Castelobruxo escrita por Vilela


Capítulo 10
Capítulo nove - Visita à biblioteca




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            — Passa la pelota! — gritou Nicolás, correndo na água um tanto desajeitado. Seu cabelo estava molhado e respingava enquanto ele corria.

            Alex o ignorou completamente, segurando firme a bola de água e indo em direção da marcação do time adversário. Um jogador apareceu do nada e por mais que Alex tivesse tentado fugir, era impossível. O braço do garoto prendeu Alex pela cintura e ele foi à água, afundando de imediato. Voltou à superfície com a franja na testa; tirou-a dos olhos.

            — Ei, yo teria conseguido! — repreendeu Nicolás.

            Alex não tinha dúvidas. Nicolás naquela jogada assumira um papel que em Dorteaqua era chamado de ás, quando não há jogador adversário algum o marcando. Porém, Alex não sentira necessidade de passar a bola para ele. Primeiro porque sabia que ele jogava melhor do que o colega argentino, e segundo porque ainda estava com raiva.

            Nicolás ofereceu a mão para Alex se levantar. Já de pé, eles voltaram para a formação inicial. Mateus estava esperando eles já na linha, carrancudo. Não disse nada a Alex, mas seu olhar era mais do que suficiente. Estavam perdendo de três pontos de diferença para um time que era também iniciante e não possuía um jogador tão bom quanto Mateus. Outra jogada começou e Mateus não passou a primeira bola para Alex. Fez a jogada com Nicolás, mas também não tendo sucesso.

            — Merda! — Mateus chutou a água. — Desse jeito eu não vou conseguir entrar em nenhum time.

            Eles não responderam. Alex não sabia dizer por que sentia tanta raiva de Nicolás. O argentino era seu amigo, assim como Sofia; mas os dois juntos eram outra história. Quando entraram no dormitório naquela noite após o jogo de Quadribol, Nicolás primeiro escutara sobre o incidente com Sebastian, depois contara como enfim conseguira todos os ingredientes da sua receita de chiclete.

            Ele já tinha desistido do seu plano quando, passando pelo jardim principal, encontrou Sofia. A garota estava lendo sentada na arquibancada e ele não pensou duas vezes, pediu que ela o ajudasse. Segundo Nicolás, ela não oferecera nenhuma recusa. Entraram na cozinha, Nicolás impedindo que as vespas os picassem enquanto ela enchia os bolsos e uma sacola. Assim que saíram para o refeitório, a cozinheira já estava lá.

            — Eles até nos disseram gracias! — riu Nicolás, contando que todo mundo achou que eles tinham ajudado a exterminar os insetos.

            Alex passara aquele tempo todo escutando calado, ainda remoendo a ideia de Nicolás e Sofia juntos. Aquilo, claro, não significava nada. Ele ainda tinha um motivo para estar com ela, talvez até melhor do que o que ela e Nicolás tiveram naquele dia. No entanto, ele descobriu que a aventura na cozinha fora o início de uma amizade para os dois. E ele só fora perceber isso numa aula de poções, quando os dois se sentaram lado a lado e não se incomodaram em falar português. Alex não tinha aprendido o suficiente para entender, e isso o deixou ainda mais nervoso. Pouco depois ele também descobriu que os dois tinham tomado café da manhã juntos um dia desses, e a pajuante às vezes deixava o seu lado do refeitório para sentar-se na mesa deles, ao lado de Nicolás. Até Amadeus fizera um comentário sobre os dois, algo como eles estarem de namoro, o que Alex fez força para não escutar.

            Depois disso ficou difícil disfarçar o seu descontentamento. Mateus era muito desligado para perceber, mas Alex tinha evitado ficar perto de Nicolás o máximo possível. No dormitório ele fingia que estava dormindo sempre que estava sozinho com Nicolás, e nas aulas ele procurava fazer dupla apenas com Mateus, e não revezar como era costumeiro. As partidas de Dorteaqua nos sábados eram os únicos momentos em que isso não era possível de forma alguma, e talvez por isso eles estivessem perdendo daquele jeito.

            O gosto da água do Rio Negro não era bom, e Alex estalou a língua antes de iniciarem outra jogada. Aquela modalidade do jogo só terminava quando o time vencedor abrisse uma vantagem de cinco pontos após os dez primeiros. Quando perderam o próximo ponto também, a partida estava encerrada. Mateus atirou a bola de água longe rio acima, e foi pisando duro até o deque. Passou por cima de umas garotas que nadavam por lazer e subiu na construção de madeira, Nicolás indo bem atrás dele. Alex não os seguiu de imediato, queria que eles dessem uma distância boa para ele poder se trocar sozinho. Mas descobriu que isso não ia ser possível.

            Lá na frente ele enxergou Sofia. Ela estava subindo as escadas do deque e tinha no ombro uma enorme bolsa. Sem pensar duas vezes, Alex correra ao seu encontro, seus pés apenas raspando na água. Subiu no deque, porém não fora rápido o suficiente. Nicolás e Mateus já estavam de conversa com a pajuante.

            — Hola — ela disse para Alex quando ele chegou interrompendo a conversa, ainda sem camisa e todo molhado.

            — Oi — ele respondeu, ofegante.

            — A gente perdeu de novo — contou Mateus. — Se vocês dois não melhorarem eu vou ter que arranjar outros jogares. Uns de verdade.

            Mateus se retirou e ficaram os três parados. Alex pensou que então ele devia ser o próximo, mas não o fez. Para sua imensa alegria, Sofia estava ali por causa dele.

            — Trouxe as anotações — ela disse. Tirou a alça da bolsa do ombro, mostrando lá dentro vários cadernos e livros. Alex sorriu.

            — Bueno, me voy — disse Nicolás, saindo do deque.

            Foram se sentar num banco embaixo de uma árvore ali perto, onde Sofia espalhou o conteúdo da bolsa. Alex se enxugou e sentou ao lado dela. Foi com uma sensação de conquista que eles estudaram naquela tarde. Sofia estava sempre satisfeita em ensinar para Alex sobre herbologia, pois ela mesma aprendia dessa forma e já praticava para quando se tornasse professora. Ela mostrou o livro que tinham acabado de iniciar em herbologia aplicada, sobre linguagem das plantas, e Alex ficou verdadeiramente interessado.

            Havia naquele livro pelo menos a descrição de cinco línguas vegetais, e outras tantas formas de se comunicar. Ainda estavam no primeiro capítulo, segundo Sofia, e por enquanto estavam aprendendo a reconhecer as posições dos cipós que indicavam perigo, amor e morte. Era mais complexo do que Alex imaginara, e muito, mas muito mais interessante do que aprender sobre as articulações das aranhas-esconde-esconde. Ele queria muito que os totens tivessem escolhido pajuante para ele.

            Estavam estudando sobre os sons que alguns ipês cantores faziam durante o inverno quando o assunto virou para o lado pessoal, sem que eles percebessem. Alex contou de sua vida, de como era mudar sempre que o pai precisava fazer outro tipo de trabalho dentro do Brasil. Contou dos ipês que ele vira nos lugares onde passara, o que fizera Sofia ficar encantada, pois ela mesma ainda não tinha visto um com os próprios olhos. Falou também dos copos-de-leite que a mãe cultivava num vaso; essa era a flor preferida da garota. Foi quando se lembrou dos sonhos que vinha tendo há meses.

            — Son os mesmos? — Sofia quis saber.

            — Sim — respondeu Alex. — Sempre a mesma coisa, perdido na floresta. E agora eu passei a sonhar com copos-de-leite também, por algum motivo eu sei que essa é a única maneira de sobreviver ao que está atrás de mim.

            — Como la leyenda!

            — O quê?

            — La leyenda, el mito!

            Alex continuou com uma expressão confusa, então Sofia explicou.

            — És una tradição oral, el cazador. Eu esqueci o nome da leyenda, pero é sobre usar um copo-de-leche na roupa para espantar el cazador de almas. Você não conhece?

            Alex fez que não com a cabeça. Sofia pareceu espantada. A lenda do caçador de almas era bem famosa de onde ela vinha, e era comum os bruxos mais velhos dizerem para as crianças tomarem cuidado sempre que entrarem na floresta. Era tão comum que em alguns casamentos no povoado dela os homens ainda usavam um copo-de-leite preso à lapela. Ela só não conseguia se lembrar o nome correto da lenda, muito menos a história de verdade.

            O garoto crescera ouvindo muitas histórias, seu povo mesmo era famoso pelo folclore e tradição rica. Porém, nunca ouvira falar em uma lenda desse tipo. Apesar de não ter duvidado da veracidade da história, Sofia o acusou de não acreditar nela. Sorrindo, ela disse que um dia eles dariam um jeito de procurar na biblioteca sobre o tal mito. Quando voltaram para o castelo e se despediram em um dos corredores, Alex se sentiu como se estivesse flutuando.

            Comiam biscoito com leite no dormitório de veracosta quando o garoto do primeiro ano se aproximou.

            — Quanto custa? — ele perguntou para Nicolás, que levantou três dedos em resposta.

            O garoto largou três moedas furadas de prata em cima da mesa deles. Nicolás pegou-as e enfiou no bolso. Tirou de lá um embrulho pequeno e passou para o garoto.

            — Gracias — ele disse, se afastando.

            — Desde quando você começou a vender chiclete? — Alex perguntou.

            — Ontem pela mañana.

            Ele mesmo tinha feito os embrulhos. O primeiro a comprar um na mão dele fora Amadeus, que passou adiante e fez o comércio. A verdade era que o chiclete de Nicolás não era para ser saboreado como se esperava de um doce qualquer. Ele fizera adaptações na segunda receita, e o chiclete ganhara uma propriedade que era difícil não gostar: tirava o cansaço completamente. Alex e Mateus ainda não tinham provado desse novo chiclete, pois estavam com medo, mas alguns alunos diziam que era a melhor coisa. Não camuflava o sono, como a maioria das poções, mas sim o eliminava por completo; pelo menos até aquele momento, pois os efeitos colaterais ainda não tinham sido noticiados. Nicolás não experimentara efeito algum, entretanto. Ele dizia que era por causa do seu baixo teor de açúcar.

            A parte boa é que, depois disso, ele não precisou mais ter de roubar nada. Estava inserido no comércio da escola, fazendo trocas e vendas que Mateus e Alex custavam a entender. Mais tarde, debaixo da sua cama ficaria tão entulhada de caixas que o colchão ficaria levemente estufado em algumas partes.

            Alex tinha colocado outro biscoito na boca quando outro garoto se aproximou, dessa bem mais velho.

            — Você se chama Alex? Tem uma pajuante te chamando lá fora.

            Não era proibido que pajuantes ou veracostas frequentassem os dormitórios uns dos outros, mas por respeito e tradição eles não faziam isso. Foi por isso que Sofia mandou chamá-lo ao invés de adentrar o salão. Era uma quarta-feira à noite, e Alex não fazia ideia do porquê de ela estar ali.

            — Consegui — ela disse, mostrando para ele um papel retangular pequeno. — A passagem.

            Escrito em tinta vermelha, Alex leu: Eu, prof. Diogo Mervir, autorizo a utilização da biblioteca fora do horário permitido para fins de pesquisa acadêmica sob minha condução.

            — Ah! — fez Alex, surpreso. Não tinha se esquecido nem por um momento que tinham combinado de ir à biblioteca juntos, mas não achava que Sofia ainda lembrasse.

            — Eu perguntei sobre a lenda, e ele não conhecia también. Por isso autorizou a pesquisa! Vamos.

            Sem pensar duas vezes, Alex seguiu a garota para a parte subterrânea do castelo. Entraram na biblioteca e acharam as três portas de acesso fechadas. Sofia estendeu o bilhete e a do meio se abriu instantaneamente. Entraram e procuraram uma escrivaninha. Para surpresa de Alex, havia muitos outros alunos ali, apesar da hora. A maioria parecia ser do último ano, e nenhum deles pareceu notar a presença dos dois. O silêncio era quase palpável.

            — Como vamos pesquisar? — perguntou Sofia, num sussurro.

            — Eu que te pergunto. Não sei nada sobre essa lenda.

            — Leyendas. Mitos. Latino — ela disse, depois de pensar um pouco, olhando para as estantes atrás deles. Demorou um pouco, mas do patamar do segundo piso da biblioteca vieram pelo menos vinte livros de todos os tamanhos, flutuando devagar. Fizeram duas pilhas irregulares na escrivaninha. — Manos a la obra!

            Alex pegou o primeiro livro da pilha mais perto dele e abriu na primeira página. Suspirou, estava tudo em espanhol. Não um espanhol fácil que ele pudesse ler, como o que eles tinham em alguns dos livros didáticos; aquele ali parecia ser arcaico, com palavras que ele não conseguia associar a nada no português. Desistiu desse livro e o colocou na pilha de Sofia. Pegou o próximo e leu o título Mitos y Leyendas Patagónicos. Largou esse também, pois sabia que a Patagônia estava mais ao sul do que o Peru, e não achou que a lenda de Sofia fosse regional de outro lugar. Com o terceiro livro ele teve mais sorte, eram contos gerais. Dessa forma ele passou a ler os primeiros parágrafos dos contos, apesar de serem 43.

            Sofia se perdera completamente. Começara a procurar por alguma coisa no índice do primeiro livro, e de lá acabou lendo outras coisas. Se divertiu bastante com a leitura, mas não achou nada que fosse importante para a lenda. Ficaram uma hora daquela forma, sem darem uma palavra um com o outro. Até que Alex não aguentou mais:

            — Não está nesse livro!

            Alguns rostos se viraram para ver quem tinha falado naquela altura.

            — Não tem nenhum peruano aqui em Castelobruxo que a gente possa perguntar? — ele disse, dessa vez sussurrando.

            — Não — admitiu Sofia. — Eu tentei minha amiga. Parece que essa leyenda só é famosa em minha vila.

            — E se a gente perguntar para um dos bibliotecários? Talvez eles saibam...

            — É una boa ideia.

            Eles foram até a área da biblioteca que não era tão bem iluminada, onde as pessoas podiam falar à vontade e ficavam as três mesas dos bibliotecários. Foram na primeira da esquerda, a única vazia naquele momento, e sentara-se nas cadeiras em frente. A bruxa que os atendeu fora muito educada, era nova ali e não tinha muita experiência, mas concordou em ajudá-los. Fez vários feitiços de localização usando as palavras que Sofia dizia que com certeza estava na história, mas por fim desistiu. Parecia que, se havia algum registro de tal lenda, não encontrariam esse livro na biblioteca. Ou então ele estava emprestado.

            — E tem como fazer um feitiço de busca nos livros emprestados? — perguntou Alex.

            — Seria muito rude — respondeu a bibliotecária. — Mas se não contarem para ninguém, posso mostrar para vocês os títulos dos livros que não estão aqui nesse momento.

            Era melhor do que nada. Alex se perguntou se alguma coisa naquela lenda poderia ajudá-lo a entender seus pesadelos, ou se era apenas por diversão que estavam tendo todo aquele trabalho. O fato era que assim que pegou a lista, Sofia achou o que queria.

            — Aqui está! Ensayos sobre El Tunchi! El Tunchi, agora me lembro, esse é o nome da lenda.

            Alex correu o olho na lista e viu o nome de quem tinha tomado aquele livro emprestado: João Leite. Na frente do nome dele entre parênteses estava escrito Beauxbatons. Foi somente várias horas depois, quando já estava preparado para dormir, que se lembrou onde tinha ouvido aquele nome tão familiar. João era o garoto português que Amadeus desafiara para um duelo tempos atrás.

            No dia seguinte Alex encontrou João sentado no refeitório, pois não o encontrou entre os alunos de Beauxbatons que ficavam com os veracostas no dormitório. Sentou-se à mesa dele e o cumprimentou.

            — Aquele gajo o mandou? — perguntou João, mas não parecia nem um pouco interessado na resposta.

            — Amadeus? Não, não. Estou aqui porque fiquei sabendo que você pegou emprestado um livro na biblioteca.

            — Um? Muitos, na verdade — ele bebericou o café.

            — Eu queria saber quando você vai terminar com o El Tunchi.

            O loiro levantou os olhos da xícara.

            — Já terminei. Por quê? Desejas tê-lo?

            — Sim... curiosidade apenas, não conheço muito sobre a lenda.

            — Muito bem. Onde tu ficas? Posso passar para entregá-lo.

            — Não seria uma boa ideia — disse Alex. Ele imaginou João entrando no dormitório de veracosta e dando de cara com Amadeus.

            — Nos encontramos no jardim principal depois das aulas então. Levarei o livro. E tu te aproveitas para me contar dos pontos fracos do teu amigo, a lua cheia se aproxima e eu preciso vencê-lo.

            Alex disse que sim, omitindo a parte de que não conhecia os pontos fracos de Amadeus. Saiu dali às pressas para dizer para Sofia que enfim tinha encontrado o livro que eles passaram tempos procurando. Parou de andar apressando na metade do refeitório. Tentou se acalmar e refez o passo normal. Estava pensando demais nela.


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