Quando ele se foi escrita por Pandora


Capítulo 4
Eleanor




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— Você não odeia a supremacia machista das aulas de desenho?

Miles sussurrou para Eleanor.

Se ela odiava o fato de todas as aulas de pintura viva escolherem uma aluna que pesava quase o mesmo peso que uma pena?

Talvez.

No centro de sua sala de aula, todos os cavaletes estavam virados para ela: Elena Salinger, a modelo requisitada pra ser observada e traçada por dezenas de olhos masculinos famintos e mulheres que se dividiam entre a inveja e a inércia.

Eleanor estava mais para inércia.

— Acho que precisam economizar tinta esse semestre. - disse para Miles, o que tirou um sorriso dele. Ele amava o humor irônico dela, da mesma forma que ela amava o fato dele não ligar para as piadas que Eleanor fazia sobre sua irmã.

Embora estudar em uma faculdade abrisse seus horizontes e miscigenasse mais o mundo, o preconceito não sumia da noite para o dia. Ainda existiam piadas a respeito de negros, chacotas sobre pessoas gordas. Mas gente, o que Eleanor poderia esperar. É século XX e as pessoas ainda são cruéis. Nenhuma surpresa. Nenhuma surpresa também que ela nunca era a escolhida para a aula de desenho vivo. Mas sério, ela realmente não ligava.

Eleanor desenhou com cuidado o nariz de Elena, fazendo o possível para que a tinta não escorresse e caísse novamente na sua calça jeans.

Uma lição que se aprende nas aulas de artes, é não ir muito arrumada. Eleanor não sabia quantas vezes tinha visitado a lavandeira comunitária da faculdade para lavar a mesma calça.

Agora ela apenas usava a mesma. Um jeans desgastado, nem um pouco justo, camisa xadrez de mangas longas, uma blusa por baixo e talvez botas.
Estava incrivelmente obcecada por botas.

Aulas de prática a tinham ensinado que quando se cria, seu cabelo tem que estar preso em um rabo de cavalo. Então sim, Eleanor parecia uma estátua de porcelana em um museu de artes vivas.

— Troquem. - o Sr. Low disse em voz alta. Era o sinal. A cada vez que ele dizia isso todos os alunos tinham que trocar sua tela e desenhar com grafite, e assim por diante. Talvez ele não entendesse o significado de cara " preciso de mais do que 15 minutos para desenhar alguém".

Fora isso, ele era um bom professor. Bem, pelo menos quando não estava dando em cima das suas alunas, de acordo com Miles.

Miles deu um pequeno sorriso quando trocou a página do seu caderno de desenho.
O que não passou despercebido por Eleanor.

— Oque? Você finalmente percebeu que não desenha bem?

Eleanor disse.

Ainda sorrindo, Miles voltou a página virada, mostrando seu desenho detalhado e primoroso de uma Elena sentada, com seu cabelo curto em camadas, e seu vestido amarelo.

Cada traço estava desenhado com perfeição, até mesmo a leve menção aos olhos azuis dela e seu batom vermelho.

— Cara, - sussurrou a garota. Sim, acho que Sr. Low estava certo em poder pintar alguém em menos de 15 minutos.

— Tem certeza vantagem nela ser minha irmã. Conheço cada traço daquele demônio.

Virando novamente sua página, Miles começou o desenho a grafite.

— Sei exatamente por onde começar.

Eleanor sorriu, revezando seus olhos entre Elena, sua tela ainda em branco, e os dedos de Miles desenhando o contorno do seu cabelo.

— Nem sempre é sobre como se começa.

Mas como se termina, completou em sua mente.

***

Eleanor não ouviu de primeira quando seu professor avisou que a aula tinha acabado.

Muito menos ouviu quando ele disse seu nome duas vezes.

— Lembre - se, se ele se inclinar para você, chantageie contar para a esposa dele.

— Ele não vai dar em cima de mim - ela disse para Miles, tomando cuidado o suficiente para que seu professor não escutasse.

— Não acredite em boatos, Miles. - continuou colocando sua bolsa transversal sobre o ombro.

Não acredite em boatos. Eleanor sabia. Até porque ela mesmo tinha se tornado um boato. Há dois anos atrás, quando ela foi embora para morar com seu tio, sua família continuou morando naquela casa com eles por pelo menos uma semana, até seu tio ir ajudar eles a irem embora.

— Eles estavam falando sobre você. - foi uma das primeiras coisas que Maise disse quando ela chegou com suas coisas embrulhadas em um saco plástico.

Eleanor não precisava perguntar exatamente quem estava falando sobre ela. Porque ela sabia, que provavelmente, toda a escola havia comentado sobre ela por semanas. As amigas de Maise, os amigos de Richard. Eleanor não queria nem pensar nas merdas que Richard havia falado sobre ela. Muito menos pensar nas teorias que tinham amarrado em torno dela fugir de casa.

Gravidez. Expulsa de casa. Estupro. Assassinato.

Imaginava Richie, com seu cabelo seboso, arreganhando seus dentes amarelados, sibilando veneno ao falar que vadias sempre serão vadias.

Boatos são corrosivos. Eles destroem uma camada que há em você e te transformam na vadia, na santa, na louca e na pior pessoa do mundo.

Por isso que evitava falar mal de Sr. Low. A menos que ele inclinasse a mão e tocasse no seu joelho. Afinal, escolher apenas garotas bonitas para ser modelo na aula não é dar em cima, não é? Quer dizer, Elena nem era daquela aula e ele fazia questão de chamar ela.

— Eu quero conversar sobre seu trabalho.

Surpresa. Ela não precisava ser vidente para adivinhar que esse era o tema da conversa.

— Sobre o que exatamente? - Eleanor permaneceu de pé, a fim de mostrar que não queria continuar ali. Línguagem corporal é tudo. As coisas que Miami Vice ensina são incríveis.

— Sua última obra.

De baixo de várias folhas A3, Sr. Low puxou o desenho mais recente de Eleanor.

Tinha escolhido fazer a grafite. Era sobre uma mesa de jantar. Um ceia de ação de graças, com todos os pratos estragados.

O tema era ferir. O Sr.Low amava esse tema. E Eleanor tinha fugido do tópico mais do que o diabo foge da santidade.

— Não existe uma ciência exata quando se trata de arte, mas - ele observou a folha como se nunca tivesse a visto antes. - mas, suas obras me passam algo.

Insônia? haha, muito boa Eleanor. Se estivesse sozinha, provavelmente daria um tapinha no próprio ombro.

— Me transmitem a idéia de que você está fugindo de algo.

Ela fechou os olhos e respirou fundo. Ele não era primeira pessoa a lhe dizer isso. Seus outros professores, seus amigos, gente, até Ben tinha dito isso a ela.

É como se suas obras quisessem falar mais você as sufocasse.

Eleanor sabia que isso era um enorme problema que provavelmente a impediria de um dia ir para uma escola de artes mais especializada ou até mesmo se formar.
Mas se isso continuasse a deixando na sua zona de conforto, ela não tinha problema com isso.

— Eu acho que apenas não estava muito inspirada. - suas mãos foram para seu pescoço. Para espaço vazio nele.

Estava mentindo. Mas felizmente, era boa nisso.

— Vamos fazer assim. - ele apoiou o quadril em sua mesa, na melhor posição de "eu sou seu melhor amigo". - pense em algo sobre seu passado.

Oh não.

— Pense no que mais te fere. Crie, usando sobre o que você mais teme, e fazendo isso combustível para sua arte.

Existe uma razão para ter a zona de conforto. É exatamente essa: é confortável.
Não há como falar da coisa que mais te machuca sem se ferir novamente. Não tem, simplesmente não tem como falar do passado sem arrastar um pouco dele para o presente.

Mas aparentemente, desde que Eleanor saiu da casa do seu tio, arrumou as malas e foi morar a três cidades de distância, todas as ruas, as músicas e quadrinhos tornavam sua zona de conforto coberta de arames farpados.

Por isso que ela empacotou suas camisetas antigas e fez questão de ter novas. Por isso tem uma caixa com fitas em baixo de sua cama. Por isso que durante quase dois anos, ela não fazia questão de ouvir Smiths, considerava a new rave um fracasso e passava reto por todas as lojas de quadrinhos.

Porque doía. Ainda dói.

Ferir é mais do que uma palavra.

— Todo ano eu escolho três alunos para o estágio de artes. - ele disse como se Eleanor não tivesse ouvido sobre o estágio e sonhado com aquilo milhares de vezes. No seu primeiro ano de faculdade, ela não podia se inscrever, mas agora era uma veterana...

— Eu sei, eu enviei meu nome.

— Eu sei, eu vi seu nome. - ele sorriu. - E também sei que tem potencial para isso. Mas...

Porque sempre existe um "mas"?

— Você não vai conseguir esse estágio se não alcançar seu potencial.

Ele sorriu novamente quando suas mãos se esparramaram na mesa atrás dele, e seus cabelos grisalhos ficaram ainda mais evidentes pela luz que entrava das 14 vidraças na sala.

— Me surpreenda.


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