? Cafira nunca faria algo assim. Mas, agora, o que eu faço?

  Tento não olhar para trás, não quero nem imaginar aquela coisa desfigurada correndo sobre os braços atrás de mim. Ouço o barulho de espada novamente. Uma onda de alívio me atinge quando viro-me e vejo minha irmã, dessa vez com a espada do pescoço aos poucos fios de cabelo na nuca dele. Parece que ele não é tão ágil sem as pernas.

  Billy corre até meu colo, abraço-o como nunca o tinha feito antes. Meus dias não seriam os mesmos sem o pestinha.

  Minha irmã e eu escoltamos Adeline e Billy até o carro. Cafira começa a decapitar todos os olhos mortos, até que chegamos bem próximos do carro e ouvimos um gemido agonizante, um som estranho e ao mesmo tempo familiar.

  Enquanto coloco o pequeno Billy no veículo, ouço o barulho de bala atravessar meus tímpanos. Uma lágrima escorre rápida por minhas bochechas.

  "Não quero olhar quem era", diz Cafira às minhas costas.

  Ambas sabíamos quem era.


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