Crônicas dos Descendentes : A Herdeira -DEGUSTAÇÃO escrita por Bea B Pereira


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Se passaram dez anos desde que nunca mais coloquei os pés em um navio. Olho-me no espelho. Não tenho mais a aparência de uma garota assustada de sete anos.

Apago a última vela remanescente e coloco o capuz sobre o rosto. Abro a janela do meu quarto e deixo tanto a luz da lua quanto a brisa da noite me envolverem.

Passo minhas pernas pela beirada de madeira da janela e, com um único impulso, me lanço na árvore que cresce rente a minha janela. Desço devagar pelos galhos da árvore e quando estou a uma distância razoável do solo, pulo.

Atinjo o solo com a leveza de um elefante. Tenho sorte de meu pai adotivo dormir como uma pedra.

Vou até os estábulos e pego o corcel negro. O selo o mais rápido e silenciosamente possível, logo em seguida estou galopando rumo à cidade.

Quando finalmente chego ao meu destino, deixo o cavalo mais afastado e adentro o bar.

O local cheira a rum e tortas, uma mistura estranha. Caminho em direção à mesa mais animada, onde homens gritam um mais alto que o outro para serem ouvidos. Quando um deles me vê, grita bem alto:

— Olha quem conseguiu escapar essa noite. Jade Verga, a rainha de copas.

— Menos euforia, Jackson. Então... — digo enquanto me sento. — Como está o jogo?

— Entre e descubra, Verga — fala Seth Wood, sem tirar os olhos das cartas.

— Está me desafiando, Wood?

A mesa toda fica em silêncio e ambos nos encaram. O garoto é apenas um ano mais velho do que eu, ele trabalha em casa, no estábulo. Seu cabelo é loiro escuro e sua pele é morena devido ao sol. Seus olhos, cor de tempestade, finalmente me encaram e com um sutil movimento ele indica a cadeira à sua frente.

Os homens que estavam sentados se levantam para me dar espaço. Depois de três anos jogando sem perder, é de se admirar o quanto eles me respeitam e temem.

Pelos deuses! Já arranquei tanto dinheiro desses perdedores...

— O que vamos apostar, Wood? — pergunto enquanto me sento.

Ele mostra todo o dinheiro da mesa.

— E você, Verga? — Coloco meu pequeno saquinho com moedas à frente deles.

Ele distribui as cartas e, depois de pelo menos meia hora jogando, eu ganho dele, como sempre. Os homens ao redor começam a gritar e fazer algazarra.

Seth sai do bar sem lançar qualquer olhar para trás, pego meu saquinho e termino de colocar todas as outras moedas ali dentro.

— Já vai, menina? — pergunta Wesley.

— Já estou com bastante dinheiro por uma noite — respondo com um sorriso.

Saio pela porta, mas não tenho tempo de fazer qualquer outra coisa antes que uma mão me puxe para o canto escuro e lábios toquem aos meus. Mãos fortes me agarram e me prensam contra a parede de madeira. A boca, com lábios carnudos e um leve gosto de vinho, se desgruda da minha apenas para beijar meu pescoço e morder os lóbulos das minhas orelhas. Sufoco um gemido quando ele atinge um dos pontos fracos.

— Você acabou comigo ali dentro — fala ele em um sussurro rouco. — Sem piedade nenhuma.

Uma de suas mãos explora minha cintura e minhas coxas, enquanto a outra está bem posicionada entre meus cabelos. Passo minhas mãos pelo pescoço dele e entrelaço meus dedos entre os fios dourados. Puxo-o para trás e faço com que nossos olhos se encontrem.

— Você também não está tendo piedade nenhuma aqui, senhor.

Ele sorri, seus dentes são alinhados e parecem iluminar a noite. Ele novamente cola nossos lábios, dessa vez seu beijo é terno e suave. Quando nos separamos, ele entrelaça seus dedos nos meus e caminhamos no escuro até o cavalo negro.

— Conseguiu convencer seu pai? — pergunta ele, voltando ao assunto que eu menos queria falar.

— Não. Ele ainda quer que eu vá naquela festa ridícula. E antes que pergunte, sim, ele ainda acha que o melhor para mim é eu me casar com um oficial da marinha.

Percebo os músculos de Seth ficarem tensos.

— Quando vocês partem?

— Amanhã de manhã.

Ele para de andar e me lança um sorriso travesso.

— Então ainda temos muito tempo.

— Seth... Já conversamos sobre isso...

— Eu sei que não podemos fugir, mas, pense. Seríamos apenas nós dois contra o mundo...

Abaixo os olhos e aperto seus dedos.

— Tem meu pai aqui e...

— Ei. — Ele levanta meu rosto, fazendo com que eu encare seus olhos. — Eu posso esperar o tempo que for, Jade.

— Não fale besteiras. Quando começamos com isso, nós dois concordamos que era apenas diversão — digo, soltando sua mão e me voltando para o cavalo.

Ele me gira e faz com que eu encare seus olhos cinzas.

— Fale olhando em meus olhos que você não sente absolutamente nada quando eu te beijo, quando nos tocamos.

Ele enrola uma das pontas do meu cabelo no dedo.

Não demonstrar fraqueza. Tanto no mar, quanto na terra, essa afirmação é verdadeira. Junto toda a minha coragem e dou um passo para trás, rompendo qualquer contato entre nossos corpos, com medo de minha coragem vacilar. Seth levanta a cabeça e me encara. Embora ele seja bem maior que eu, consigo ver seus olhos com precisão.

— Eu não sinto nada. É só diversão — respondo.

— Não minta para mim, Jade.

— É só uma forma de passar o tempo, Seth. Nunca poderíamos ficar juntos. Não de verdade. Acha mesmo que alguém como eu me rebaixaria a alguém do seu nível?

Vejo algo em seus olhos se partindo, ele dá as costas para mim e, com um tom cavernoso, diz:

— Espero que não se sufoque com todas as suas mentiras.

Viro-me para o cavalo e o encaro, esperando afugentar as lágrimas que ameaçam cair. Seth está errado, eu já me afoguei há muito tempo em minhas mentiras.

***

O vestido que iria usar na festa chegou. Verde, minha cor preferida. O vestido deixa meus ombros à mostra e as mangas terminam com uma boca de sino. Em meu abdômen tem dois tons: o mais escuro que o vestido e o outro um pouco mais claro, que faz um triângulo até minha cintura. O vestido vai até meus pés, e neles uso um par de sapatos de salto verde, do mesmo tecido que o vestido, decorado com um pequeno laço.

Faço uma única trança em meu longo cabelo loiro que repousa sobre meu ombro esquerdo. Coloco os brincos que meu pai adotivo me deu e arrumo o pingente de chave no pescoço. Desde que o encontrei em meu bolso, nunca mais o tirei. É a única lembrança constante de que eu sou Jade Montnegro e não Jade Verga.

Seth não veio se despedir quando fomos viajar. Foi melhor assim, porque se eu visse seus olhos tempestuosos antes de entrar na carruagem que nos trouxe, provavelmente teria feito alguma besteira.

Escuto a leve batida na porta.

— Está pronta, querida?

Olho-me uma última vez no espelho da penteadeira e suspiro.

— Estou, pai.

Abro a porta e o encaro. Passamos a noite anterior brigando, pois eu não queria vir e estava com saudades de casa, vulgo Seth Wood. Mas, ele foi inflexível. Viemos para a festa e eu agora terei que achar um marido.

— Você está linda.

— Obrigada. — Ele veste o uniforme de gala da marinha e resolvo fazer as pazes. Ele pode não ser meu pai de verdade, mas ganhou um lugar especial em meu coração. — Você também está bonito.

— Obrigado. Agora vamos? — Ele me estende o braço.

Ele nunca se casou, me criou sozinho. Acho que nunca se casou por sempre estar preocupado demais com o trabalho. Descemos as escadas de mármore polido e saímos da casa. Do lado de fora, uma carruagem com dois corcéis marrons nos espera.

Meu pai abre a porta e me estende a mão, me ajudando a subir. Ele sobe logo em seguida e fecha a porta, então o veículo começa a andar.

— Eu tenho mesmo que ir? — indago, tentando pela última vez fugir daquela festa.

— Jade, eu já lhe disse que você está entrando na idade em que deverá escolher um marido e os homens da marinha são os que você poderá continuar vivendo bem.

— E eu repito: eu não quero me casar. — Pelo menos não com nenhum desses homens, completo para mim.

Ele leva o lenço branco até a testa e enxuga o suor.

— Não irei discutir.

Viro meu rosto em direção à janela. A lua ilumina as ruas e seu brilho contrasta com o mar, que fica cada vez mais perto à medida que nos aproximamos do local da festa. É algo que me dá um frio na barriga e uma nostalgia sem limites.

Quando chegamos ao local, percebo que a festa não vai ser em terra. O local dessa formalidade é um dos navios da marinha atracado no cais.

Quando subimos a bordo, percebo que essa é a primeira vez que piso em um navio desde que meu pai me trouxe para a terra pela primeira vez. Vejo que o convés está coberto por um teto de vidro, possibilitando encontros no inverno e nos tempos de chuva. O lugar está ricamente decorado. As mesas redondas estão espalhadas pelo ambiente com vasos de flores decorativos, castiçais estão espalhados aqui e ali, com velas pela metade. A banda toca uma música baixa, facilitando as conversas, e alguns casais estão dançando. Vamos até uma mesa de canto e me sento.

— Eu vou cumprimentar as pessoas, quer vir?

— Não, obrigada.

Ele se abaixa e espero receber uma bronca pela minha frase rude, mas ele me dá um beijo na testa.

— Tente se divertir.

— Isso será impossível — digo baixinho quando ele se afasta.

Tento esquecer a dor que os sapatos fazem em meu pé e começo a olhar o salão. Algumas moças estão sentadas em uma mesa próxima à pista de dança, encarando descaradamente um grupo de garotos do outro lado, desesperadas para serem convidadas para dançar. Reviro meus olhos e desvio o olhar. Aquele comportamento é estúpido e completamente carente.

Continuo passando o olho pelo salão quando algo me chama atenção. Algo, não, alguém. Ele está meio escondido entre as sombras do mastro, mas ainda consigo vê-lo.

As roupas que usa não são exatamente o que se deveria usar em uma situação como essa. Ele veste uma camisa branca que deixa o começo de seu peito à mostra, pelo que posso ver, andou treinando muito, pois seus músculos estão bem definidos.

Sua pele tem um leve bronzeado, porém, isso se encaixa com o tom preto de seus cabelos, que chamam atenção por não ser cortado de forma rente, como a maioria dos garotos que conheço. É mais longo e está despenteado de um jeito arrumado. Mas, o que mais se destaca são seus olhos azuis como o mar, que percebo tarde demais que me encaram.

Minhas bochechas queimam e minha pele clara deve ter ganhado um tom avermelhado. Desvio os olhos para qualquer outro lugar, me recriminando por isso.

— Jade Verga. — Olho para o garoto que acabou de chamar meu nome.

— Scott Winbus. — O nome sai espontaneamente da minha boca.

— Não me lembro de receber um agradecimento pelas rosas.

— E não recebeu — digo. — Eu não mandei. — Pouco me importa se minhas palavras são rudes. Aquele rapaz me irrita muito.

— Seu pai não me disse que era tão rude.

— Meu pai? Você andou conversando com meu pai?

A resposta não vem. Quando ele abre a boca para falar, o teto da pista de dança despenca, em uma chuva de vidros. Protejo-me como consigo, mas sinto os cortes nos braços.

Uma poeira branca toma conta do local e, quando ela finalmente abaixa o suficiente, vejo contornos humanos se aproximando e consigo identificá-los por completo. Um grupo de vinte piratas e, à frente deles, com o chapéu de capitão, está o garoto que há pouco encarava nas sombras.

Todos têm armas. Alguns com apenas uma espada, outros com armas de fogo. Tem um com uma espada em cada mão e outro com facas presas em um cinto.

— Olá a todos — diz o garoto de olhos azuis. — Sou o Capitão Evans e quero suas joias.

— Está em um evento da marinha real, é um tolo presunçoso se acha que pode sair daqui vivo, garoto — grita um homem atrás de mim.

— Como pretendem me impedir? Eu sei que todos vocês estão com armas descarregadas. — Ele mostra um saco marrom que imagino conter balas, nos lábios há um sorriso de escárnio. Scott me puxa para trás de si, mesmo com meus protestos. — Agora coloquem tudo de valor nos sacos que meus homens irão mostrar.

Três dos piratas se distanciam do grupo e começam a circular com enormes sacos nas mãos. Os outros militares fazem o mesmo gesto que Scott fez comigo e as mulheres começam a chorar enquanto tiram as joias.

O pirata que passa por nós é alto, tem a pele bem morena e isso intensifica o branco da cicatriz em seu rosto. Entrego todas as minhas joias.

— O colar também! — diz em um sotaque carregado.

— Não tem valor. É bijuteria.

— O colar.

— Jade, entregue o que ele...

— Não — grito para ambos, eles me olham com os olhos arregalados.

Scott sai da minha frente assim que o pirata saca a arma. Meu herói, penso, revirando os olhos.

— Entregue o colar!

Aperto o colar com meus dedos, usando tanta força que sinto minhas unhas se cravando na palma da mão. Encaro o pirata sem nem piscar.

— Hector, o que está havendo?

O capitão se aproxima de nós.

— Ela não quer entregar o colar, capitão.

O moreno é um palmo mais alto que eu. Ele me examina de cima a baixo, porém, seu olhar para no colar.

— Qual o seu nome? — Ele examina o colar com o dedo. — Onde conseguiu isso?

— Não é meu, capitão. Não sou obrigada a responder nada — falo baixo o suficiente para somente ele escutar.

— Como uma dama da Alta Corte conhece o código pirata? — pergunta ele, no mesmo tom que usei. O encaro em silêncio, meus olhos firmes nos dele. — Tudo bem. — Ele agarra meu braço com força, revirando os olhos, então me puxa. — Essa dama irá comigo, como garantia de que não tentarão nada.

Meu pai dá um passo para frente em sinal de protesto, porém, ele é contido por um tiro que erra por poucos centímetros dos seus pés. Vejo que o disparo foi feito por Hector.

Paro de andar e faço o capitão me encarar.

— Se machucar qualquer uma dessas pessoas, juro pelos deuses que nunca saberá de nada.

— Não se preocupe, querida, não está em meus planos.

— Não me chame de “querida”.

Ele acha graça e continua puxando meu braço. Saímos do salão coberto e vamos até a beirada do navio.

— Se não quiser cair, é melhor segurar em mim.

Relutante, seguro em seu pescoço, ele saca uma espada e corta a corda. Meus pés não tocam mais o chão. Fazemos um voo rápido em cima do oceano e meus pés encontram algo duro novamente.

A todo o pano — grita ele sem me soltar.

O navio começa a se mover e o navio atracado fica cada vez menor, até não passar de um borrão na pouca luz do dia que começa a nascer.


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