Pobres almas desafortunadas escrita por Jude Melody


Capítulo 19
Arco 2 - Parte 14




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A umidade nunca fora tão desagradável. Talvez não exista forma mais eficaz de destruir a sanidade de um homem do que afastá-lo da luz e do mundo. Eu passava os dias sentado no banco de pedra, ouvindo os passos e as tosses dos guardas. Mantinha os olhos fechados na maior parte do tempo, mas a própria noção de tempo já me escapava. Há quantos dias estava detido no cárcere? O que acontecia lá fora? Eu não conseguia imaginar. A realidade fora tirada de mim.

Depois que lancei Hugo no mar, Henrique encarou-me por um longo minuto. Não tentei fugir. Poderia. Bastava saltar pela mureta e assumir minha verdadeira forma. Em vez disso, vi-me estendendo os punhos. E o capitão serenamente ordenou aos guardas que trouxessem um par de algemas. Prendeu-me os pulsos e me obrigou a marchar pela ponte, como um condenado que caminha sobre a prancha. Não olhei para trás. Porque olhar a torre seria admitir que fracassei com o garoto.

Onde ele estava? De todas as perguntas possíveis, essa era a única a roubar-me o sono. Pela primeira vez em dois anos, eu não pensava em Ariel. Pela primeira vez em meses, eu não pensava em Erika. Tentei de todas as formas expiar a culpa, mas era demais para meus ombros. Acho que é esse o peso da morte. Conheci-o ainda jovem. Mas por que dói mais agora se antes perdi minha mãe? Será resultado da culpa? Será por que sinto que fui eu quem o matei? Eu apertava os dedos entrecruzados. Eu o matei? Elliot conhecia todos os riscos e aceitou mesmo assim. Eu o matei? Ele não havia voltado. Se estivesse vivo, teria voltado...

— Parado aí, menino! Você não pode entrar aqui — gritou um guarda ao longe.

Eu o matei.

— Menino, você me ouviu?

— Saia da frente! — bradou uma voz esganiçada.

Os sons do golpe pareceram distantes e irreais, como se eu os ouvisse debaixo d’água. A prisão faz isso conosco. Eu estava em um mundo irreal. Um mundo em que Elliot estava morto.

— Detenham-no!

— Eu disse para sair da frente!

— Arre! Sua peste...

— Solte-me!

— Princesa Erika?!

— Corram, é a Princesa Erika!

— Deixem-me em paz!

Ouvi o corte no ar, e o guarda uivou de dor outra vez. Ainda estava imerso. Demorei a perceber. Erika?! Levantei-me de súbito e me recostei nas grades. A porta do corredor estava aberta e eu podia ver duas sombras. Uma delas era esguia. A outra, mais robusta.

— Princesa, deve retornar ao castelo imediatamente.

— Eu não vou! Tenho o direito de ver o Daren. Levem-me até ele agora!

— Princesa...

— Está tudo bem — disse uma voz mais grossa, que reconheci como a do superior dos carcereiros. — Tenho ordens do Capitão Henrique para deixá-la conversar com o criminoso.

— Ele não é criminoso!

Alguma coisa bateu na parede de pedra.

— Por favor, princesa, venha por aqui.

— Não! Eu fico com isto.

Afastei-me das grades ao ouvir os passos. Erika descia as escadas.

— Vossa Alteza tem dez minutos — avisou o superior antes de fechar a porta.

Erika resmungou baixinho enquanto seguia pelo corredor. Vi por sua sombra que ela olhava de cela em cela à minha procura. Logo surgiu diante de mim, vestindo roupas masculinas.

— Daren!

— Erika!

Ela largou a espada de madeira e segurou as grades. Aproximei-me dela. Queria mais do que tudo abraçá-la e ter certeza de que estava bem.

— Daren, o que fizeram com você? — ela perguntou, chorosa. — Isso é tão injusto! Como o Henrique pôde te prender?

— Eu joguei o tritão no mar na frente dele. Surpresa seria se me deixasse sair impune. Mas você está bem, Erika?

— Não importa! Ele não podia ter feito isso! — Ela me ignorou. — Está tudo uma loucura, Daren. Você não tem ideia! Meu pai está furioso. Furiosíssimo! Ele ordenou que você fosse enforcado, mas minha mãe se opôs. — Erika engoliu as lágrimas. — Henrique disse que havia dois tritões e que um deles morreu, e eu não estou entendendo nada!

— Ei, ei, acalme-se. — Toquei seus ombros. — Respire fundo e conte-me tudo o que aconteceu. Na ordem cronológica.

Ela limpou o rosto e assentiu.

— Naquela noite, depois que você jogou o tritão no mar, Henrique ordenou que eu ficasse em meu quarto. Eu não podia sair sequer para comer. Angela e Samantha me traziam as refeições e os livros. Elas sabiam tanto quando eu. Quando meus pais voltaram uma semana atrás, finalmente tive permissão para sair do quarto. Nós nos reunimos na Sala do Trono, e Henrique explicou o que você tinha feito. Acusou-o de Alta Traição. Daren, você tem ideia do quanto isso é sério? Meu pai exigiu sua execução imediata, mas minha mãe interveio, dizendo que ele não podia matar o homem que salvou sua filha!

Erika fez uma pausa, recuperando o fôlego.

— Foi quando o Henrique disse que havia outro tritão além do que você jogou no mar. Mas esse tritão estava morto. Ele foi encontrado morto na manhã do dia 31 de julho. Henrique guardou o corpo até meus pais voltarem e decidirem o que fazer. — Ela lambeu os lábios. — Meu pai queria que ele fosse dissecado. Se não podia mais ser o único rei do mundo com um tritão, que fosse o primeiro rei do mundo a desvendar a anatomia de um tritão. Eu protestei, Daren, protestei tanto, até minha garganta doer. Pensei que meu pai fosse me bater de tão furioso que ficou, mas minha mãe também estava furiosa, e eles brigaram feio! Nós duas queríamos uma cerimônia fúnebre, que o tritão recebesse as últimas honrarias de uma pessoa humana, mas meu pai achou um desperdício... Então, Henrique interveio, dizendo que talvez fosse mais seguro jogar o tritão no mar. Parece... parece que ele ficou com medo da magia das sereias desde aquela noite... Eu não sei. Ele é tão incoerente...

Ela balançou a cabeça, exausta. Toquei seu queixo.

— O aconteceu depois?

— Meu pai aceitou que o tritão fosse lançado ao mar, mas negou a possibilidade de qualquer honraria. Eu não tive permissão para entrar no navio. Assisti tudo de longe, da janela de meu quarto. Eles jogaram o pobrezinho no mar como se fosse lixo.

Suspirei.

— Sim... Isso é muito cruel. Há quanto tempo foi isso? Quanto tempo depois do incidente daquela noite?

— Treze dias. Eu contei cada um deles. Doeu, Daren. Doeu muito ficar todo esse tempo presa no castelo sem poder te ver, sem entender o que está acontecendo. Que história é essa de dois tritões? E por que o Elliot se transformou em um deles?

— Alguém viu isso? — perguntei com urgência.

Ela meneou a cabeça.

— Não. Apenas eu e você. E talvez Grimsby. Ele não lembra muito bem o que aconteceu, mas nós não temos conversado muito desde... — Ela balançou a cabeça com mais força. — Não, não é isso. Eu não vim aqui para isso! Daren, isso é muito sério! Meu pai quer vê-lo morto. Acha que é uma péssima influência para o reino e para mim. Ele exigiu sua execução. E o Henrique... — Erika estremeceu. — O Henrique...

Fechei os olhos.

— Quanto tempo eu tenho?

Ela ficou em silêncio por uma eternidade.

— Henrique pediu um julgamento.

— O que é isso?

— Ele sugeriu que você fosse levado ao júri.

— O que é o júri?

Ela sorriu. Apesar de tudo, ela sorriu. Mas era um sorriso triste.

— Você não entende mesmo o mundo humano, Daren? De onde você veio?  Julgamento pelo júri é um julgamento pelas pessoas comuns, pelo povo. Um acusador apresentará as provas, e o júri decidirá se você é culpado ou inocente.

Fiz uma careta.

— E isso é ruim?

— Você não entende? Tudo isso não passa de uma farsa! Foi um plano brilhante do Henrique para legitimar sua execução. Daren, seria bastante grave se meu pai ordenasse sua morte depois de você me salvar, ainda mais nesse contexto insano em que ninguém sabe exatamente o que aconteceu. A proposta do Henrique é fazer com que o júri decida no lugar do meu pai. Se o júri te condenar, Daren, ninguém poderá dizer que seu tratamento não foi justo, que você não teve chance de defesa. Você entende, Daren?

Encarei-a. Não, eu não entendia. O conceito humano de justiça sempre foi obscuro demais para mim. Lembrei-me de mainha e de como ela foi assassinada pelo Rei Tritão de forma tão fria e brutal. Aquela proposta do júri parecia diferente.

— Uma armadilha?

Ela assentiu.

— Assim, meu pai parecerá apenas uma vítima. E você será lembrado como um criminoso. Um criminoso que traiu seu rei. Daren... Isso é tão injusto... Isso é injusto demais! — Erika abaixou o rosto e deixou as lágrimas caírem. — Eu não quero que você morra, Daren! — gritou com a voz esganiçada. — Eu não quero! Você não merece isso! Por que tem de ser tudo tão injusto?!

Eu ouvi sua respiração ofegante. Vi seus dedos ficarem brancos de tanto apertar as barras de ferro. Até que eles se soltaram das grades e buscaram meu peito, entranhando-se no tecido de minha camisa.

— Eu te amo, Daren...

Meu rosto contorceu-se de dor. Apoiei as mãos em seus ombros, sentindo a dor prensar minha garganta, consumindo cada pedaço de minha alma. Uma dor que se alastrava e queimava quase tanto quanto os olhos de Erika quando estava enraivecida. Uma dor que destruía tudo, feita de um preço que eu jamais poderia pagar.

— Eu também te amo.

Abracei-a e permiti que ela chorasse em meu peito, desejando que a dor compartilhada fosse mais fácil de suportar. Mas ela soluçava e segurava minha camisa como uma criatura que usa todas as forças para sobreviver. Ela era eu quando criança.

— Erika, escute. É importante.

Afastei-a com delicadeza. Erika secou as lágrimas com as costas da mão.

— Aquele colar de concha que o Max puxou do pescoço do tritão ainda está com você?

— Sim. — Ela tirou o colar do bolso. — Eu não tinha visto até o Max me entregar. Desde então, eu guardei. Achei que seria importante.

— Fez muito bem. Mais alguém sabe sobre o colar?

— Só eu. Quis manter segredo. Tive medo de que tirassem o colar de mim. Eu... sei que é besteira, mas eu acreditava que, se mantivesse o colar comigo, conseguiria te encontrar de novo, Daren. Eu precisava... Desde que soube sobre o julgamento, eu precisava vir aqui te contar, porque ninguém mais faria isso. E hoje, depois do almoço, consegui escapar do quarto. Foi difícil, mas eu consegui.

— Você é uma garota bastante esperta. Tenho muito orgulho de você.

Ela sorriu. Um novo sorriso triste.

— Erika, mais uma pergunta. Você tem visto o Elliot?

O rosto dela embranqueceu.

— Não... Na verdade, não. Ele sumiu desde o incidente...

— Tem certeza? — segurei seu ombro. — Ninguém mais falou dele?

— Eu estou presa no castelo, Daren. Cativa em meu próprio quarto. Eu tenho permissão para sair nos horários de estudo, mas apenas isso. Não vejo Elliot desde aquela noite. Nem mesmo quando olho para a praia pela janela. Samantha comentou alguma coisa sobre ele estar doente...

— Então, ela o viu?

— Ai! Você está apertando demais, Daren. Sim, ela o viu de relance quando foi à cidade. Disse que ele estava sendo escoltado para casa por alguns guardas. Espero que ele esteja bem.

O garoto estava vivo! Pelos céus! O garoto estava vivo! Eu poderia jogar a cabeça para trás e gargalhar.

— Erika, escute... É importante... — Soltei seu ombro. — Quero que entregue este colar ao Elliot quando reencontrá-lo. Apenas entregue, está bem?

Toquei suas mãos delicadamente, fechando seus dedos sobre a concha.

— Apenas entregar?

— Sim. Ele saberá o que fazer.

Os olhos de Erika brilharam. Ela ainda tinha muitas perguntas. Mas um homem abriu a porta do corredor e disse:

— O tempo acabou, Vossa Alteza.

— Está bem. Está bem! Já vou!

Ele se afastou da porta, permitindo uma última despedida. Erika pegou a espada de madeira e me encarou com aqueles olhos azuis. Os olhos que queimavam.

— Eu vou escapar dessa. Prometo.

— Promete que promete?!

Promete que promete? De onde ela tira essas expressões?

— Prometo que prometo.

Erika exibiu um meio sorriso. Pôs-se na ponta dos pés e beijou meu rosto.

— Até logo, Daren.

Afastou-se a passos rápidos, balançando a espada de madeira. Não olhou para trás.

 

Eles me chamaram alguns dias depois. As celas ficavam no subterrâneo, em uma prisão longe do mar. Não havia janelas, e a única luz vinha das tochas. Eu não teria mantido a sanidade se não fosse por Erika. Desde que nos conhecemos, ela tinha esse poder de me abalar, de me tirar no chão. Eu estava lúcido quando vendaram meus olhos pela segunda vez, algemaram meus pulsos e me conduziram para fora das masmorras.

 

Eu ouvi os murmúrios. Um dos guardas retirou a venda, e a luminosidade da câmara feriu meus olhos. Contive um arfar de surpresa. Então, aquela era a aparência de um tribunal. Um salão enorme de teto elevado. Havia muitas cadeiras por todos os lados. No fundo, um homem com uma peruca ridícula conversava com um funcionário. Ele parecia ser importante. Estava sentado na cadeira mais alta.

À minha esquerda, um grupo de pessoas comuns aguardava com grande expectativa. Suspeitei que fosse o tal de júri. Estava à procura de minha cadeira, quando os guardas me puxaram pelo braço. Só então avistei a gaiola de metal. Conduziram-me para dentro dela e trancaram a porta com cadeado. Preso de novo. Sem direito a me sentar desta vez.

Corri os olhos pela câmara. Atrás de mim, havia um pequeno público. À minha direita, mais guardas e funcionários. Tentei relaxar. Se o que Erika havia me contado estava correto, eu não tinha muitas escolhas. Ficaria em silêncio por todo o julgamento. Que me condenassem! Já era mesmo hora de partir daquele reino. Eu pensaria em um plano. Quando tentassem me executar, eu fugiria para longe, mesmo que tivesse de assumir minha forma verdadeira. Era um plano simplório, por isso o deixaria como último recurso. Sorri. Apesar de toda a tensão do momento, peguei-me sorrindo. Imagine só a surpresa de Henrique quando visse meu eu real. Talvez o golpeasse algumas vezes antes de ir embora...

— Ordem. Ordem no tribunal — disse o homem de peruca, batendo um martelinho na mesa de madeira. Todos se calaram. — Eu, Juiz Albert, declaro aberta a sessão de julgamento do senhor Daren, acusado de Alta Traição por libertar o tritão capturado no dia 30 de junho do presente ano. Chamo à tribuna a acusação, representada pelo Capitão Henrique.

O quê?

— Obrigada, Vossa Excelência. — Henrique surgiu de um canto oculto e fez uma mesura. — É uma honra estar aqui esta tarde. Prometo desempenhar minha função com zelo e sensatez.

Seguiu-se um burburinho na plateia, e o juiz bateu o martelo de novo.

Não... Não era possível. Não bastava aquele cretino me denunciar ao Rei James. Henrique fazia questão de me acusar diante do júri. Ele queria ter o deleite de me ver condenado. Pois bem. Eu aceitaria seu desafio.


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