Pobres almas desafortunadas escrita por Jude Melody


Capítulo 18
Arco 2 - Parte 13




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Hugo arregalou os olhos de horror enquanto seu corpo brilhava. Max recuou vários passos, até finalmente correr e se esconder atrás de Erika. Todos observamos com espanto enquanto Hugo caía no chão e gritava, transformando-se aos poucos em tritão. A cauda verde retorceu-se. Ele tateou o piso e me encarou em súplica.

— Ah... ah... ah... — ofegou Grimsby.

Eu tentei me aproximar dele, mas era tarde.

— O TRITÃO ESCAPOU!

Erika gritou e levou as mãos aos lábios. Max voltou a ganir. Grimsby desabou inconsciente. E eu me vi no meio daquele caos, petrificado de medo.

Daren... Salve-me!

Virei-me para Erika.

— Erika! Vá para o seu quarto agora. — Ela não me obedeceu. — Erika! É perigoso! Pelos céus, faça alguma coisa para me ajudar, Max!

Ouvi passos. Uma das criadas com quem conversara mais cedo surgiu no saguão. Ela olhou estupefata para Hugo, depois para Grimsby desmaiado, depois para mim, Erika e Max. Eu já sabia o que aconteceria antes de ela levar as mãos ao rosto.

— GUARDAS! GUARDAS!

— Fique quieta! — urrei. — Vai assustá-lo, e ele vai te atacar. Tire a Princesa Erika daqui. Isso é muito...

Mas ela já estava correndo para longe.

— Será que realmente vai acontecer tudo de uma vez agora? — grunhi, desamparado.

— AAH!

Virei-me em um rompante. A outra criada surgira da penumbra e tremia da cabeça aos pés. Vi seus lábios se moverem em um novo grito que o medo ousava calar. Eu precisava agir rápido. Aproximei-me de Hugo, cujos olhos pareciam congelados. Ele murmurou uma súplica.

— Afaste-se, tritão! Não deixarei que os machuque!

O que está dizendo, Daren? Eu não estou entendendo nada!

— SOCORRO! GUARDAS!

— Você aí! — apontei para ela. — Tire a Princesa Erika daqui imediatamente! Não podemos deixar que ela seja ferida.

— Princesa — balbuciou a moça, correndo até Erika para segurar seu braço. — Venha comigo.

Erika despertou de seu transe.

— Mas e Grimsby?

— Os guardas podem salvá-lo depois. Venha, princesa — implorou a criada. — Ah! — Ela olhou com horror para o tritão.

Daren, explique o que está acontecendo agora!

Virei-me para ele com a força de mil ondas.

— Você nos enganou uma vez. Não vai nos enganar de novo!

Desferi um tapa no rosto de Hugo. Ele bateu a cabeça no chão e quedou em silêncio. A criada puxou Erika mais uma vez, e as pernas dela finalmente se mexeram. As duas fugiram com Max em seus calcanhares. Eu tentei respirar, mas ouvi a voz da outra criada.

— Por aqui, guardas! — disse, e suas palavras foram seguidas pelo som de passos.

— Isso não pode estar acontecendo... — sussurrei.

Eu estava sozinho no cômodo. Os guardas demorariam menos de um minuto para chegar. Peguei Hugo no colo e avancei pelo corredor mais próximo.

 

Eu suava frio. Como tudo pudera dar tão errado em tão poucos minutos? Se não tivesse me distraído... Droga! Se Hugo tivesse ouvido meu conselho e escondido o colar de concha sob as roupas... Segui pelos corredores mal iluminados, o coração rufando dentro do peito. Hugo estava morrendo em meus braços. Eu precisava devolvê-lo à água o quanto antes.

Da... ren...

Não consegui encará-lo.

Você me traiu.

Estanquei. Ouvia as vozes dos guardas a alguns metros de distância. Ocultei-me na penumbra, aguardando que eles se afastassem. Hugo arranhou meu braço.

Eu sabia. Eu sabia que não podia confiar em você.

Desculpe, mas eu precisava de um disfarce. As criadas precisam acreditar que eu estou do lado delas.

Não. Você mentiu.

Hugo, me desculpe, mas as coisas saíram bem diferentes do previsto. Eu tentarei levá-lo de volta ao mar, mas tenho de descobrir como.

Você... me bateu... Ainda dói...

Hugo...

Você quer me ver morrer, não é?

Os olhos verdes encararam-me. Não possuíam vida alguma. Eram opacos e frios. Assim como a pele. Só as escamas pareciam quentes.

Eu vou salvá-lo, Hugo. É uma promessa.

Os olhos se fecharam.

Recostei-me na parede, suspirando. Demoraria muito retornar aos jardins e seguir dali até a praia. Além disso, eu não tinha como saber se os guardas ainda vigiavam o portão. A cozinha ficara longe, e eu não me lembrava de nenhum cômodo de onde pudesse saltar pela janela. Restava o pátio aberto. Talvez eu pudesse correr até ele e chamar Sabidão com o assobio que Elliot me ensinara.

Ora... A quem estou enganando?

De que adiantaria chamar Ariel? O que ele poderia fazer para resgatar Hugo em uma situação tão sombria? Se eu tivesse mais poder, transformaria Hugo em uma gaivota para que voasse pela praia. Não sobravam muitas opções.

A menos que...

Rumei pelos corredores. Pisava manso, temeroso de fazer barulho. Minha única chance era retornar à torre e atirar Hugo no mar dali de cima. Não seria tão difícil fazer isso às escondidas. O grande problema era que os guardas já tivessem visto o falso Hugo àquela altura. Como explicar a existência de dois tritões? Eles acreditariam se contasse que talvez o tritão tivesse trocado de aparência com Elliot quando eu não estava olhando?

Apertei os olhos. Não era hora de ficar pensando. Hugo estava morrendo. Minha prioridade era salvá-lo. Por isso, segui pelas sombras, fazendo o possível para me esconder. Eu juro que tentei. Juro do fundo de minha alma, mainha. Mas os guardas estavam lá quando virei o corredor.

— Senhor Daren! — exclamou Nathaniel. — Graças aos céus encontramos o senhor! O que houve com o tritão?

— Ele... desmaiou.

— É perigoso. Deixe-o conosco.

— Não. — Recuei.

Nathaniel arqueou as sobrancelhas.

— Quero dizer, não posso fazer isso. O tritão é perigoso. Tentou atacar a Princesa Erika.

— Mais um motivo para nós o levarmos. Homens.

Os outros guardas empunharam lanças. Hugo despertou de súbito e se debateu em meus braços, rosnando para eles. Um deles se assustou e fez menção de golpear.

— Pare! Ou ele vai transformá-lo em um molusco! Não apontem suas armas assim, seus idiotas!

Ofendê-los provavelmente não era a melhor saída, mas surtiu efeito. Nathaniel avaliou-me por um segundo. Depois encarou Hugo, que esmaecia outra vez.

— Tem razão, senhor Daren. Assustá-lo só trará resultados negativos. O senhor deveria levá-lo de volta à torre.

— Sim, era a minha intenção.

— Muito bem. Nós iremos escoltá-lo.

Quando as coisas estavam se encaixando...

— Não há necessidade.

Nathaniel meneou a cabeça.

— Não seja tolo. Não podemos deixá-lo perambular sozinho pelo castelo com um tritão perigoso. Venha conosco, senhor Daren.

Não relutei. Permiti que os guardas me escoltassem até a torre. Mais parecia um cerco com Nathaniel à minha frente, e outros três logo atrás, grudados às suas lanças. Abaixei os olhos discretamente e vi Hugo piscando sonolento. Seu rosto estava branco.

Quando chegamos à ponte, os guardas pararam e fizeram sinal para eu seguisse. Percebi que ainda me vigiavam e me concentrei em avançar. Vi que as portas da torre estavam abertas sem ninguém para guardá-las. Minha última chance era que a torre estivesse vazia, e eu pudesse ao menos colocar Hugo na piscina até conseguir lançá-lo ao mar.

Senti o suor escorrer por meu pescoço. Cada passo parecia durar uma eternidade. Pensava em Hugo, Ariel, Erika e Elliot. O garoto provavelmente estava assustado. E eu era o monstro que teria de lhe pedir para permanecer como tritão por mais um tempo, enquanto tentava convencer todos no castelo de uma farsa inverossímil aos olhos de qualquer um que conheça a magia das sereias.

Apesar de tudo, eu me senti confiante. Minha mãe uma vez dissera que os momentos mais importantes são feitos de atos de coragem. Eu não sabia o que isso significava naquela época, mas, enquanto cruzava a ponte, as palavras fizeram sentido. Eu seria corajoso. Salvaria Hugo de uma forma que não pudera salvar a mainha. E meus passos ganharam robustez. E meus olhos ganharam fulgor. Tudo feito de uma força retirada de algum lugar no fundo, como o abismo de meus medos.

Apenas para desmoronar quando ele apareceu.

— Ora, ora, vejam o que temos aqui.

Estanquei, o sangue gélido. Henrique abandonou a penumbra da torre e deu alguns passos em minha direção.

— Boa-noite, senhor Daren — cumprimentou, os braços atrás das costas em posição de descanso. — Vejo que capturou nosso fugitivo.

— Capitão Henrique...

Ele exibiu um sorriso afável.

— Surpreso em me ver? Sim, eu imagino. Na verdade, não pretendia revelar minha presença agora, mas os últimos acontecimentos me forçaram a desistir do segredo.

— Segredo? — engasguei. — Que segredo?

— Ora, bem. Eu já havia retornado da viagem há cerca de três dias.

Senti como se meu corpo estivesse em queda. A visão ficou turva.

— Três dias?!

— Sim. Escolhi vir por uma rota menos convencional, misturando-me a alguns comerciantes. Não queria que os funcionários fizessem alarde. Foi um pouco entediante permanecer todo esse tempo preso em meus aposentos, enquanto aguardava o retorno do Rei James e da Rainha Helena. Eu sou um homem severo e trabalhador, sabe? Não gosto de descansar. É claro, passar alguns dias sentado e lendo foi muito bom para a paz e o intelecto, mas eu me sentia um inútil toda vez que as criadas me traziam o almoço e o jantar.

Eu não estava compreendendo. O que aquele homem fazia ali? Ele deveria estar no reino vizinho. Que história era aquela de permanecer dias trancado em seu quarto?

— Parece confuso, senhor Daren — disse mansamente. — Permita-me explicar. Houve um imprevisto, e o rei e a rainha me comunicaram que teriam de alongar sua estadia no reino vizinho por uma semana. Mas o Rei James estava muito temeroso de que algo acontecesse ao tritão durante sua ausência e me pediu para retornar em segredo. Após minha volta, soube de outro perigo: parece que a Princesa Erika quase derrubou o castelo com suas travessuras. Veja só!

O rei... Sim, fazia sentido. Ele estava obcecado com o tritão. E o homem em quem mais confiava no mundo estava a seu lado... Droga! Eu não havia pensado na possibilidade de Henrique voltar mais cedo!

— Grimsby sabia?

— Não. Grimsby não conseguiria manter segredo diante da princesa. E, se revelasse a ela que eu já estava aqui, logo o reino inteiro saberia.

— Erika não é fofoqueira.

— Não, mas ela conta tudo a você e àquele menino.

Exibi um sorriso sarcástico.

— O senhor me considera equivalente a um reino inteiro? Estou honrado.

Henrique riu baixinho e alisou o bigode.

— Esta noite, estava me preparando para dormir após uma leitura muito agradável quando ouvi os gritos de uma criada. Logo compreendi que, de alguma forma, o tritão havia fugido. Não pude hesitar: levantei-me, vesti o uniforme — na verdade, já o estava vestindo — e ordenei aos guardas que encontrassem o tritão. Mas algo me intrigava. Como ele poderia ter escapado sozinho? Vim até a torre e qual não foi minha surpresa ao descobrir que o tritão estava tranquilo e contente em sua piscina, mastigando algumas espinhas de peixe? Achei que fosse tudo um alarme falso, um terrível engano de funcionários cansados após tão exaustiva jornada...

Ele fechou os olhos e ergueu o rosto como se quisesse sentir a brisa noturna.

— Mas, então, o senhor apareceu. E trouxe esse tritão em seus braços. Um tritão idêntico ao que acabei de ver. — Ele fez uma breve pausa, devorando-me com os olhos pequenos e penetrantes. Os olhos de tubarão. — O que me leva à seguinte pergunta: qual de nós está louco?

— Eu tenho um palpite — grunhi.

O peito de Henrique reverberou a risada mal contida.

— E eu tenho uma teoria. Uma teoria um tanto estranha. O senhor tem tempo para ouvi-la?

Fitei Hugo. Sua pele estava gelada do frio da noite. Os olhos, fechados. E os lábios, levemente abertos.

— A minha teoria é que — prosseguiu Henrique, ignorando minha ausência de resposta — um desses tritões é verdadeiro, enquanto o outro é falso. Qual é qual eu não sei. Mas não há problema. Basta colocarmos os dois na piscina e esperarmos o retorno do Rei James. Ele certamente ficará feliz em saber que agora temos dois tritões. A segurança da torre será reforçada, é claro. Não podemos arriscar uma nova fuga.

— E como acha que ele fugiu, Capitão Henrique?

— Excelente pergunta. Consigo imaginar algumas possibilidades. Ajuda externa. Magia de sereia. O limite é nossa imaginação. Por isso, gostaria de contar com sua ajuda para prestar depoimento sobre como encontrou o fugitivo.

— Um depoimento?

— Sim. Do senhor e de todos os outros funcionários que testemunharam a fuga. Precisamos descobrir os poderes do tritão. Se ele tiver mesmo usado magia, quem imagina o risco que corremos ao deixá-lo desvigiado?

— Achei que não acreditasse em magia de sereia.

— Não acreditava. Sou um homem cético, Daren. Não acredito nos contos de fadas que me contam. Não acredito em nada que não possa testar. Mas pense comigo. As evidências são claras. O senhor carrega um tritão em seus braços — uma criatura que eu sempre pensei ser impossível. Como eu poderia me considerar racional se não revisse meus posicionamentos?

Mordi o lábio inferior. O gesto tinha gosto de Ariel.

— Bem, essa conversa já está demasiado estendida — comentou Henrique. — Se me lembro corretamente, o senhor mesmo disse uma vez que tritões não podem sobreviver muito tempo fora da água.

— Sim. Eu disse.

— E me parece que esse tritão já sofreu o bastante por hoje. Devemos devolvê-lo à água o quanto antes.

— Sim. Devemos devolver.

Acima de mim, as árvores farfalharam. Ouvi o grito de uma gaivota solitária.

— Ótimo. Acompanhe-me, por favor.

Henrique virou as costas para mim e caminhou em direção à torre. Deu por falta de meus passos e olhou por cima do ombro.

— Senhor Daren?

Em um movimento abrupto, lancei Hugo por cima da mureta de pedra. Vi seu corpo subir alguns centímetros no ar, depois descer lentamente, engolido pela noite. E logo ouvi o som de quando foi engolido pela água.

Voltei-me para Henrique, encarando-o em desafio.


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Notas finais do capítulo

Hey, people! Espero que estejam todos bem e conseguindo se cuidar direitinho. A pandemia nos pegou desprevenidos; e para muita gente ainda não caiu a ficha da seriedade da situação. Mas não vou ficar repetindo os discursos que vocês já devem estar cansados de ouvir, então apenas deixarei meus votos de que vocês, seus familiares e seus amigos consigam se proteger.

Mudando de assunto, espero que tenham gostado do capítulo. O segundo arco está na reta final, e o Daren está mais full pistola do que nunca (com razão, admito). Mas, antes de contar o que o Henrique fiz com ele, gostaria de anunciar uma surpresa (mas aí ela não deixa de ser surpresa, Jude? Hum, é). Se tudo der certo, postarei nos próximos dias uma nova oneshot do Daren. O título provável é “O bruxo do mar”. Essa oneshot não terá nenhuma relação com a “Pobres almas”; ela vai se passar numa época diferente, num universo diferente, com um enredo diferente. Apenas os personagens serão os mesmos, com duas ou três carinhas novas. E se não der certo e a one acabar indo pro beleléu, nós voltamos à programação de sempre. Bom, é isso. Beijos! :*



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