Castelobruxo escrita por Vilela


Capítulo 9
Capítulo oito - Quadribol não é doce




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Alex nunca tivera amizades como as que fizera naqueles dois primeiros meses na nova escola. Quando era criança, seus pais o deixavam brincar com as crianças errantes sempre que ele queria. Um garoto em especial, Marcos, fora seu melhor amigo nessa época. Os dois costumavam andar pelo povoado de tendas, provando das comidas que as mulheres faziam ou brincando com os animais de estimação. Mas após seu pai conseguir um espaço no Parlamento Bruxo, tudo mudou. Ele se tornou uma criança solitária e deveras introvertida, nunca mais tornando a ver Marcos. Não era de se assustar, portanto, que ele estivesse extremamente feliz em Castelobruxo.

            Mateus era uma ótima companhia. Muito engraçado, às vezes sem querer, era ele quem deixava as reuniões dos alunos do primeiro ano no dormitório divertidas. Ele gostava de contar piadas, ria às gargalhadas e curtia com quem estivesse por perto. Um prodígio nos esportes, ele ficou conhecido por isso bem rápido. Foi bom, porque antes disso ele era apenas o irmão mais novo de Amadeus, o que não era uma boa imagem. Seu único problema eram os estudos, principalmente as aulas teóricas. Podia se dar bem nas caçadas costumeiras que eram as aulas de magizoologia, mas quando se tratava de escrever sobre os animais, ele simplesmente travava. De todas, o espanhol era a pior. Como podia alguém precisar de falar duas línguas, ele não sabia dizer.

            Nicolás, por outro lado, se dava bem nas aulas. Não fosse o seu completo desinteresse, talvez suas notas superassem as de Alex. Ele vinha de uma família bruxa bem rica, dona de uma marca de chapéus argentina, mas ele procurava se distanciar ao máximo do dinheiro dos pais. Ele não entendeu nem um pouco quando Alex contara que enfim dera um jeito de pedir seus pais para que mandassem as coisas de que ele precisava, uma vez que ele mesmo jamais faria o mesmo. Ele daria um jeito de sobreviver com o que tinha.

            Exemplo disso foi o primeiro fim de semana de maio, quando o seu estoque de chicletes acabara e ele percebeu que tinha de fazer algo. Alex estava escorado em uma das pilastras do jardim principal, conversando com Sofia sobre os deveres de herbologia dos pajuantes, quando Nicolás se aproximou.

            — Preciso da tua ajuda — ele disse, sem fôlego.

            Alex despediu-se da garota insatisfeito, gostava demais da companhia dela para ter de dizer adeus tão rápido. Então Nicolás contou o seu problema: por causa da baixa quantidade de açúcar no sangue, ele precisa de ingerir algo doce regularmente, ou fora isso que ele vinha fazendo a vida toda achando que resolveria. Os chicletes normalmente bastavam, mas agora ele tinha mascado a última caixa e não tinha dinheiro para comprar mais. Tentara fazer um acordo com um dos vendedores que achou pelos corredores, mas nenhum deles estava interessado em nada do que ele tinha a oferecer.

            — Tenemos que robar! — Nicolás fora enfático.

            Alex riu alto, depois percebeu que o amigo falara sério.

            — É sério?

            — Sí! No posso ficar sem goma. — Ele tirou do bolso um papel, desdobrou-o e entregou para Alex. — La receita para as gomas.

            Alex leu a receita complicada do chiclete. Era uma mistura de ingredientes mágicos com os comuns, e a maioria parecia ser difícil de ser encontrada.

            — Como vamos achar tudo isso?

            — La cocina recebe suplementos nuevos cada mês! — Nicolás mascava um chiclete como se fosse o último, e a julgar pela sua expressão, talvez fosse. — Só precisamos entrar e pegar lo que necesitamos antes da contagem.

            — Não sei não — disse Alex. Deu mais uma olhada na receita. Dois tipos diferentes de açúcar, com certeza não seria fácil achar aquilo com os alunos. Talvez aquela fosse realmente a única maneira.

            Nicolás tirou do bolso da calça a preguiça desmalte, colocando-a na gola da sua blusa. Ela imediatamente fechou as garras no pano e ficou ali grudada, sem nem abrir os minúsculos olhos. Alex então percebeu que esse não seria o primeiro roubo de Nicolás, mas a julgar pelo problema de saúde dele, decidiu que ia ajudar.

            O argentino já tinha planejado tudo, só precisava saber que dia ao certo os suplementos chegariam. Para isso, passou a ficar na cantina mais do que era necessário. Fez amizade com os alunos que ajudavam na cozinha e até conheceu a cozinheira chefe. Quando ficou sabendo desses planos, Mateus tinha uma posição completamente contrária:

            — Vocês ficaram doidos?! Se alguém pegar vocês roubando vão ser expulsos com certeza!

            Alex concordava, e era por isso que ele tinha que confiar que não seriam pegos. Na semana que se seguiu, Alex esqueceu completamente de Nicolás e seus planos mirabolantes. Enquanto o argentino passava os intervalos das refeições chupando cubos de açúcar para o café, Alex passou a desejar que sua mãe enviasse logo o que ele tinha pedido. Não aguentava mais esperar e os garotos começaram a implicar com o fato dele deixar uma vela acesa no quarto dia e noite. Mateus tinha medo de que um dia iam retornar ao quarto e encontrar tudo em cinzas, e Nicolás odiava qualquer tipo de luz quando ia dormir. Foi de fato durante o sono deles na madrugada de um domingo que tudo aconteceu.

            Primeiro escutaram um barulho. Os três acordaram sobressaltados e a vela, única fonte de luz, exibia sua chama tremida quase no fim da cera. Então a chama dobrou de tamanho e enfim explodiu num clarão verde. Uma mala voou pelo quarto e atingiu Alex bem em cheio no rosto. Tonto, ele desceu da cama e acendeu a luz do quarto: era uma mala pequena, modesta, mas dentro estava cheio de coisas que ele tinha pedido: os livros, o uniforme, os sapatos, até mesmo as poções repelentes para longas caminhadas na floresta. Sorrindo, ele pegou o pequeno cartão que estava preso na alça da mala e rapidamente toda a felicidade se esvaiu:

            Não pude deixar de notar a ausência de livros sobre plantas na lista que nos mandou. O senhor que me atendeu na livraria, contudo, me disse que alunos de Veracostas não estudam herbologia, mas sim animais. Espero que se explique, não era esse o nosso combinado.

            Adamastor Maciel.

 

            — Ele sabe... — disse. Mateus estava com sono demais para perguntar quem, e Nicolás já tinha voltado a dormir nessa hora. Foi com medo que Alex voltou para os lençóis. Foi dormir imaginando que o pai chegaria voando numa vassoura na escola no dia seguinte, abriria a porta do castelo com um chute e faria uma cena dramática para tirá-lo daquele lugar.

            Em algum momento esse pensamento se tornou sonho, e o sonho se transformou gradativamente em pesadelo. O rosto do seu pai ficou escuro e sumiu por entre folhas, enquanto que as paredes do castelo se torceram em troncos muito longos. De novo não, pensou, mas não havia muito o que ser feito. Estava mais uma vez perdido no meio da floresta, andando a esmo sem se lembrar para onde tinha que ir. Tirou a varinha do bolso e parou escorado em um dos troncos. Sentiu a respiração irregular, o frio da noite. Não parecia estar sonhando, aquilo era real demais.

            Por algum motivo sabia que a varinha não seria o suficiente naquela situação. O que quer que estivesse ali na floresta, os feitiços que conhecia não seriam capazes de detê-lo. Foi quando se lembrou daquela aula de herbologia floral do terceiro ano, quando estudaram as propriedades mágicas que cada flor podia trazer, em especial os copos-de-leite. Tirou de baixo do robe uma dessas, incrivelmente branca e ainda presa em cinco centímetros de caule, e estendeu-a para a escuridão. Acordou sentindo uma respiração bestial em sua nuca.

            O dia já tinha amanhecido e seus amigos já tinham saído do quarto. Seu pai não apareceu naquele dia, nem nos que o seguiram. Alex se arrumou como em qualquer outro fim de semana, e estava se perguntando o que faria primeiro naquela manhã quando se lembrou do que tinha combinado com Mateus duas noites atrás: eles assistiriam a partida amistosa de abertura da temporada de Quadribol. O jogo seria entre dois dos inúmeros times de Castelobruxo. O vencedor do último ano, Goleeira, contra o novo favorito para a taça, Saltimbancos. O campo, como todo o resto em Castelobruxo, ficava no meio das árvores. A diferença era que para chegar lá não havia uma trilha pavimentada como a que dava no deque, nem um caminho lamacento como a que levava a Coromândia, o que dificultava um pouco o acesso.

            Contudo, era para lá que a maioria dos alunos fãs de Quadribol estavam se dirigindo naquela manhã. Mateus e Alex estavam entre eles, cada um com uma bandeira da Goleeira, azul e amarela. Mateus estava se gabando de conhecer o apanhador do time, porque Amadeus era um de seus amigos, quando Nicolás veio correndo do castelo e os alcançou antes que entrassem na floresta.

            — Alex! — ele gritou. — Alex, o dia chegou!

            Alex não entendera de imediato, mas então se lembrou: o roubo de doces.

            — Agora?

            — Sí! Estão a descargar las mercadorias!

            A cozinha, segundo Nicolás, estava repleta de caixas de todos os tipos de alimentos, perecíveis, encaixotados e enlatados. O seu informante disse isso assim que as caixas chegaram, e Nicolás colocara seu plano para funcionar de imediato. A estratégia se dividia em duas partes que precisavam funcionar simultaneamente para que dessem certo.

            A primeira, que já estava concluída àquela hora, consistia em basicamente retirar todos os funcionários da cozinha. Nicolás tinha cogitado bombas de fedor, feitiços repelentes, entre outros artifícios, mas descobriu que era tudo fácil demais de ser desfeito. Ainda pensava nas possibilidades quando por acidente encontrou um ninho de vespas róseas no refeitório. Após o incidente com Sofia, ele somara um com um e no momento certo agira: usou o feitiço do mata-mosquito de qualquer jeito, fazendo movimentos bruscos; o ninho se rompeu, ou o argentino achou que tinha se rompido, pois vespas de todos os tamanhos apareceram e passaram a sobrevoar o refeitório, entrando também na grande cozinha do fundo. Todos saíram de lá às pressas, e Nicolás viera rapidamente buscar Mateus para que pudessem pegar o que precisava antes que se livrassem dos insetos.

            Alex era necessário na segunda fase para poder ajudá-lo a carregar o que Nicolás quisesse pegar. Mateus também poderia ser de grande ajuda, mas ele não queria nem ouvir falar daquele plano. Apesar de querer ajudar o amigo, Alex não ia deixar de assistir ao jogo de abertura da temporada. Muito menos Mateus estava disposto a ir sozinho.

            — Cara, bem na hora do jogo? — perguntou ele.

            — Sí, yo no controlo isto! Vamos, no hay tiempo. — Nicolás estava quase se virando para correr de volta para o castelo, mas Alex permaneceu onde estava. Eles se encararam por um momento, então o argentino olhou para Mateus por um segundo e voltou sozinho para o castelo.

            — Vem — disse Mateus, puxando Alex. — Essa era uma péssima ideia, de qualquer forma.

            Alex não conseguiu deixar de se sentir culpado quando entraram na floresta. Ficou se perguntando se Nicolás teria se aventurado na cozinha sozinho e desejou que ele fosse um pouco mais fã de Quadribol. Seria ótimo se os três pudessem ir ao jogo juntos, mas Nicolás odiava vassouras e chamou de idiota quem usasse uma para voar atrás de bolas enfeitiçadas.

            O campo ficava a cinco minutos de caminhada, embrenhado na floresta de tal forma que era preciso atravessar até mesmo um pequeno riacho, que desaguava no Rio Negro mais à frente. Quando enfim a dupla chegou lá, ficou difícil encontrar um lugar nas arquibancadas de madeira. Alex já não se espantava mais em descobrir que tudo em Castelobruxo era cercado por árvores. O campo fora traçado de branco no chão irregular da clareira oval, e nas árvores ao redor foram montadas construções de madeira onde as torcidas se acomodavam, à sombra das folhas, para ver o jogo.

            Os garotos sentaram-se perto demais de um galho, e Mateus arrancou algumas folhas para poderem ver direito o que estava acontecendo lá embaixo. Os jogadores já estavam nas suas vassouras, quatorze ao redor do juiz, que apesar da distância eles conseguiram reconhecer como sendo o professor Mervir. Ele apitou e lançou a goles, as outras bolas já haviam sido liberadas. A torcida fez barulho quando os jogadores se puseram em movimento, principalmente o lado azul e amarelo da Goleeira. Mateus apontou para Sebastian, o apanhador do time, que fazia círculos ao redor do campo procurando pelo pomo, enquanto a goles ia sendo disputada violentamente pelos seis artilheiros.

            Não havia um narrador ou comentarista, mas um imenso placar de madeira tinha sido afixado em uma das extremidades do campo. Não demorou muito para Goleeira marcar os primeiros dez pontos. E então mais dez e mais dez, até Alex perceber que naquele ritmo eles venceriam mesmo que o outro time apanhasse o pomo. De fato, os Saltimbancos o apanharam, numa jogada de poucos segundos após avistarem-no, e o time da Goleeira não fora rápido o bastante para superar os 150 pontos. Todo o jogo durou quinze minutos.

            Os alunos segurando as bandeiras azul e amarela ficaram em silêncio, e eles somavam mais da metade presente. Mervir desceu com sua vassoura e reconheceu a captura.

            — Só me faltava essa, eu comprei uma blusa da Goleeira! — Eles se levantaram do banco. — Se eles não entrarem pra temporada desse ano eu não sei o que vou fazer com ela...

            Nesse momento uma garota gritou. Tudo aconteceu rapidamente: quando Alex procurou quem era a dona daquela voz, viu no centro do campo Sebastian subir como uma bala para o céu, voltando a descer em seguida, tão veloz que apenas um borrão era visível, até bater de cara no chão. Os pedaços da vassoura voaram longe e até mesmo Mervir deu um grito. Os jogadores se reuniram ao redor dele, Mateus arregalara os olhos e fizeram um silêncio cortante até Mervir levantar-se de perto do corpo, dizendo:

            — Está vivo!

            Retornaram ao castelo como em cortejo fúnebre. Mervir trazia um Sebastian desacordado, flutuando a dois metros do chão, com os braços e pernas pendendo. Todo o resto vinha atrás, a vitória dos Saltimbancos completamente esquecida. Os alunos fizeram quase que um cordão ao redor dos jogadores, queriam saber com detalhes o que tinha acontecido, mas nenhum deles parecia saber ao certo. O fato era que Alex não deixara aquilo passar despercebido. Foi o primeiro a associar:

            — Primeiro a-garota-que-se-jogou-das-escadas, e agora o Sebastian... O que está acontecendo nessa escola?

            — Não sei, cara — respondeu Mateus. — Só sei que por pouco não perdemos um ótimo apanhador. Não me olhe assim, eu sei que Quadribol não é tudo; ainda bem que ele está vivo...

            — Eles se conhecem?

            — Quem? A suicida e o Sebastian? Não sei, provavelmente não. — Mateus enfiou a bandeira no bolso. — Não vem ao caso agora. Você viu o estado da cara dele?

            Alex não quis ver. Ouviu a reação das pessoas que chegaram perto o bastante de Sebastian, e não gostou nada. Só de ver o sangue no chão no local onde o apanhador tinha caído já fora o suficiente para embrulhar o estômago. Não conseguiu deixar de pensar no quanto aquilo ia soar terrível caso seu pai aparecesse ali para buscá-lo. Quando entraram no castelo, o acidentado fora levado direto para a enfermaria, enquanto Alex e Mateus foram direto para o dormitório.

            Fizeram o caminho que estavam acostumados e, na frente da grande porta preta que dava entrada ao dormitório de Veracosta, eles encontraram Nicolás sorridente. Assim que os dois se aproximaram, o argentino tirou algo de cor marrom do bolso e jogou na direção de Alex. Ele o apanhou a tempo, e trouxe para perto do rosto a fim de examinar.

            — O que é isso? — perguntou.

            — Goma — respondeu Nicolás, tirando mais um chiclete e atirando para Mateus. — Yo consegui, no graças a usted.

            — Que bom... então você não precisava de ajuda, afinal de contas.

            Mateus começou a mascar o chiclete, fazendo careta com o sabor doce.

            — Cera de abejas y un tanto de azúcares— ele disse. Depois para Alex: — Na verdade, yo tive ajuda sí. Da hermosa Sofia.

            Pela primeira vez em sua vida Alex sentira algo parecido com um suor frio descer a espinha e congelar seus músculos: ciúmes.


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