Crônicas dos Descendentes : A Herdeira -DEGUSTAÇÃO escrita por Bea B Pereira


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Quando volto minha atenção para o navio em que me encontro, vejo que estou no meio de uma roda e o moreno na minha frente.

— Onde conseguiu o colar? Sou seu capitão, agora.

— Sabe tão bem quanto eu que, de acordo com o código, posso te desafiar em um duelo. Se eu ganhar, tenho direito a ser a nova capitã; se eu perder, talvez te aceite como meu comissário — digo sorrindo.

— Acha que uma garota como você pode me derrotar? Não tem medo de quebrar uma unha? — A tripulação ri.

— Me dê uma espada e veremos — falo acima do barulho. — A menos que esteja com medo — eu finalizo, com sarcasmo.

Sua mandíbula se contrai e percebo que acertei um ponto fraco. O antigo lema “não demonstre fraqueza”.

— Entreguem a ela uma espada.

Um dos marujos me lança uma espada e eu a pego no ar. Observo a lâmina, ela me é familiar, seu peso, seu comprimento, então observo o cabo, ali está gravado minhas iniciais: J. M.

— Onde a conseguiu?

— Não preciso responder perguntas... querida. — Ele lança a última palavra como uma provocação, sorrindo. — Vai lutar ou quer que eu te ensine a mexer em uma espada?

Corto o vestido na altura dos joelhos e tiro os saltos. Posiciono meu corpo na lateral e levanto a espada na direção dele, assim como meu pai me ensinou tanto tempo atrás.

Ele parece achar graça. Avanço sobre ele, o pegando meio desprevenido. Com isso, minha espada faz um leve corte em seu peito, o traço vermelho aparece. Ele fica alguns segundos em choque, assim como toda a tripulação, que se silencia. Porém, ele se recupera rápido. Só tenho tempo de jogar meu corpo para trás e ver a sua espada passar a poucos centímetros do meu peito.

Recupero meu equilíbrio rapidamente, a tempo de minha espada bloquear o golpe que vem na direção do meu pescoço. Recuo o necessário para poder mexer meu braço e dar um golpe que ele intercepta. Levanto o joelho e acerto seu abdômen. Sinto a dor em minha perna, devido aos anos que fiquei sem treinar, mas funciona, ele está dobrado em dois e buscando ar, de joelhos. Uso meu pé e chuto a mão dele, sua espada voa para longe. Coloco minha própria lâmina em sua garganta.

Minha respiração está descompassada. Pelos deuses! Estou fora de forma. Os olhos azuis do capitão expressam surpresa e outra coisa que não consigo descobrir. Ele faz sinal para a tripulação não avançar.

— Estou cada vez mais curioso sobre você.

Ele se move rapidamente, segura minha mão com a espada e me gira, me prendendo contra seu próprio corpo e o mastro. Com a mão livre, ele consegue prender minhas duas mãos nas minhas costas. Estamos tão próximos que consigo sentir sua respiração irregular em minha nuca.

Tento me mexer, porém, ele me prende contra seu corpo forte e o mastro.

— Onde conseguiu o colar?

Quando ele fala, sinto o seu hálito fresco, uma mistura de canela com menta.

Não o respondo e sinto minha própria lâmina contra meu pescoço.

— Onde o conseguiu? — ele silaba mais devagar, seu tom é o de um líder, sem deixar margem para qualquer outra resposta, a não ser a certa. Ele aperta meus punhos e a espada em minha garganta, sinto quando um pequeno filete de sangue escorre em meu pescoço.

— Eu o achei. — Não é uma mentira, mas também não é totalmente verdade.

Percebo que ele espera mais explicações, mas permaneço calada, não vou entregar minha única moeda de troca.

— Eu também achei a espada. E sabe o que os dois têm em comum? — ele sussurra em meu ouvido para o resto da tripulação não ouvir. — Os dois objetos pertencem à família Montnegro. — Ele me solta. — Quero te mostrar uma coisa.

Ele me dá um pouco de espaço, porém, continua segurando meus pulsos. Abre passagem entre os homens e chegamos à cabine, com olhares curiosos atrás de nós. Quando entramos, ele fecha a porta atrás de si. Em alguns aspectos, a cabine dele lembra a do meu pai: uma mesa com o mapa do mundo, algumas espadas penduradas na parede, mas a cabine do meu pai era organizada, cada coisa tinha seu devido lugar. No lugar em que estou agora, tudo é desorganizado. O baú de roupas está aberto com roupas espalhadas por todo lugar, os objetos de navegação estão espalhados pela mesa e alguns estão sobre a cama, pedaços de papel amassados estão juntos com as roupas.

— Os Montnegros eram os maiores piratas vivos. Os reis, se você preferir. Eram os melhores, os mais temidos e respeitados. Ninguém ousava discordar de Mikael e Elena Montnegro, eram os melhores, até uma noite... — Eu sei o que vem a seguir e afasto as lágrimas dos olhos. As lembranças ameaçam voltar, mas as afasto e as guardo novamente no cantinho do meu ser. — A marinha os pegou desprevenidos, toda a tripulação morreu, as más línguas dizem que eles foram traídos por um dos seus, mas nada se sabe. E assim foi o fim dos reis. — Ele faz uma longa pausa, até acho que terminou, mas ele continua: — Ou foi o que achei, até encontrar isso. — Ele tira do bolso um retrato e me entrega. São meus pais, sorridentes, e no colo da minha mãe há um bebê, eu, dormindo profundamente. — Os soberanos tiveram um herdeiro.

— Por que... — Minha voz sai quebradiça e me amaldiçoo por isso. Recupero o controle das minhas emoções. — Por que está me contando tudo isso? O que eu tenho a ver com isso?

Ele dá um riso debochado.

— Você nem imagina? Olhe o pescoço do homem. — Observo mais de perto e percebo o porquê de ele ter ficado tão interessado no colar, é o mesmo que está desenhado na pintura. — Qual é o seu primeiro nome, Senhorita Montnegro?

Penso em não o responder, mas percebo que ele já sabe quem eu sou. Não importa o quanto eu tente negar, as mentiras que tanto me afogavam finalmente transbordaram para fora.

— Ótimo — digo. — Conhece minha história, a história dos meus pais, então isso me leva à pergunta: o que você quer de mim?

Seus lábios formam um sorriso e ele responde:

— O que eu queria desde a festa, o colar. Você conhece a lenda.

Levo minha mão ao pingente e o seguro com força.

— Não vai acontecer. O colar é meu, é dos Montnegros.

Lembro-me da lenda que corre na família, que minha mãe me contava antes de dormir. A chave do pingente tem a capacidade de abrir um baú perdido, que contém um poder sobrenatural. O baú é feito inteiramente de jade, pedras dos diversos tons. Os Montnegros são os guardiões da chave, por esse motivo, nós temos os olhos da cor da pedra, um lembrete constante de que temos uma missão para com a humanidade.

— Não irei entregá-lo — afirmo por fim, com uma firmeza que fazia anos que não usava.

Viro-me e saio da cabine.

Posso senti-lo atrás de mim.

— Sou seu capitão e eu ordeno que pare.

Subo no parapeito do navio e seguro em uma das cordas que suspendem um dos botes. Olho para o capitão.

— Só tive e terei apenas um capitão, seu nome era Mikael Montnegro. Se quiser o colar, terá que arrancá-lo do meu cadáver, no fundo do oceano.

Ele para onde está e me dá um sorriso torto.

— Desça daí. Você não vai pular. Me entregue o colar e eu te levarei para casa.

Minha casa está no fundo do mar, junto com meus pais, penso com desdém. Afinal, era para eu ter morrido naquela noite, também. A herdeira dos Reis que escapou da morte, se misturando com o inimigo. Fecho os olhos e deixo as memórias me preencherem.

Solto a corda e lanço meu corpo para trás. A água salgada me abraça e sinto a água gelada em contato com meu rosto. A trança em meu cabelo se desfaz, agora ele dança no ritmo da correnteza. Não tento lutar para subir, a água me puxa para baixo e eu aceito. Embaixo d’água é calmo, não há barulho ou som, e o azul que me rodeia é um velho amigo do qual fiquei distante tempo demais.

Porém, a paz dura pouco e eu sinto uma mão me puxando para cima e segundos depois, o ar entra em contato com os meus pulmões. Uma corda foi lançada para mim e uma das mãos que me seguram a agarra.

Sou içada novamente para o navio e caio de joelhos, tossindo e completamente molhada. Minhas roupas estão grudadas em meu corpo e toda vez que a brisa bate, eu me arrepio. Os tripulantes me olham como se eu fosse algo contaminado e, quando olho para trás, vejo o garoto de olhos azuis completamente molhado. Foi ele quem me resgatou. Uma onda de raiva explode dentro de mim, me levanto em um pulo e me dirijo até ele.

— O que você estava fazendo? — grito.

Ele me encara por alguns segundos sem nenhuma reação, mas em seguida diz alto:

— Eu salvei sua vida!

— Nunca pedi para ser salva!

Ele ri sem achar graça.

— Claro que não, sua boca estava cheia de água! Eu te salvei de morrer afogada!

— Quem sabe eu quisesse me afogar?!

— Ótimo! Da próxima vez eu irei me lembrar disso!

— Ótimo!

Quando paro de gritar, percebo o quão próximos estamos. Nossas cabeças não se tocam por poucos centímetros, estamos tão perto que percebo que os olhos dele são como o mar. Enquanto grita, eles ficam azuis escuros, como o mar em tempestade; e quando para, volta a ser um azul calmo, sem ondas. Um azul que, se eu me concentrar bem, talvez possa ver sua alma.

Ele também percebe a proximidade e nos afastamos simultaneamente.

— Chris.

Um homem gordo, com apenas alguns fios grisalhos na cabeça, se aproxima.

— Chamou, capitão?

— Leve a senhorita Montnegro para uma cabine e dê a ela as boas-vindas ao Vingança da Rainha.

Lanço-o um último olhar assassino antes de o homem me dar um leve empurrão e me conduzir para fora do convés.

Descemos uma escada e ele me manda entrar na segunda porta.

— Não estará trancada, mas sugiro que não saia. Hoje teremos bebida e os marujos costumam exagerar na dose. Tem roupas no baú, mas não sei se servirão. Daqui a pouco volto com algo para você comer.

— Obrigada.

Ele já está fechando a porta, mas para e pergunta:

— Poderia dizer seu nome?

Não o respondo e ele prossegue como se estivesse em uma conversa, não em um monólogo.

— O meu é Christian, mas todo mundo me chama de Chris.

Ele fecha a porta atrás de si e logo depois que sai, me ajoelho sobre o baú.

Encontro roupas grandes demais para mim, mas consigo me arrumar. Minha mãe me ensinou isso.

Pego uma camisa branca, um cinto negro e algumas outras peças. Quando termino, a camisa gigantesca se torna uma camisa com mangas três-quartos e a calça preta fica colada em minhas pernas, o cinto fica em minha barriga, marcando minha cintura, como um corpete. Um par de botas está em meus pés, agradeço silenciosamente por haver um homem com pés pequenos.

Observo o resto da cabine. Ela é simples, as paredes lisas, uma cama no canto, o baú nos pés e uma mesa na parede oposta, com uma cadeira. Penso em sair e encher a cara com os marujos, mas percebo que estou cansada demais para isso. Além do mais, duvido que o capitão deixe que eu chegue perto do rum.

Como prometido, depois de algum tempo deitada e olhando para o teto, Chris traz algo para eu comer. É uma gororoba sem gosto, pastosa e com uma aparência deplorável, porém, acabo engolindo, afinal, estou presa nessa banheira flutuante por tempo indeterminado, logo, tenho que me manter viva.

Essa não é a maneira que esperava voltar para os mares. Esperava estar em meu próprio navio, comandando meus próprios homens...

Deito-me na cama, olhando para o teto, sentindo o movimento das ondas embaixo do casco do navio, o que é reconfortante. E, mesmo sendo dia lá fora, sem me dar conta, adormeço.


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