Pobres almas desafortunadas escrita por Jude Melody


Capítulo 20
Arco 2 - Parte 15




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— Iniciaremos com a leitura da denúncia. — O juiz colocou um par de óculos e ergueu um pergaminho. Limpou a garganta. — Na madrugada do dia 29 de julho do presente ano, o senhor Daren, doravante “acusado”, foi preso em flagrante logo após libertar o tritão mantido cativo por ordens do Rei James. O acusado fora conduzido pela Guarda Real até a ponte do castelo após capturar o tritão, que escapara misteriosamente da torre algumas horas mais cedo naquela mesma noite. O acusado encontrou-se com o senhor Henrique, Capitão da Guarda Real, e ambos conversaram brevemente sobre o destino da criatura. Em seguida, em ato premeditado, o acusado lançou o tritão ao mar por cima da mureta da ponte. Sua atitude contrariou ordens diretas do Capitão Henrique e desafiou as ordens do próprio rei. Restou, assim, caracterizada conduta que configura, em tese, o crime de Alta Traição à Coroa, punível com a pena de morte por enforcamento. Após ato de clemência da Rainha Helena, acatado pelo Rei James, o acusado recebeu o direito de ser julgado por seus iguais. — Ele abaixou o pergaminho. — Eis a denúncia. Passo a palavra à acusação.

— Obrigado, Meritíssimo. — Henrique fez uma mesura. — Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a presença de nossos ilustres jurados. Hoje, os senhores e as senhoras cumprem um papel de suma importância: o julgamento de um homem acusado do mais grave crime que alguém poderia cometer neste reino. Acredito que todos sentirão o peso da responsabilidade e decidirão de forma sensata e fundamentada. Neste Tribunal, não será feita nada mais, nada menos do que a mais límpida justiça.

Trinquei os dentes. Ele falara por menos de um minuto, e eu já sentia vontade de vomitar. Assustei-me quando olhou para mim.

— Senhor Daren, creio que compreenda a gravidade desta situação. Mas não se preocupe. Como eu disse, este Tribunal busca tão somente a justiça.

Justiça... Essa palavra não tem o menor sentido para mim...

— Em nome do sagrado direito de defesa, o senhor tem a oportunidade de oferecer sua versão dos fatos.

— Como disse? — grunhi.

Ele pareceu entediado.

— Seu depoimento, senhor Daren. A menos que prefira permanecer em silêncio.

— Meu depoimento? Muito bem. Se é o que deseja... — Virei-me para o júri. Alguns deles recuaram. — A denúncia é verdadeira. Eu joguei o tritão da torre. Do contrário, ele teria morrido.

Calei-me. Henrique arqueou as sobrancelhas.

— Só isso?

— Sim. Não tenho mais nada a declarar.

Nós dois sabíamos que seria inútil eu tentar me defender. Henrique avaliou-me com seus olhos de tubarão e assentiu brevemente.

— Muito bem. Prosseguiremos com o depoimento da primeira testemunha. — Ele deu alguns passos para frente. — Eu mesmo.

Revirei os olhos.

— Por favor, prossiga, Capitão Henrique — pediu o juiz.

Henrique aproximou-se da tribuna no meio do salão, ficando de costas para mim.

— Na madrugada do dia 29 de julho, eu me preparava para dormir após a leitura de um belíssimo romance quando ouvi gritos vindos dos corredores e imediatamente deixei meus aposentos. Encontrei a senhorita Angela aos prantos, gritando algo ininteligível sobre o tritão. Conversei com os guardas, e eles me explicaram que o tritão havia escapado. Ordenei-lhes que vasculhassem todo o castelo. Enquanto isso, eu retornaria à torre para investigar possíveis explicações para a fuga. Qual não foi minha surpresa ao encontrar o tritão na piscina, mastigando contente algumas espinhas de peixe?

Ele fez uma pausa dramática.

— Naquele momento, acreditei que tudo não passara de um terrível engano. Contudo, quando me retirava da torre, deparei-me com o senhor Daren na ponte, e ele segurava em seus braços um tritão idêntico ao que estava na piscina.

O júri ofegou de surpresa. Algumas mulheres levaram a mão ao peito.

— Nós conversamos sobre aquele curioso fenômeno, especulando o que poderia ter acontecido. Recordei-me de algumas palavras do senhor Daren, proferidas no dia em que o tritão fora capturado. A criatura não é capaz de sobreviver fora d’água por muito tempo. Sugeri que a colocássemos na piscina, junto com o outro tritão — e depois decidiríamos o que fazer quanto aos dois. Virei-me, acreditando que o senhor Daren me seguiria. Porém, ele girou o corpo em um átimo e lançou o segundo tritão no mar. É claro que, depois desse fato, eu o prendi em flagrante.

Seguiu-se uma comoção, tanto no júri, quanto na plateia. O juiz bateu o martelo.

— Ordem! Ordem no tribunal.

— Este é meu testemunho, Meritíssimo, nobres jurados e juradas.

— Obrigado, Capitão Henrique. Por favor, prossiga a acusação.

— Mas é claro. — Ele se afastou da tribuna, sempre mantendo sua pose impecável. — A acusação gostaria de chamar sua segunda testemunha: o senhor Grimsby.

Grimsby! Ele testemunharia a meu favor. Ao menos, era o que eu acreditava. Ouvi as portas se abrirem atrás de mim e vi o conselheiro real caminhar calmamente até a tribuna. Ele não me dirigiu olhares.

— Bom-dia, senhor Grimsby — cumprimentou Henrique. — Obrigado por sua presença.

— Bom-dia, Capitão Henrique. Bom-dia, nobres jurados. Bom-dia, Meritíssimo. — Grimsby fez uma mesura para cada um deles.

— Senhor Grimsby, devo-lhe informar que o falso testemunho configura crime punível com a pena de prisão — disse o juiz. — O senhor jura dizer a verdade, apenas a verdade e nada mais do que a verdade?

— Juro pela minha honra, Meritíssimo.

— Informo, ainda, que o senhor deve se ater apenas às suas percepções dos fatos, abstendo-se de emitir juízos de valor.

— Sim, eu me aterei aos fatos e apenas aos fatos.

— Muito bem. A acusação pode prosseguir.

— Senhor Grimsby. — Henrique aproximou-se da tribuna. — Há quanto tempo atua como conselheiro real?

— Cerca de vinte e cinco anos — respondeu Grimsby, mantendo a pose séria.

— E há quanto tempo conhece o acusado?

— Desde que ele salvou um dos capitães da Frota Real há mais ou menos seis meses.

— O senhor poderia nos relatar o que testemunhou na data dos fatos?

— Perfeitamente.

Grimsby meditou por alguns segundos.

— Eu estava na biblioteca do castelo, acompanhando a Princesa Erika em seus estudos. Distraí-me por um milésimo segundo, e ela saiu do cômodo. Eu fui imediatamente atrás dela e nós tivemos uma pequena... discussão. O senhor Daren e o menino Elliot estavam por perto. Acredito que tivessem acabado de deixar a torre do tritão após lhe servirem o jantar. De repente, o menino virou o tritão. Eu tentei gritar, é claro. Acho que ele me atingiu de alguma forma, pois desmaiei...

Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Grimsby mentia descaradamente! Seu semblante era sério, mas, escondido dos olhos dos jurados e de Henrique, ele esfregava os dedos como sempre fazia quando estava nervoso. Trinquei os dentes. Lá no fundo, eu até compreendia. Grimsby sempre fora um covarde, mas não queria admitir diante do júri que desmaiara de puro medo, deixando a princesa sozinha. Bem, não parecia ser uma mentira capaz de me prejudicar...

— E o que aconteceu depois disso?

— Eu não sei. Quando acordei, estava em meus aposentos. É claro que minha primeira preocupação foi saber se a Princesa Erika estava sã e salva. Felizmente, a senhoria Angela logo me informou que Sua Alteza passava bem.

— Compreendo. — Henrique assentiu. — Diga, senhor Grimsby, qual a sua impressão quanto à personalidade do acusado?

— A personalidade?

— Sim. Seu caráter.

— Ah, sim. Claro.

O quê? O que acontecera com a história de “se ater aos fatos e se abster de emitir juízos de valor”? Quer dizer que ela não valia quanto a impressões sobre mim? Olhei para o juiz, perguntando-me se deveria protestar, mas ele não fez qualquer menção de pegar o martelo. Droga, se Erika estivesse ali, poderia me explicar o que estava acontecendo.

— O senhor Daren parece ser um homem bastante íntegro e sensato. Além disso, goza — ou gozava — da inteira confiança do rei. Ele salvou a vida da Princesa Erika e manteve constante vigília sobre ela ao longo desses seis meses. Eu me sinto seguro quando a princesa está sob seus cuidados, pois sei que o senhor Daren a protegerá com a própria vida.

Meu queixo quase caiu. Nunca imaginaria ouvir um discurso tão elogioso de Grimsby. E ele não esfregava os dedos desta vez.

— Entendo. — Henrique pareceu decepcionado. — Agradeço sua cooperação, senhor Grimsby. Pode se retirar.

— Obrigado.

Grimsby fez uma mesura e saiu da câmara sem olhar para mim. A plateia agitou-se um pouco.

— Silêncio! Silêncio no tribunal — ordenou o juiz, batendo o maldito martelo.

— A acusação gostaria de chamar sua segunda testemunha — disse Henrique quando o público se acalmou. — A senhorita Angela.

As portas atrás de mim abriram-se de novo, e uma jovem de cabelos loiros adentrou o salão. Reconheci-a como a criada que chamara os guardas. Seu rosto estava virado para baixo quando se posicionou de frente à tribuna.

— Bom-dia, senhorita Angela.

— Bom-dia, Capitão Henrique. Jurados. Meritíssimo.

— Senhorita Angela — chamou o juiz —, devo-lhe informar que o falso testemunho configura crime punível com a pena de prisão. A senhorita jura dizer a verdade, apenas a verdade e nada mais do que a verdade?

— Eu juro, Meritíssimo.

— Informo, ainda, que a senhorita deve se ater apenas às suas percepções dos fatos, abstendo-se de emitir juízos de valor.

— Certo.

— Senhorita Angela, poderia, por favor, erguer o rosto? — pediu Henrique.

Ela obedeceu, temerosa.

— Por favor, acalme-se. Não há por que ter medo. Apenas responda às perguntas da forma mais sincera que puder.

— Está bem.

— Há quanto tempo a senhorita trabalha no castelo?

— Três, quatro... — Ela contou nos dedos. — Cinco anos. Completarei cinco anos em novembro.

— E qual a sua função?

— Sou a dama de companhia da Princesa Erika. Eu a auxilio nas pequenas tarefas diárias e a acompanho em suas caminhadas pelo castelo e pela cidade. Vim substituir a senhora Agatha, que faleceu um tempo atrás.

— Perfeito. Senhorita Angela, poderia nos relatar o que presenciou na data dos fatos?

— Bem... Eu e Samantha, a outra dama de companhia, acompanhávamos a Princesa Erika a seus aposentos após o jantar. No caminho, encontramos o senhor Daren e um marinheiro... acho que o nome dele é Elliot... Os dois levavam um balde de peixes para o tritão. Nesse momento, o senhor Grimsby apareceu, e a Princesa Erika pediu permissão para estudar mais algumas horas na biblioteca. O senhor Grimsby ofereceu-se para cuidar dela e pediu que eu e Samantha descansássemos um pouco.

Angela fez uma pausa, prensando os lábios. Olhou ao redor, passando de relance por mim.

— Senhorita?

— Perdoe-me, Capitão. Estou nervosa. Bem, eu e Samantha descansamos até as onze e meia da noite. Depois disso, nos dirigimos à biblioteca para acompanhar a Princesa Erika a seus aposentos. Porém, o senhor Grimsby nos informou que ela havia... escapado. Samantha sugeriu que nos separássemos para procurar a princesa pelo castelo. Então... eu ouvi gritos e saí correndo.

— Gritos? Gritos de quem? — perguntou Henrique.

— De Grimsby.

— Ele estava em perigo?

— Não sei. Logo em seguida, a princesa gritou também. Eu me dirigi ao salão em que eles estavam e vi... a criatura. — Angela estremeceu.

— Que criatura?

— O tritão. Ele olhava de forma hostil para a princesa. Eu entrei em pânico. Comecei a correr e a chamar pelos guardas. Deixei a princesa para trás. Eu... — Ela soluçou. — Eu sou uma vergonha!

Seguiu-se uma comoção entre a plateia e os jurados enquanto Angela limpava as lágrimas. Eu senti um peso em meu peito. Durante todo esse tempo, nunca me preocupei muito com as criadas. Para mim, era quase como se fossem bibelôs que acompanhavam Erika por todos os cantos. Eu sequer sabia o nome daquela jovem até o julgamento. E ela parecia profundamente abalada por ter fugido do tritão. Henrique puxou um lenço da lapela e o estendeu para Angela.

— O-obrigada.

— Por favor, acalme-se. A senhorita é apenas uma testemunha. Não está sendo julgada.

— Desculpe-me. — Ela assuou o nariz. Fez menção de devolver o lenço, mas Henrique recusou educadamente.

— Por favor, fique com ele. Continue seu testemunho, senhorita Angela.

— Estou bem. Estou bem. — Ela respirou fundo. — Eu vi o tritão e chamei os guardas. Estava apavorada! Um pouco mais tarde, Samantha me encontrou. Ela trazia a Princesa Erika consigo. Nós três e o cachorro nos dirigimos aos aposentos da princesa e passamos a noite lá. Ela chorou até adormecer.

— Compreendo. Mais algum detalhe, senhorita Angela?

Ela meneou a cabeça.

— Não. Isso é tudo o que sei.

— Perfeito. Senhorita Angela, poderia nos dizer qual a sua impressão quanto à personalidade do senhor Daren?

De novo essa pergunta?

— Perdão?

— O que a senhorita pensa dele? Em termos de caráter.

— Oh... — Ela apertou o lenço. — Eu... não sei dizer ao certo. Nunca conversamos. A princesa o admira muito...

— Eu não perguntei o que a Princesa Erika pensa do acusado. Eu perguntei o que a senhorita pensa. Poderia dos descrever sua percepção?

Ela mordeu o lábio. Acho que estava mais nervosa do que eu. Henrique decidiu ajudar.

— Há quanto tempo conhece o acusado?

— Desde que ele passou a morar no castelo há uns dois meses... Isso foi logo depois de ele salvar a Princesa Erika do naufrágio.

— E qual foi a sua percepção dele ao longo desses dois meses?

— Bem... O senhor Daren parece ser um homem gentil. A Princesa Erika fala muito dele, então minha percepção é inevitavelmente influenciada pela opinião dela. Mas, quando eu os observo de longe, o senhor Daren sempre parece muito carinhoso. Eu sei que, enquanto a Princesa Erika estiver ao lado dele, ela estará segura.

Henrique umedeceu os lábios.

— Compreendo. Obrigado, senhorita Angela. Está dispensada.

Ela fez uma mesura e se virou para ir embora. No caminho, esbarrou na estrutura de madeira que separava a plateia dos demais membros do tribunal e soltou um ganido baixinho. Ergueu o rosto, e seus olhos azuis encontravam os meus. Ainda estavam marejados, e eu senti uma grande compaixão por ela. Eu nunca atentara àquela moça, e ela proferira palavras que talvez salvassem a minha vida. Abaixei o rosto. Não queria constrangê-la...

— A acusação gostaria de chamar sua terceira testemunha. A senhorita Samantha.

Fechei os olhos. Aquela ladainha se repetiria mais uma vez. Ouvi exatamente os mesmos avisos do juiz, com as mesmíssimas palavras. Suspirei. Abri os olhos. Samantha era a outra dama de companhia. Um pouco mais alta que Angela, tinha cabelos negros curtos e olhos castanhos. Sua postura era severa.

— Senhorita Samantha, por gentileza, poderia nos informar há quanto tempo trabalha no castelo? — perguntou Henrique.

— Vinte e dois anos, senhor. Comecei quando tinha apenas sete. Aos dezoito, tornei-me dama de companhia da Princesa Erika, junto com a senhora Agatha, hoje falecida.

— Muito bem. Por favor, relate-nos o que presenciou na data dos fatos.

Ela assentiu.

— Eu e Angela descansávamos em nossos aposentos enquanto a Princesa Erika estudava com o senhor Grimsby na biblioteca. Por volta de onze e meia, nos levantamos para acompanhá-la até seu quarto. Contudo, o senhor Grimsby nos informou que a princesa havia escapado sorrateiramente para resgatar seu cachorro Max.

— Resgatar o cachorro? — Henrique franziu o cenho. — De quê?

— Max andara se comportando de forma muito inadequada após a partida do Rei James e da Rainha Helena. Corria pelo castelo, destruindo móveis e quase derrubando os funcionários. Por isso, o senhor Grimsby decidiu puni-lo, prendendo-o em um dos cômodos. A Princesa Erika não gostou nem um pouco e libertou Max por conta própria.

Henrique quase revirou os olhos. Se não estivesse no tribunal, certamente responderia: “típico da princesa”.

— Eu sugeri a Angela que nos separássemos para procurar a princesa com mais eficiência. Assim fizemos. Depois de alguns minutos, ouvi gritos.

— Gritos? De quem?

— Primeiro, gritos da Princesa Erika. Ela parecia discutir com alguém. Em seguida, ouvi o senhor Grimsby gritar que o tritão escapara. Logo depois, outro grito da princesa. Por fim, um grito de Angela, que chamava os guardas.

— E a senhorita foi em direção aos gritos?

— Certamente. Quando cheguei ao salão, encontrei o senhor Grimsby desmaiado, e a Princesa Erika horrorizada. O tritão estava caído e olhava todos de forma hostil. O senhor Daren pôs-se diante dele, protegendo a princesa. Ordenou que eu a levasse a seu quarto. Assim o fiz.

— O que aconteceu depois disso?

— Angela me encontrou, e nós três nos trancamos no quarto da Princesa Erika. Ela estava muito abalada e chorou em meus braços até adormecer. Max estava conosco e parecia assustado também.

— Compreendo. Mais alguma colocação?

Samantha meneou a cabeça.

— É tudo o que tenho a declarar.

Eu já sabia o que viria em seguida.

— Perfeito. Senhorita Samantha, poderia, por gentileza, nos informar sua percepção acerca da personalidade do acusado?

— Não tenho intimidade com o senhor Daren. Nos conhecemos há pouquíssimo tempo e quase não conversamos. Tudo o que sei sobre ele me foi dito pela Princesa Erika.

— Então, a senhorita não saberia dizer o que pensa de seu caráter?

Ela hesitou.

— O senhor Daren parece ser um homem bom. Como disse, não conversamos muito, mas eu o tenho observado de longe desde que surgiu no reino. Sempre o via cercado pelos marinheiros, todos rindo e se divertindo muito. Os homens o respeitam e sempre ouvem seus conselhos. Eu também notei que ele olha de forma muito carinhosa para a princesa...

Os olhos de tubarão brilharam.

— Carinhosa como?

— Como um guardião — ela respondeu sem titubear. — Um protetor. Um guarda-costas. Sei que, ao lado do senhor Daren, a Princesa Erika estará segura. Serei eternamente grata a ele por tê-la salvado após o naufrágio.

— Entendo... Muito bem, obrigado por seu testemunho, senhorita Samantha. Está dispensada.

Ela fez uma mesura e se retirou do salão. Diferente de Angela, não olhou para mim. Àquela altura, eu já estava bastante cansado, mas Henrique chamou mais uma testemunha: Nathaniel, o guarda que me escoltara até a ponte. Contive um suspiro ao ouvir pela quarta vez o mesmo discurso do juiz.

— Senhor Nathaniel — chamou Henrique —, poderia, por gentileza, nos contar o que presenciou na data dos fatos?

— Perfeitamente. — O guarda pôs as mãos sobre a tribuna. — Naquela noite, eu e meus companheiros patrulhávamos o castelo quando ouvimos os gritos de que o tritão havia escapado. Iniciamos a busca imediatamente. Logo chegou a meus ouvidos que, assim que encontrasse o fugitivo, deveria levá-lo até a torre. Ao virar um corredor, deparei-me com o senhor Daren, que segurava o tritão nos braços.  Meus companheiros ergueram as lanças, e o tritão ameaçou nos atacar, mas o senhor Daren o conteve. Decidimos que era melhor escoltá-lo até a torre.

— O que aconteceu depois disso? — inquiriu Henrique com a voz mansa. Senti a garganta apertar. Ele estivera esperando aquele momento.

— Eu vi o senhor capitão sair da torre. — Nathaniel gesticulou para Henrique. — Vi que conversava com Daren. Não pude ouvir o teor da conversa. De repente, o senhor Daren jogou o tritão no mar, ou ao menos foi o que me pareceu. Em seguida, eu e meus companheiros recebemos a ordem de prender o senhor Daren e conduzi-lo ao cárcere.

— Muito bem — disse o Capitão, e eu tenho certeza de que havia um meio sorriso no canto de seus lábios. — Mais uma pergunta: o que o senhor acha da personalidade do senhor Daren?

— Desde o princípio, acreditei que o senhor Daren era um homem inteligente e corajoso. Praticamente todos os guardas o respeitam muito desde que ele salvou o Capitão Sebastian. Mais ainda desde que salvou a Princesa Erika. Sinceramente, não sei o que se passou naquela noite na ponte, mas não acredito que o senhor Daren seja um traidor...

 O juiz bateu o martelo.

— Queira a testemunha abster-se de juízos de valor que cabem aos jurados.

— Perdão, Meritíssimo! — Nathaniel apressou-se em dizer. — Não foi minha intenção usurpar a função dos jurados. Reformulo meu depoimento. Acredito... acredito que o senhor Daren seja um bom homem. Nada mais a declarar.

Então, era isso o que significava o tal “juízo de valor”? Que as testemunhas não podiam opinar se acreditavam ou não em minha inocência? Por que Henrique as questionava sobre meu caráter? Estreitei os olhos. Eu não via outro motivo senão tentar encontrar percepções ruins... Percepções que me transformassem em um criminoso aos olhos dos jurados. Pois bem, se esse era o jogo dele, era um jogo interessante. Eu o desafiava a me vencer.

— Agradeço o seu testemunho, senhor Nathaniel. Está dispensado.

O guarda bateu continência e se retirou do salão. Senti o peso em meus ombros. Eu construíra uma reputação invejável nos últimos meses. Duvidava que Henrique pudesse destruí-la. Mas ele tinha os olhos de um predador. Eu não baixaria minha guarda.

— A acusação chama sua próxima testemunha. O guarda Edward.

Um jovem de cabelos negros adentrou a câmara. Vestia o uniforme da Guarda Real, assim como Nathaniel. Também prestou continência ao avistar Henrique. O juiz proferiu o discurso tedioso que eu já decorara.

— Jovem Edward, por gentileza, poderia nos relatar o que testemunhou na data dos fatos?

— Perfeitamente, Capitão. — Edward bateu outra continência. — Na noite dos fatos, eu e Leonard vigiávamos os portões dos jardins do castelo, seguindo as ordens do senhor. Por volta da meia-noite, o senhor Daren apareceu, acompanhado por um faxineiro, o Elliot. Ele pediu permissão para sair do castelo, e eu neguei. Depois disso, o senhor Daren e o Elliot retornaram ao castelo.

— O que aconteceu depois disso?

— Eu soube que houve uma tremenda confusão no castelo, senhor, mas não abandonei meu posto. Mais tarde, soube que o tritão havia fugido.

— Entendo. Edward, poderia me dizer se percebeu algo de diferente no jovem Elliot naquela noite?

Senti o sangue congelar. Edward fizera piadas diretas sobre o colar de concha que Hugo usava. Se ele o mencionasse na tribuna, isso poderia trazer sérios problemas para mim. Quanto esforço custaria até Edward — ou o próprio Henrique — ligar o colar de concha de Hugo ao colar que eu mesmo trazia ao pescoço? Eles poderiam suspeitar que havia uma ligação entre os colares... Então, eu seria um cúmplice... E a minha execução seria certa. Fitei a nuca de Edward, sentindo o suor escorrer por meu rosto. Ele coçou o queixo, pensativo.

— Não. Não reparei nada de diferente.

Quase suspirei de alívio.

— Tem certeza? — insistiu Henrique. — Não percebeu nada na aparência ou na atitude? Ainda que fosse uma mudança pequena?

Maldito! Ele queria mesmo me prejudicar! Vi seus olhos brilharem enquanto encarava Edward. O garoto coçou o queixo de novo, queimando os miolos para se lembrar de qualquer coisa fora do comum.

— Não, eu realmente não me lembro de nada.

Henrique suspirou.

— Muito bem. Obrigado, Edward. Está dispen...

— Ah! — O rosto de Edward iluminou-se. — Teve um detalhe, sim.

Meus ombros estavam duros. Meu corpo inteiro estava duro. Edward exibiu um sorriso constrangido.

— O Elliot... parecia mais agressivo do que o normal.

— Mais agressivo? — Henrique arqueou as sobrancelhas.

— É. Eu... meio que impliquei com ele por um motivo bobo... não lembro qual agora... O Elliot ficou furioso e tentou avançar para cima de mim, mas o senhor Daren o conteve. Os olhos do Elliot... estavam estranhos... Eu vi ali um ódio incomum... Deu um pouco de medo. Achei que ele pudesse me matar.

Edward coçou o pescoço e fitou Henrique como se esperasse uma bronca.

— Não que ele fosse conseguir, é claro. Sou mais forte do que aparento.

— Mais agressivo, não é... Diga-me, Edward, qual a sua percepção sobre o caráter do senhor Daren?

O rosto dele iluminou-se mais.

— O senhor Daren é um homem incrível! Forte, inteligente, corajoso, esperto... As mulheres são apaixonadas por ele! Eu quero ser exatamente igual a ele quando for mais velho. Eu o admiro muito!

— Entendo... — Herique crispou os lábios. — Obrigado, Edward. Pode se retirar.

Todo o peso havia desaparecido de meus ombros. A preocupação cedera espaço a um enorme sorriso de vitória. Eu estava eufórico! Derrotara Henrique em seu próprio jogo sem mover um músculo! Ele não conseguiria me condenar. Ele fracassara. Pelos céus, ele fracassara! E agora passaria o resto do julgamento remoendo seu fracasso, como um tubarão estúpido que viu sua presa escapar... Se o contexto não fosse tão sério, eu teria jogado a cabeça para trás e gargalhado.

— Muito bem. A acusação chama sua última testemunha.

Pode chamar. Depois dessa, você não conseguirá me vencer.

— Tragam-na — ordenou o juiz.

Virei o rosto para as portas da câmara. E qualquer vestígio de sorriso desapareceu de mim. Um Elliot assustado era conduzido pelo corredor entre a plateia. Seus olhos estavam arregalados de medo. Detiveram-se em demasia sobre mim.

— Seja bem-vindo ao tribunal, jovem Elliot — cumprimentou Henrique. — Por favor, acalma-se.

O garoto tremia da cabeça aos pés quando os guardas o deixaram diante da tribuna. Achei até que fosse cair. O juiz proferiu seu discurso, mas eu não estava ouvindo. Não via nada além de Elliot tremendo e olhando para o júri.

— Elliot? Elliot? — chamou Henrique. — Por favor, responda ao juiz.

Ele quase deu um pulo de susto. O juiz limpou a garganta.

— Vou repetir, menino. Você jura dizer a verdade, apenas a verdade e nada mais do que a verdade?

Elliot moveu os lábios, mas sua voz não saiu. Ele apertou a garganta e tentou falar de novo, mas era só silêncio.

— O menino é mudo ou retardado? — indagou o juiz, franzindo o cenho.

— Oh, creio saber o que houve, Meritíssimo — disse Henrique. — Os guardas me contaram que o garoto foi encontrado perambulando pela praia alguns dias atrás. Ele parecia desorientado e não conseguia falar. Acreditamos que tenha perdido a voz.

— Perdido a voz? — bradou o juiz. — De que adianta, então, inquiri-lo?

— Eu pensei, Meritíssimo, que poderíamos fazer perguntas simples de resposta “sim” ou “não”.

O juiz recostou-se na cadeira e alisou a barba, pensativo.

— Bom, esse seria um cenário bastante incomum. Contudo, não contraria as nossas leis ou costumes... Tem certeza de que o menino é uma testemunha relevante e confiável?

— Sim, Meritíssimo. Eu diria até essencial para a tese da acusação.

— Entendo. Neste caso, concedo permissão para interrogar o garoto — concluiu, batendo o martelo. — Jovem Elliot, jura dizer a verdade, apena a verdade e nada mais do que a verdade?

Elliot assentiu com vigor.

— Muito bem. Pode começar, Capitão Henrique.

— Bom-dia, Elliot. Por favor, responda às minhas perguntas balançando a cabeça. É verdade que você foi encontrado na praia na tarde do dia 12 de agosto?

Elliot fez que sim.

— Os pescadores o encontraram, não é mesmo? E você estava sem voz.

Ele fez que sim outra vez.

— Você estava com o senhor Daren quando o tritão se transformou dentro do castelo?

Elliot hesitou por quase um minuto. Olhou para o juiz, para os jurados, para o Henrique. Fez menção de olhar para mim, mas algo o deteve. Meneou a cabeça.

— Você estava com o senhor Daren quando ele pediu permissão ao guarda Edward para sair do castelo?

Ele meneou a cabeça de novo.

— Entendo...

Trinquei os dentes. Qual era o sentido de interrogar o garoto naquelas condições? O que Henrique estava tentando provar? Eu o encarei, tentando com todas as minhas forças descobrir algum plano perverso por baixo do semblante calmo.

— Conte-me, Elliot. Por acaso, o tritão lançou algum feitiço sobre você?

Os jurados arfaram de surpresa. A plateia desatou a conversar. Até os guardas trocaram olhares e meias palavras.

— Você ouviu isso?

— Um feitiço?

— Ele enfeitiçou o garoto?

— Tritões fazem isso?

— Pobrezinho!

— Isso é uma ameaça!

— Oh, meu Deus... Meu Deus...

— É por isso que ele está desorientado?

— Estou com medo, mamãe...

— Silêncio! Silêncio no tribunal! — ordenou o juiz, batendo o martelo.

O burburinho continuou. E foi aumentando cada vez mais, até consumir a câmara por inteiro.

— Silêncio! — bradou o juiz, batendo o martelo inúmeras vezes. — Silêncio no tribunal!

As pessoas se calaram aos poucos. A maioria ainda estava assustada.

— Capitão Henrique, explique sua pergunta.

— Eu estava apenas me indagando, Meritíssimo, se o motivo da desorientação e da falta da voz de Elliot não seria um feitiço do tritão.

— Tolice! Uma tremenda tolice!

— Precisamos considerar todas as possibilidades, Meritíssimo. — Henrique aproximou-se do juiz. — Além disso... nós não lidamos diretamente com o tritão. Ao contrário do jovem Elliot, que o alimentava e limpava a piscina quase diariamente.

O burburinho tentou se formar outra vez, mas o juiz se antecipou e bateu o martelo.

— Suas considerações são plausíveis... Muito bem, eu autorizo a pergunta.

— Irei repeti-la, então. Elliot, por acaso o tritão o enfeitiçou?

Elliot estremeceu visivelmente. Ele não tinha ideia do que responder. Abaixou a cabeça, arfando baixinho. Virou o rosto em minha direção. Eu fechei os olhos.

— Entendo... — murmurou Henrique. — Você sabe quando o feitiço foi realizado? — Uma pausa. — Muito bem. Mais uma pergunta: foi você quem saiu da torre com o senhor Daren na data dos fatos? — Uma pausa mais longa. — Entendo. Não tenho mais perguntas, Meritíssimo. O garoto está dispensado.

Abri os olhos. Elliot encarava Henrique com a mais profunda descrença, mas o capitão estava concentrado em alisar o bigode. Dois guardas aproximaram-se para guiá-lo até a porta, mas Elliot se desvencilhou e tentou dizer alguma coisa. Henrique ignorou. O juiz ignorou. Os guardas puxaram-no pelo braço. Elliot olhou para mim. Seus lábios moveram-se sem som, mas eu compreendi. O garoto pedia perdão.

Moleque... Quem deve pedir perdão sou eu.

— Declaro encerrada a sessão de julgamento do senhor Daren — anunciou o juiz. — Os jurados têm permissão de se dirigir à sala secreta para a discussão do veredito.

Os guardas abriram a gaiola de metal e venderam meus olhos. Deixei que me conduzissem de volta ao cárcere.

 

Nada destrói mais um homem do que a espera silenciosa pela execução. Eu não recebi visitas após o julgamento. Tampouco sabia quanto tempo se passara desde que deixara o tribunal. Ninguém se deu ao trabalho de me contar. Preso na cela escura e úmida, contentei-me em fitar o teto. A mente, vazia.

Eles me chamaram depois de uma eternidade. Vendaram meus olhos, algemaram meus pulsos e me conduziram para algum lugar. Eu só reconheci quando ouvi o som do martelo. Retiraram a venda. Eu estava preso na gaiola de novo. E as pessoas ao meu redor calavam-se.

— Ordem. Ordem no tribunal. — O juiz encarou-me. — Declaro aberta a segunda sessão de julgamento do senhor Daren, acusado do crime de Alta Traição à Coroa. Após nosso último encontro, o júri deliberou acerca da culpa ou inocência do réu e chegou a uma conclusão. Senhor Daren?

Sustentei seu olhar.

— O senhor está pronto para ouvir o veredito?


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Notas finais do capítulo

Gente, de todos os capítulos da segunda temporada, este, sem dúvida alguma, foi o que eu mais amei escrever! Espero que tenham gostado e me desculpem por ele ser um pouco (muito) longo; eu não queria quebrar o julgamento no meio para não perder o ritmo da inquirição das testemunhas. Nunca é de mais lembrar que vocês não devem levar essas cenas muito a sério, pois elas são apenas uma caricatura — põe caricatura nisso! — de como funciona um julgamento real. Na verdade, este capítulo parece até uma das fases de Ace Attorney. Agradeço de coração a todos que acompanharam a long até aqui. No próximo capítulo, teremos o desfecho da segunda temporada. Bom, em termos. Pretendo postar um ou dois bônus antes de começar a terceira. Beijos! :*



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