- escrita por Blue Butterfly


Capítulo 44
Quarenta e quatro


Notas iniciais do capítulo

Depois de 2 meses (?) eu postei esse cap! Com hesitação, devo dizer, desde que deste para frente as coisas tendem a ficar um pouco mais pesadas. Mas é o curso da história. Me digam o que acham!



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Dia 1

Chegou mais rápido do que Maura conseguiu registrar. Suas mãos estavam suadas e ela tremia levemente. Não tinha sido tão ruim quanto ela pensara, mas o foco continuava nela, e ela se sentia desconfortável por ter tantos olhares sendo lançados, vez ou outra, em sua direção. Começara com os jornalistas do lado de fora, e se estendera para empregados e pessoas aleatórias no corredor do tribunal. De repente, todos pareciam consciente de sua existência na Terra; quem sabe, apenas naquele dia. Agora, ela estava sentada entre Kendra e Jane, suas costas grudadas no encosto do bando como se, por pressão, pudesse derreter-se dentro dele e desaparecer da vista de todos presentes.

Ele não tinha chegado ainda; elas estavam lá mais cedo, antes da maioria, plano de Jane para aliviar sua ansiedade que parecia queimar cada vez mais rápido os segundos dos dias que se passavam.

Kendra fez um movimento com a mão que lhe tirou do transe. Maura piscou os olhos e, agora de volta ao presente, olhou para os lados e para trás, a fim de estudar a quantidade de pessoas que tinha aumentado consideravelmente. Algumas fileiras atrás de si, no seu lado direito, ela viu uma senhora com olhos pesarosos e negros olhando de volta para ela. Como em todas as outras vezes ao se pegar sendo estudada por alguém, Maura abaixou os olhos e apertou uma mão na outra.

‘Você vai se sair bem, Maura.’ A voz de Kendra veio baixa e incentivadora, ao seu lado. Antes da sessão começar, a detetive tinha se sentado ao seu lado para lhe oferecer apoio.

 

Ela soube que Kendra podia ver a apreensão e medo em seus olhos.

‘Não dê bola para os repórteres.’ Kendra disse com desdém, antes de abrir a porta do carro. A presença deles não parecia agradá-la também. ‘Tudo o que temos que fazer é subir as escadas até aquele grande porta de madeira. Vê? A partir de lá, eles não são permitidos.’

‘Eu não quero me sentir encurralada.’ Maura murmurou, estudando as câmeras pelo vidro.

‘Você não vai.’ Jane reafirmou do banco da frente, desligando o carro.

‘Não faça contato visual. Se você fizer, eles vão tomar isso como uma deixa para enfiar o microfone no seu rosto. Apenas ignore-os.’

Maura fez exatamente o que Kendra sugeriu. Ela manteve os olhos baixos a todo momento, ignorado as perguntas lançadas em sua direção. Os braços de Jane esticados ao lado de seu corpo garantiam passagem livre, proteção do seu espaço pessoal.

‘Ei, você!’ Ela escutou Kendra exclamar em protesto quando um microfone bateu em seu ombro. ‘Faça isso mais uma vez e você vai passar um dia em uma cela.’ Kendra quase gritou, uma mão nas costas de Maura motivando-a a continuar caminhando. Ela não escutou todas as perguntas no meio do caos. Ela conseguiu apenas ouvir partes, pegar as migalhas. Algo sobre justiça, algo sobre a BPD, algo sobre o cativeiro. Seu estômago embrulhou com a última palavra, mas uma vez que elas alcançam o lado de dentro do tribunal, Kendra abriu um sorriso sútil de vitória para ela.

‘Mandou bem, Maur.’ Foi Jane quem disse.

‘Eu não fiz nada.’ Ela deu de ombros.

‘Ah, você fez.’ Kendra apertou seu ombro com gentileza. ‘Você não tem idéia de quantas testemunhas desistem lá, bem nos pés da escadaria.’ O olhar de Kendra para ela é intenso, carregado de orgulho, cumplicidade, aprovação. Maura olhou para Jane, apenas para encontrar o mesmo tipo de admiração.

Ela respirou fundo e encarou o corredor à sua frente. Mordeu o lábio inferior. ‘Eu ainda posso mudar de idéia.’ Ela disse, sem muita convicção.

O sorriso que marcou o canto do lábio de Kendra entregou apenas descrença. ‘No fundo, você sabe que não.’ E ela deu as costas e começou a andar sem nem mesmo perguntar se Maura a seguiria.

Ela sabia que sim. Ambas sabiam.

 

Eu sei.’ Ela respondeu com honestidade, porque desde o primeiro dia foi Kendra que lhe lembrara como ser forte de novo e a importância de seguir em frente. Entretanto, quando a primeira sessão começou, Maura ligeiramente desconfiou que nada ficaria bem. O primeiro motivo foi porque ela tinha que, como tinha sido relembrada várias vezes, encarar a pessoa que tinha lhe agredido física e mentalmente. Uma semana antes do julgamento, Miranda, a promotora, tinha se encontrado com ela por uma hora, em cinco dias consecutivos. No primeiro deles, ela explicou para Maura (e Jane, que fez questão de estar junto da loira no primeiro encontro) o que aconteceria na primeira etapa do julgamento: todas as provas seriam apresentadas; instrumentos encontrados no cativeiro, amostra de DNA, vídeos das câmeras de ruas públicas que ele poderia ter aparecido, vídeo de quando foi preso e interrogado, digitais, fotos do seu próprio corpo e do corpo de Kimberly, exames médicos, exames psicológicos. Ela tinha sido gentil o suficiente, empática e prestativa. Desde cedo alertara Maura para não olhar as evidências quando essas fossem apresentadas; alertou-a sobre a dramatização por parte da promotoria com o intuito de tornar o caso ainda mais sensível, e, sobretudo, enfatizou o quanto era importante ela entender que, apesar de todo o processo exaustivo e difícil, o objetivo era colocar atrás das grades a pessoa que tinha tentado matá-la.

Na teoria, Maura tinha entendido perfeitamente bem. Agora, entretanto, seu lado emocional estava deixando-se afetar pelo que via. Andrew Harris, o réu, seu sequestrador e agressor, entrava na sala acompanhado por dois policiais que o escoltava. Seu estômago deu uma cambalhota e ela arfou, apertando a mão de Jane. A morena, entendendo o que estava acontecendo, começou a dizer algo ao mesmo tempo que Kendra. Tudo o que Maura conseguia fazer, entretanto, era balançar a cabeça de um lado para outro. Ela não conseguia ouvir nenhuma das duas, apenas a voz em sua cabeça que gritava repetidamente: você não pode estar no mesmo lugar que ele, corra e se salve, não é seguro. Seu corpo tremia terrivelmente, como se estivesse com uma febre alta. Ela tentou se virar para Jane e dizer que, por favor, fossem embora dali, mas a morena já estava passando um braço na sua cintura, abraçando seu corpo e sussurrando algo em seu ouvido.

‘Maura, você tá tendo um ataque de pânico ou algo do tipo. Você precisa respirar e recuperar o controle sobre si mesma, ok?’ A morena disse e acariciou suas costas, e se a loira pudesse ver seu rosto no momento, ela saberia o quão desolado era o olhar de Jane para Kendra. Ela respirou lentamente várias vezes, como tinha aprendido a fazer, e quando conseguiu recuperar parte do controle, se virou para Kendra com um olhar carregado de desculpas.

‘Kendra, eu sinto muito, mas eu não acho que consigo fazer isso. Sabendo que ele estará aqui o tempo todo, eu não consigo.’ Sua mão agarrou a da detetive loira e apertou como se implorasse para seu pedido ser ouvido.

‘Maura...’ Kendra começou, se ajeitando ao seu lado, de modo que agora estava quase de frente para ela. ‘Você já chegou até aqui. Até aqui, Maura. Tanta gente desiste antes disso. Tanta gente deixa esse medo se alimentar delas, ao ponto de que um dia elas somem e não sabem mais quem são, senão as vítimas de muito tempo atrás. Não deixa isso acontecer com você. Ele não pode e não vai mais te machucar. Olha para ele.’ Ela apontou um dedo para o homem, do outro lado da sala, pouco se importando com o gesto grosseiro. ‘É ele quem está acorrentado nas mãos e nos pés. É ele quem não pode fugir, e não você.’

Com cautela, como se estivesse prestes a cutucar um animal selvagem que pudesse lhe atacar, Maura inclinou o corpo levemente para frente, a fim de estudar o homem à esquerda, sentando-se agora do outro lado da sala.

‘Ele não vai machucar você.’ Kendra repetiu, dessa vez com a voz mais suave. ‘Nós somos maior em número. Nós estamos armadas.’ Ela segurou a mão de Maura, apertou gentilmente em uma promessa.

‘Ok?’ Jane perguntou um instante depois de estudá-la.

‘Ok.’ Maura finalmente disse, seus olhos ainda grudados no homem. Era como nunca tirar os olhos de uma cobra, mesmo quando correndo em fuga; em caso de ataque, ela saberia para qual lado retrair.

‘Quando ele fizer contato visual com você,’ Kendra continuou como se tivesse recuperado a linha de raciocínio, interrompida anteriormente, ‘não abaixe a cabeça, você não é inferior a ele. Encare-o diretamente nos olhos. Mostre para ele que é você quem está no comando agora e que ele não te assusta mais.’

‘E que você foi mais esperta do que ele.’ Jane adicionou, um sorriso maligno no rosto enquanto lançava um olhar mortífero para o homem, ainda que ele não estivesse encarando-a.

‘Eu não quero provocá-lo.’ Maura disse num murmúrio, balançando a cabeça em não.

As duas detetives trocaram um olhar significativo: ela ainda tem medo dele.

‘Apenas não abaixe a cabeça.’ Jane insistiu e Kendra concordou com a cabeça. ‘Eu estou aqui com você, e Deus me ajude se ele sequer tentar te assustar.’ Ela beijou a cabeça de Maura, o braço em sua cintura nunca deixando-a.

‘Quanto tempo isso vai levar?’ Sua voz é baixa, e ela se encolheu contra o corpo de Jane, usando o de Kendra como escudo – ela não queria ser vista por ele.

‘Querida… Isso pode levar o dia todo.’ Foi Jane quem respondeu, lançando um olhar para sua mãe que acabara de chegar e se sentara ao lado de Kendra. Ela sabia que Maura se sentiria melhor acompanhada por Angela, do que pela própria mãe. Não era como se o que quer que acontecia entre as duas fosse ficar entre elas nesse momento, mas era inegável que Angela era mais calorosa, protetora e, bem, maternal com Maura do que a própria Constance. Inúmeras vezes Jane presenciou a mais velha preparando refeições apropriadas para Maura, ou então cobrindo-a enquanto a mais nova dormia no sofá, beijando sua cabeça num desejo de boa noite. Era esse tipo de cuidado que Maura precisava agora, e Jane se sentia aliviada, até mesmo grata, por ter a mãe ali, disposta a defender e cuidar daquela que era a mais nova adição aos Rizzolis.

Minutos depois, Kendra se levantou e deu o seu lugar para Angela. Maura segurou a mão da mais velha como se sua sanidade dependesse disso. Quando a juíza entrou na sala, a loira se lembrou do que praticamente todo mundo sugeriu que ela fizesse: que não olhasse para nenhuma evidência, que tentasse não escutar nada do que seria dito.

Ela fez o contrário.

Seus olhos estudaram cada objeto mostrado: algema, garrafas de água, suas roupas, fotos do seu corpo coberto por hematomas e machucados, fotos do local onde fora mantida. Em cada uma delas, ela sentia vontade de vomitar. Era como ter um encontro com o passado, como enfrentar um fantasma: pútrido, aterrorizante, irremediável e, o pior de tudo, carregando o seu rosto.

Por que eu?, ela se perguntava sem parar. Agora, todo o seu lado mais vulnerável tinha sido exposto. Todo o horror do que tinha lhe acontecido estava sendo mostrado em fotos e objetos que uma hora tinham sido catalogados. Em cada evidência levantada, a mão de Jane se apertava na sua, e a morena respirava fundo lentamente. Angela estalava a língua em reprovação, suspirava.

E Maura evitava olhar para qualquer pessoa.

Ela não queria a piedade ou pena delas. Ela não queria ver o rosto de ninguém carregando espanto, dó, perplexidade. De repente, ela queria levantar e gritar para que toda sua família saísse de lá. Ninguém mais merecia ver aquilo. Aquela era a história do que tinha acontecido com ela, e apenas ela, e era nojento e devastador, desumano e cruel, e ninguém mais precisava sentir o que ela estava sentindo naquele momento. Ela pensou que talvez, apenas talvez, se todos saíssem e ela ficasse sozinha, as palavras não soariam tão repugnantes, a narração não pareceria tão aversiva.

Toda aquela história, todas aquelas pessoas ouvindo, se misturavam num redemoinho de dor, constrangimento, tristeza, desolação. Trazia sentimentos a tona, alguns os quais ela já tinha esquecido. Fazia tudo parecer tão real, mais uma vez.

‘Maura, não olha.’ Jane sussurrou uma vez, bem perto de seu ouvido.

Apenas se ninguém mais olhar, ela queria dizer, mas aquele momento não era hora apropriada para se fazer uma cena.

Ela contou a palavra vítima trinta e sete vezes. Abusada, vinte e uma, e, abuso, trinta e três vezes. Quando Angela acariciou suas costas, ela perdeu as contas e deixou para lá. Foi quando ela percebeu, também, que estava chorando silenciosamente.

Depois disso, ela não conseguiu ouvir mais nada – seu esforço estava focado em manter o controle, recuperar a respiração. Por misericórdia – ou quem sabe pelo bom senso da promotora – um intervalo foi concedido minutos depois. Maura só entendeu o que estava acontecendo quando Jane instigou-a a se levantar, colocou um braço protetor em volta do seu corpo e a direcionou para fora da sala e para o banheiro.

‘Respira fundo.’ Jane sussurrou em seu ouvido. Ela segurava Maura em um abraço, o corpo da menor apoiado contra a pia de mármore que corria de um lado ao outro da parede.

‘Sua família precisa ir embora. Meus pais, também. Nenhum deles merecem ver isso, Jane.’ Ela disse com dificuldade, as palavras se tropeçando uma nas outras. Culpa, culpa, culpa. Nenhum dos Rizzolis mereciam passar por isso. Constance e Arthur muito menos. Todos eles foram pegos nesse show de horrores, e agora ela se sentia responsável por carregar todo esse drama, essa desgraça, para a vida de cada um.

As feições de Jane se endureceram tão logo as palavras fizeram sentido. Ela segurou Maura pelos ombros, gentilmente, e olhou-a diretamente nos olhos. ‘Primeiro, você não merecia passar por isso. Segundo, nós estamos aqui por escolha própria, dispostos a te apoiar – porque nós amamos você. Eu amo você. E eu não sei porque logo agora você decidiu que quer enfrentar isso sozinha, mas isso não vai acontecer.’

‘Porque é tudo tão horrível!’ Ela exclamou num ataque de fúria, como se estivesse cansada demais para usar mais palavras para descrever o que queria, para fazer sentido. ‘Isso vai destruir...’

‘Maura.’ A voz de Kendra se manifestou no banheiro, e Jane pôde jurar que foi tão autoritária que ecoou em todo o andar, como uma ordem divina.

A loira virou o pescoço para encarar a detetive, os olhos carregados de lágrimas estudando cada movimento da outra. Ela se movia com determinação, mas uma vez que chegou perto da menor – e Jane se afastou – um abraço rápido e gentil foi trocado entre elas. ‘Eu entendo que é difícil.’ Ela continuou. ‘E é verdade que eu mal posso imaginar o que você está sentindo agora. Mas eu sei de uma coisa, entretanto: afastar sua família nesse momento, é um movimento estúpido. Eles sabem porque estão aqui, eles vieram por vontade própria.’

A menor abriu a boca, prestes a dizer algo, mas foi cortada antes que pudesse fazer.

‘Você sabe disso, tão bem quanto eu. E acho que posso arriscar em dizer que, embora essa justificativa seja criativa, ela não é a razão pela qual você está se sentindo assim.’ Ela segurou uma mão de Maura, mas o gesto confortante não amenizou as palavras duras. ‘Tirá-los de lá não vai fazer disso tudo uma mentira, Maura.’

Os olhos de Jane se arregalaram, escandalizados, ao mesmo tempo de que os lábios de Maura se curvaram para baixo e ela soltou um soluço. Para alguém que lidava, no dia a dia, com pessoas tão suscetíveis como Maura estava nesse momento, ela deveria ter tido um pouco mais de sensibilidade ao dar a notícia. Depois, porém, ela envolveu a menor nos braços e acariciou suas costas, tentando acalmá-la. ‘É melhor você entender isso que está sentindo e colocar para fora agora.’ Demorou um tempo para que Maura voltasse a respirar normalmente. Os braços de Kendra nunca deixaram de ampará-la, e a mão de Jane acariciava sua nuca, como num lembrete de que a morena não tinha abandonado-a. Então, Constance foi a próxima a entrar no banheiro. Ninguém viu, porque as duas detetives estavam concentradas em Maura, e a loira estava largando-se de Kendra para limpar os olhos, tentar se recompôr. Jane acariciou suas costas, colocou uma mecha de cabelo atrás de sua orelha e beijou sua testa.

‘Maura.’ A quarta voz se manifestou baixa, contida e discreta, e, como em contraste, Kendra, Jane e Maura viraram-se de uma vez, saltos ecoando no chão, suspiros de surpresa rodopiando no ar, para encarar Constance.

‘Mãe.’ A voz da loira nunca tinha soado tão pequena, distante e duvidosa como dessa vez. Maura queria, primeiro, se desculpar por todas as coisas horríveis que a mulher tivera que ver naquela sala. Depois, queria apenas se encolher no colo dela, assim como fazia quando era pequena e tinha pesadelos de madrugada. E pedir que Constance resolvesse logo tudo aquilo, que desfizesse a dor e a escondesse em seu colo enquanto a vergonha pela humilhação não passasse, porque ela simplesmente não. podia. mais. fazer aquilo sozinha.

‘Ah, minha menina.’ Havia dor e compaixão, um toque de arrependimento e – finalmente, Jane pensou – amor em sua voz. Seus dedos se demoraram no rosto de Maura, depois segurou em sua cintura, como se estabilizando-a sobre os pés de novo.

Para sua própria surpresa, quando Constance a envolveu nos braços, Maura não chorou. Ela apenas fechou os olhos, apoiou o queixo no ombro da mulher e se concentrou na mão subindo e descendo em suas costas, o cheiro do perfume que marcou sua infância.

...

Ela respirou fundo e contou até dez, e enquanto seus pulmões se esvaziam de ar, ela imaginou um balão colorido furado se esvaziando também. Por mais estranho que fosse, o pensamento acalmava as batidas de seu coração. Ainda agitada, entretanto, tentou se convencer de que a chegada inesperada da mãe não podia se transformar em algo tão terrível quanto ela imaginava. E quando a maior parte de si gritava que aquilo era uma mentira, uma pequena lembrança carregava as palavras de Jane: uma mentira contada várias vezes se transforma em uma verdade em algum ponto.

Ela continuou repetindo-a então.

Na cozinha, era quase surreal observar como Angela e Constance tinham se tornado, se ela poderia assim colocar, amigas. Maura desconfiou que as várias taças de vinho tinham tido certa influência sobre o comportamento da mãe, mas em todo caso, pelo menos naquela noite, ela preferiu acreditar que a mulher tinha decidido ser mais aberta para outras pessoas.

Então eu cozinho o frango no fogo baixo, e depois deixou dourar no fogo alto. Esse é o segredo.’ A loira ouviu Angela dizer, um tanto empolgada por poder ensinar algo de novo para uma mulher tão importante como Constance – palavras que ela repetiu para a própria Maura, mais tarde.

A loira ajeitou as cenouras entre os dedos e se preparou para cortá-las, mas não sem lançar um olhar para as duas. Ela sentiu a ponta do aço separar a pele da palma de sua mão em duas, e o sangue quente correr antes mesmo que ela pudesse fechar a mão num punho. Ela trincou os dentes e lançou um olhar novamente para a mãe e Angela. Ambas ainda estavam conversando empolgadamente, e ela não queria, definitivamente, arruinar o momento. Só então ela abriu lentamente a mão, tentando analisar a profundidade e extensão do corte. Mordeu seu lábio inferior quando uma pontada de dor percorreu do machucado, o sangue vermelho vivo deslizando como uma cobra em sua pele.

Maura!’ Foi Angela quem viu primeiro, e o grito assustou as outras duas mulheres.

Não foi nada.’ Ela tentou arrumar, porque de jeito nenhum que ela estragaria aquela noite. Tudo estava indo tão bem. ‘É apenas um corte superficial.’

Constance colocou a taça de vinho em cima da pia, automaticamente, e andou de encontro à filha. ‘É bastante sangue para um corte que você diz ser superficial.’ Ela disse, não de um jeito malvado, apenas uma observação, como Maura sempre fazia. A morena tomou a mão da filha na sua, e com a outra pressionou o guardanapo para limpar o sangue.

Angela, a comida pode queimar.’ Maura apontou com a cabeça o fogão, tentando tirar a atenção de si.

Ah!’ Angela soltou um grito curto e alto, e jogou as mãos para cima, como se tivesse se lembrado de algo importante. Ela girou e desligou todos os botões, para a decepção de Maura. Agora, a atenção das duas mulheres estava definitivamente sobre ela.

Eu mesma posso fazer o curativo.’ Ela disse, tentando livrar-se, ainda que discretamente, da mão da mãe.

Constance soltou um suspiro e a encarou, olhos nos olhos. ‘Se você me disser que não precisa ir ao hospital, eu acredito no seu julgamento como médica. Eu espero, antes de você se decidir, que examine bem a ferida.’ Ela disse com seriedade, mas Maura conseguiu ver a preocupação e afeição nos olhos da mulher.

Seus lábios se curvaram ligeiramente para baixo. Ela sabia qual é a melhor escolha, mas ela não queria causar comoção. Era apenas um corte, fácil de ser consertado, não era como se a faca tivesse atravessado seu coração. Embora seu raciocínio tenha sido esse, seus olhos encheram-se de lágrimas mesmo assim. Querendo ou não, ela já tinha arruinado o clima leve e agradável entre elas.

Eu sinto muito, eu não queria interromper e nem atrasar o jantar.’ As lágrimas caíram antes que ela pudesse pará-las.

Ora, Maura! Não seja boba.’ Foi Angela quem disse.

É apenas um jantar entre família, você mesma disse.’ Constance pontua, e se em outras ocasiões a observação fosse feita com desdém, agora servira como consolo.

Mas, mãe...’ Maura começou, choramingando, mas a mais velha a interrompeu.

‘Mesmo se fosse um evento maior, qual é a opção mais adequada?’

Maura meneou a cabeça em obediência e entendimento. Embora ela desejasse que pudesse voltar no tempo apenas para consertar o erro insignificante, ela sabia que era impossível.

Venha, é uma viagem curta até o hospital. Eu vou dirigir você. Sem protestar, Maura.’

Mais uma vez, ela obedeceu.

Elas passaram em torno de uma hora no hospital, somando alguns pontos na mão, uma Maura nada feliz, uma passada na farmácia e a direção de volta para casa. Quando chegam, é Constance quem abre a porta e a coloca para dentro com a mão em suas costas. O que surpreendeu Maura naquela noite, entretanto, não foi o olhar de Constance recaindo na decoração do hospital para evitar os pontos que fechavam o machucado em sua mão. Não foi a ordem que a mulher deu para o enfermeiro quando Maura arfou de dor quando a agulha da anestesia perfurou sua pele pela primeira vez - ‘Por favor, tome cuidado com essa agulha!’ - e não foi, tão pouco, a pequena doação que ela fez para o hospital antes de deixar o lugar. O que surpreendeu Maura foi que, no estacionamento, antes de entrarem no carro, Constance a colocou num abraço e acariciou suas costas. Ela era sua mãe, mas nunca tinha sido maternal ou carinhosa. Pega de surpresa, Maura não se curvou para devolver o abraço como faria com Angela. Ela apenas ficou lá, paralisada, os olhos piscando rapidamente enquanto tentava processar o que acontecia.

Eu sinto muito, Maura.’ E quando Constance disse, a mais nova sabia que ela queria dizer que sentia muito mais além do que aquele pequeno corte em sua mão.

Talvez ela estivesse se redimindo por erros do passado, dirigida pela culpa de tê-los cometido, mas, com certeza, era ela quem agora estava ali.

‘Você precisa lavar o rosto agora, se recompor e voltar para lá.’ Constance a lembrou da tarefa que ela ainda tinha que fazer.

Maura estava exausta. Suas costas doíam por já ter ficado tanto tempo sentada, e seus músculos estavam tensos, sua cabeça latejando.

‘Só mais um pouco, Maur. Eu tenho certeza que, de onde paramos, conseguimos concluir com mais duas ou três horas.’ Jane ofereceu, tentando motivá-la com o curto prazo a ser cumprido para depois poder finalmente voltar para casa.

‘Eu posso fazer isso.’ Ela murmurou, perdida em pensamentos, talvez tentando encontrar a voz interior que estivesse gritando ‘sim, você pode mesmo!.

...

No final do dia, Maura tinha a sensação de que acabara de chegar de um velório. Sua casa estava cheia de gente, mas não havia nenhuma conversa – feita aos sussurros – que tinha durado mais de um minuto. Frankie e Tommy estavam sentados no sofá, o primeiro com a cabeça apoiada nas mãos, em pensamento, e o segundo, batendo o polegar do braço do sofá, a mente bem longe dali. Angela ainda tinha lágrima nos olhos, e não fazia questão de esconder seu horror e desconsolo: ela abraçava Maura de tempo em tempo, e sempre perguntava se tinha algo que ela podia fazer para que a loira pudesse se sentir melhor (a resposta era sempre não, obrigada, Angela). Constance estava pálida e quieta, e Arthur ainda tinha que olhar Maura nos olhos e manifestar alguma reação. E Jane… Oh, Jane. Maura nunca a tinha visto tão abatida como agora, nem mesmo quando seu pai aparecera no dia de Ação de Graças e a humilhara na frente da família toda. Era fácil de ver que ela estava exausta, sem energia nenhuma, e tudo o que ela fazia era em modo automático. Apesar de estar se arrastando pela casa, foi ela quem tomou liderança e decidiu o resto da noite. Ela pediu por pizza – que ninguém acabou comendo. Arrumou a cama de hóspedes para a mãe, o quarto extra para Tommy. Preparou um banho para Maura, se certificou de a casa de hóspedes estava em perfeito estado para os pais da loira. Enquanto um por um foi se retirando, ela fez questão de abraçá-los e agradecê-los por terem comparecido para oferecer apoio para a mulher. Angela tinha sido a última a se retirar, deixando apenas Jane e Maura na sala. A morena envolveu a outra em seus braços, tão logo tivera privacidade para fazê-lo. Ela parecia ainda menor essa noite, e o fato de estar sem salto alto não tinha nada a ver com isso. Nenhuma falou. Nenhuma se moveu por um longo tempo. Talvez fosse assim que se fizesse o luto, Maura pensou. Decerto, todas as dores e sofrimentos, todo desespero e melancolia, toda agonia e aflição eram lamentados em silêncio. Algumas coisas, ela pensou, eram melhores quando não ditas, quando escondidas. Algumas verdades eram cruéis demais para serem pintadas em cores. E, quando esses horrores eram mostrados, eram apenas para calar em silêncio aqueles que foram chocados.

‘Eu preparei um banho para você.’ Jane finalmente disse, depois do que pareceu séculos. ‘Tenta relaxar um pouco, você merece, meu amor.’ Ela disse carinhosamente, acariciando as costas da loira. Com um último acréscimo, ela se afastou para beijar-lhe os lábios.

‘Você vem se juntar a mim?’ Maura perguntou numa voz pequena, as mãos se apertando nas costas da morena num pedido ansioso.

‘Absolutamente.’ Ela respondeu sem pensar, e colocou uma mecha de cabelo dourado atrás da orelha da menor. A outra fechou os olhos, se inclinou ao toque. Jane não resistiu e beijou sua bochecha rosada. Ela sabia que nessa altura era melhor que as duas tomassem um banho logo, que deitassem e descansassem para o dia seguinte, mas ela não conseguia resistir à urgência de colocar a menor nos braços mais uma vez e niná-la com ternura. ‘Eu tô tão orgulhosa de você, do que você fez hoje.’ Jane disse num sussurro, mas cada palavra soando clara. As palavras desencadearam um tipo de reação em Maura. Ela apertou os braços na cintura da morena e chorou baixinho, todo o cansaço, tristeza, nervoso, medo e aflição escorrendo com cada lágrima. A detetive sabia que ela estava exausta apenas pelo modo como seu corpo parecia depender do dela; sua respiração estava pesada e lenta, como se seus pulmões tivessem trabalho demais, por uma vida toda; o corpo pequeno pesava sobre o seu, e Jane tinha certeza de que se ela soltasse Maura agora, ela desabaria no chão.

Por mais cinco minutos, elas ficaram ali. Quando a menor se acalmou, Jane se certificou de que ela estava bem para ficar sozinha, pelo menos por alguns minutos. ‘Espera por mim lá em cima, ok? Eu vou me certificar de que a casa toda está trancada.’ Ela disse. Maura concordou com a cabeça, recebeu um outro beijo da morena e só então se retirou.

Eram apenas oito e meia da noite, mas Jane sentia uma pressão em sua cabeça, como se tivesse mergulhado milhas e milhas abaixo nas águas do oceano. Ela esfregou a testa com a mão e estava prestes a verificar a porta principal quando a campainha tocou. Surpresa, ela não demorou muito para abri-la. Do outro lado, Kendra. Seus olhos azuis, e agora cansados, voaram para encontrar os de Jane. O ar gelado dançou em torno das duas, levantando as pontas de cabelo claro e escuro.

‘Jane.’ Ela disse sem formalidade alguma. Ela também parecia abatida, como se tivesse usado todo o seu lado detetive, sobrando agora só a parte pessoal dela.

‘Kendra.’ Ela replicou, sem muito o que oferecer.

‘Eu só queria…’ Ela suspirou, tentando encontrar palavras para se fazer entender. ‘Eu precisava saber como vocês estão.’ Ela disse, finalmente, no jeito mais honesto que pôde.

Foi algo no tom da voz de Kendra, possivelmente toda aquela humanidade, empatia e compreensão do que estava acontecendo, talvez a cumplicidade dos mesmos sentimentos que ambas tinham, amarrados invisivelmente e não verbalizados, que trouxeram lágrimas nos seus olhos. Jane levou uma mão à boca para abafar um soluço. A porta da casa se fechou, mas em vez de estarem do lado de dentro, ambas estavam lá fora, no frio. Kendra passou um braço em torno do seu corpo ao mesmo tempo em que sua mão largou a maçaneta da porta. Jane nunca, nunca, permitiria ser abraçada nessas condições, e ela jamais cairia no choro na frente de qualquer pessoa. Mas esse era um dia diferente. Esse era um dia completamente fodido. O que ela vira naquela sala, jamais sairia de sua cabeça. O pior de tudo era que todas aquelas imagens, toda aquela história pertencia à pessoa que estivera sentada o tempo todo ao seu lado; pertencia à pessoa que ela amava. E agora, pertencia a ela também.

‘Você vai precisar respirar fundo, Jane. Todos os dias, até o final disso tudo.’ Kendra murmurou enquanto corria uma mão para cima e para baixo nas suas costas.

‘Não é como se eu nunca tivesse trabalhado num caso como esse.’ Ela disse enquanto se afastava, limpando o rosto. Seu olhar recaiu na rua negra, o asfalto agora coberto em um canto outro com neve acumulada. Ela odiava se sentir frágil e vulnerável, e, mais do que isso, ela odiava parecer assim.

‘É diferente, lembra? É diferente quando você tá envolvida com a vítima.’ Kendra a lembra, devolvendo as mãos dentro do casaco.

Jane se encolhe um pouco em desgosto com o uso da palavra. ‘Eu não consigo mais escutar alguém chamando ela assim.’

‘Perdão, eu não quis insinuar...’ Kendra suspira. ‘O que eu quis dizer é que você se sente mais afetada porque ela é alguém que você conhece. É natural que você não quer ver alguém que ama nessa situação. Eu sei que ela já está se recuperado e que o abuso ficou para trás, mas fotos trazem o rosto dela, quando a história é narrada pela promotora, é focada em realçar o quanto ela sofreu. As pessoas precisam se angustiar, Jane. É o jeito de chamar atenção para o que aconteceu com ela.

Ela não precisa de mais angústia, e se for um cargo pesado demais para ela?’ Jane pergunta num murmúrio, medo e incerteza fazendo seu coração bater um pouquinho mais rápido.

‘Eu confio de que não é. Ela se saiu bem até agora. Ela é uma batalhadora, você sabe.’ A loira mudou o peso sobre os pés, estudou Rizzoli por um instante.

Jane respirou fundo e se sentou no degrau da escada, abraçando o corpo que começava a ficar mais frio. Kendra a acompanhou. ‘Vale a pena, entretanto? Quer dizer… Ele já tá condenado, Kendra. E ela… Qual o objetivo de passar por tudo isso de novo?’ Ela esfrega o torço com as mãos, tentando se esquentar.

‘O objetivo é esse: mostrar que ela tem força suficiente para atacar de volta, para defender quem ela é, não recuar perante o ataque de um animal feito ele. É fazer ela se notar como forte e capaz de tomar decisões, de controlar a si mesma. Cada minuto que ela passar naquela corte, é essa mensagem que ela precisa entender: de que todo medo que ela tinha dele, são sombras grandes projetadas numa parede, e que na verdade ele é pequeno e capaz de ser vencido. Se ela não fizer isso agora, esse medo vai assombrá-la pro resto da vida.’

‘Eu sei, eu sei.’ Jane murmurou mais uma vez, enterrando o rosto nas mãos.

Silêncio recaiu sobre as duas, e o que estimulou Kendra a se manifestar primeiro, foi o frio. Elas estava tremendo.

‘Jane, vá para dentro. Você não precisa morrer congelada aqui fora nessa noite.’

‘Que tal nas outras?’ A morena perguntou, se levantando e batendo a neve grudada na calça.

Kendra lançou-lhe um olhar afiado, mas depois encolheu os ombros. ‘Eu não vou mais precisar dividir com você o título de melhor detetive da delegacia, soa bem para mim.’ E riu em seguida.

Jane revirou os olhos. As duas se despediram com um olhar, mas só quando Kendra estava prestes a abrir a porta do carro foi que Jane a chamou uma última vez.

‘Obrigada.’ Ela disse, com a ligeira desconfiança de que a detetive tinha visitado para saber como ela estava.

‘Maura?’ Jane entrou no quarto da loira, ainda esfregando uma mão na outra para livrar-se da sensação gelada. Ela viu a cabeça da menor aparecer pela porta do banheiro.

‘Aqui.’ Ela disse sem muita energia.

A detetive observou com curiosidade Maura escovando o cabelo. Ela tinha colocado a parte de cima do pijama de seda branco, enquanto apenas uma calcinha de renda azul clara contornava as curvas do seu corpo. Claramente, ela já tinha terminado o banho, o que fez com que Jane tentasse calcular quanto tempo exatamente tinha se passado desde que a outra subira para o banheiro.

‘Desculpa, eu estava quase dormindo na banheira, não acho que seria uma escolha sábia continuar lá.’ Ela se explicou, talvez porque tivesse conseguido sentir a confusão de Jane.

‘Tá tudo bem, amor.’ A morena avança em sua direção e beija sua bochecha. ‘Eu vou tomar um banho rápido também e me encontro com você na cama, ok?’

Maura concordou com a cabeça, e assim ela fez. Tomou um banho rápido, escovou os dentes e colocou uma calcinha e uma camiseta velha. Enquanto escovava o cabelo para dormir (Maura a convencera uma vez, e a única razão pela qual ela fazia isso todo noite agora, era que na manhã seguinte notara que os fios não amanheciam tão embaraçados) seus olhos recaíram sobre a mulher. Ela acabara de entrar no quarto com uma caneca de chá na mão, e Jane observava enquanto ela puxava a coberta da cama, tirava as pantufas dos pés – que na verdade eram as pantufas de Jane – e prendia o cabelo em um coque em cima da cabeça. Ela estava abatida e machucada, era verdade, mas Jane admirava que, mesmo sob as circunstâncias, a loira parecia dona de si, contida, e até mesmo mais madura do que fora antes. Ela não parecia mais aquela criança perdida como quando chegara no primeiro dia em sua casa; ela parecia ter mais alma, mais compreensão da vida, principalmente da sua que, sob a luz do que lhe acontecera, parecia rara. E também, da vida e dos sentimentos das outras pessoas, razão pela qual, Jane achava, ela se mostrara tão preocupada com sua família.

‘Jane!’ A morena piscou os olhos para se livrar do devaneio, depois de registrar a voz de Maura carregada por uma leve perplexidade por não ter sido ouvida anteriormente.

‘Eu, ahn, me desliguei.’ Ela disse a verdade, embora tenha omitido o porquê.

Maura inclinou a cabeça para o lado e abriu um sorriso. ‘Parece que você está tão cansada como eu.’ Suas mãos bateram de leve na cama, como se convidasse Jane a se sentar ao seu lado.

A morena não perdeu a deixa. ‘Se você me der um beijo, eu tenho quase certeza que vai recarregar minha bateria.’ Ela brincou, arrancando um sorriso cansado de Maura.

A loira se inclinou e beijou sua bochecha, e com o polegar acariciou a outra. ‘Aí está.’ E depois ela apertou suas mãos nas de Jane, e ninguém disse nada.

Os olhos verdes de Maura estudavam os dedos longos e elegantes de Jane enquanto seu polegar corria por cada um deles.

‘Não é o fim do mundo, Jane.’ Ela disse finalmente.

A morena não sabia se ela tinha sido uma afirmação, uma pergunta ou um pedido. Seus olhos negros se encontraram com os claros, pedindo esclarecimento.

‘Quando eu estava lá, sozinha, eu achei que o mundo tinha me esquecido, que ele continuava girando em sua pressa caótica e que eu tinha ficado para trás, sozinha e com medo. Incapaz.’ Ela falou com as palavras claras, mas com olhar um tanto distante.

Jane meneou a cabeça para mostrar que estava ouvindo e entendendo, e com um aperto carinhoso em sua mão motivou-a a continuar.

‘Mas eu estava enganada.’

‘Você estava sendo procurada.’ Jane enfatizou o que Maura já sabia.

‘Certo. E eu achei que, porque agora eu estou de volta, participar desse julgamento...’ Ela suspirou e franziu o cenho, brincou com os dedos da morena. ‘Eu sei que o pior para mim já passou, mas hoje eu assisti sua família e minha família se quebrarem um pouquinho. Eu não quero que isso pareça o fim do mundo para eles. Eu sei que eu sou capaz de enfrentar isso, Jane, mas é difícil ver todas as pessoas com que eu me importo se curvarem com o peso do que eles estão vendo e ouvindo lá.’ Ela terminou e descansou a cabeça no ombro de Jane. ‘O mundo precisa continuar girando.’

Maura estava cansada, então Jane puxou a coberta da cama e as duas se deitaram antes que ela pudesse responder. Uma mão acariciou as costas a loira, e seus lábios beijaram sua testa com carinho. Jane entendia. Ela sabia onde Maura queria chegar. Algumas feridas só iriam ser curadas com o passar dos meses, quando todo esse horror que ela tinha sido submetida fosse se apagando, do mesmo jeito que as pegadas na areia estão destinadas a serem apagadas pelas ondas do mar; do mesmo jeito que, com o passar do tempo, ela conseguiu planejar e atuar em seu escape; da mesma forma como ela vinha se curando dos males que foram causados. O horror tinha ficado no passado, e não havia necessidade de ser trazido a tona e ser sublinhado, nem para ela, nem para sua família.

‘Tente não se preocupar muito com eles, Maura. O tempo vai se encarregar de aliviar isso tudo.’ Ela se inclinou e beijou levemente os lábios da loira. ‘Eu quero que você pense em você, agora. Descanse quando puder, não se preocupe tanto com o resto disso tudo. É um processo tão cansativo, querida.’

Maura concordou com a cabeça, suspirou e piscou os olhos. Jane não precisou dizer mais nada, ela sabia que ambas estavam no limite. Virou-se para o lado e esticou o braço para apagar o abajur, mas a mão de Maura apertou sua cintura num pedido de atenção.

‘Jane, a luz pode ficar acesa?’ Ela murmurou.

É claro, ela temia os pesadelos. Jane temia seus próprios pesadelos. Ela concordou com a cabeça, ajeitou-se na cama e trouxe Maura para o mais perto que pôde de si. ‘Eu estou bem aqui com você.’ Ela disse e beijou a cabeça da menor antes de Maura esconder o rosto no seu pescoço.

Maura respirou fundo uma vez.

Jane estava lá, perto demais dela.

Ela temia que, entre todas as pessoas, Jane fosse a pessoa que seria destinada a sofrer mais com o julgamento. Seu lado racional sabia que sim. Seu coração desejava o não.

Mas seria o tempo que revelaria.


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