- escrita por Blue Butterfly


Capítulo 45
Quarenta e cinco


Notas iniciais do capítulo

Aviso: Esse capítulo contem conteúdo (sexual) forte e com gatilhos. Nada gráfico, mas se você for sensível a isso, não leia.



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Dia 2, Parte I

Jane estava com o celular no ouvido, e do outro lado da linha Maura conseguia escutar a voz alta e afobada de Frost, mas ela não conseguia distinguir as palavras. Pelo tom ela apenas conseguia identificar o estresse e nervosismo. Ambos estavam sobrecarregados com o caso que Jane se recusava a comentar com ela. Mas Maura sabia. Ela não era ignorante, cega e nem surda. Estava estampado nas notícias, nos jornais: um homem tinha estuprado e matado uma garota no campus da universidade. Eles não tinham prova fisica, mas tinham um suspeito, e o primeiro fato era o que estava deixando Jane louca.

Maura bebericou o chocolate quente enquanto estudava a morena do outro lado da cozinha, com ombro tensos, postura rígida. Os olhos verdes observaram lentamente o corpo de Jane. Maura conseguia conseguia lê-la, interpretá-la tão bem como os artigos médicos que lia toda noite.

Os olhos negros de Jane se encontraram com os dela, e pega por estar encarado, Maura ergueu uma sobrancelha sutilmente e desviou o olhar. Ela quase se sentiu culpada por prestar atenção em um assunto que não lhe dizia respeito, mas não era exatamente o assunto que lhe despertava interesse.

Era Jane.

A detetive nunca mencionara em qual caso estava trabalhando, quem era a vítima ou o porquê da comoção e estresse todo.

Ela nunca mencionara nada.

Mas Maura sabia.

...

Era tarde da noite quando a morena chegou em casa. Botas molhadas pela neve derretida e casaco de lã foram jogados no chão e ganchos, respectivamente, perto da porta principal de entrada. Maura virou a cabeça e sorriu para a morena, embora Jane ainda estivesse de costas, e ela não conseguiu deixar de estudá-la com curiosidade. Ela parecia exausta, ombros caídos para frente e pés se arrastando no chão, mas quando seus olhar encontrou Maura sentada no sofá, uma coberta abraçando seus corpo enquanto um livro repousava sobre seu colo, aquele sorriso que sempre estampava seu rosto quando a loira era a recipiente, estava lá.

Ela se sentou do lado da loira antes de dizer algo, abraçou seu corpo e beijou sua bochecha demoradamente. ‘Meu amor.’ Ela disse e suspirou, as mãos correndo num gesto de carinho pelas costas da menor.

Maura sabia que tinha algo de errado. Não era assim que Jane se comportava depois de um dia de trabalho - cansativo ou não. Ela sempre beijava Maura nos lábios, falava muito sobre assuntos aleatórios, perguntava sobre seu dia, abria uma cerveja e só então se acomodava no sofá.

Maura não era ingenua e não queria mais continuar fingindo que não sabia que algo grave estava afetando a morena. Ela segurou na nuca da outra, os dedos massageando gentilmente sua pele entre o cabelo. ‘O que há de errado, querida?’ Os lábios encontraram a testa da mulher num puro gesto de afeição, uma tentativa de fazer com que Jane se sentisse à vontade.

A detetive estalou a língua uma vez, um gesto pequeno mas que carregou tanto significado, como se estivesse zombando, não de Maura, mas da questão em si. O que não havia de errado? Era o que ela queria dizer. Só depois de alguns segundos, ela elaborou, uma resposta pobre e não muito explicativa. ‘Apenas trabalho, Maur. Alguns casos me afetam mais do que outros.’

 Como o meu, foi o que Maura pensou, mas não verbalizou.

Jane suspirou mais uma vez, suas mãos se fechando em punhos e se abrindo novamente, num gesto que poderia passar despercebido para quem não a conhecia, mas para Maura, ele era um sinal gritante de angústia e do sentimento de impotência que por vezes assombrava a morena. ‘Ei.’ Ela disse enquanto transferia o peso do corpo de Jane contra o seu, segurando-a num abraço que, ela esperava, oferecia abrigo e conforto. Seus lábios beijaram a tempôra, a bochecha, mais de uma vez. ‘É o caso daquela estudante da BCU?’ Ela perguntou, cansada de fingir que não sabia o que estava acontecendo. A mão de  Jane que estava em seu braço se retraiu e apertou a pele com leveza. Aí está, Maura pensou consigo, o ponto de tensão. Jane concordou com a cabeça, mas nenhuma palavra saiu de seus lábios. ‘Eu sei que você está fazendo tudo o que pode, Jane.’

A detetive mexeu a cabeça em não. ‘Mas não é o suficiente.’

Maura suspirou. Como apagar, minimizar ou desfazer aquela imensa verdade? Mas, como também, tentar colocar na cabeça de Jane tão-teimosa Rizzoli que o peso do mundo não era responsabilidade dela? Ela optou pelo silêncio e acariciou com o polegar o rosto da mulher, em vez de dizer palavras que não seriam ouvidas. Mas tinha algo mais, aquilo que Maura poderia identificar e colocar o dedo em cima, tão claro era. ‘Isso não pode ser uma retaliação, Jane.’ Ela murmura para a morena. ‘Prendê-lo não pode ser sua vingança pessoal.’ Ela disse com cuidado, porque se ela pressionasse a ferida deliberadamente, ela sabia que Jane iria respondê-la afiadamente. Então ela aliviou as palavras com outro beijo em sua bochecha, e, para seu alívio, Jane não retrocedeu.

Por acaso, dois dias atrás, Maura tinha encontrado com Korsak no pet-shop, enquanto perambulava no corredor procurando a ração favorita de Ciclone. E, nem tanto por acaso, ele tinha mecionado como Jane tinha corrido atrás de um suspeito, atacado e jogado o homem no chão com mais agressividade do que a situação pedia. Ela prometeu guardar segredo, se preocupando com a amizade entre os dois, e principalmente se preocupando com o estado emocional da morena.

Ela abraçou Jane um pouquinho mais forte naquela noite, prometendo para si mesma que não deixaria a detetive se desmontar. Não por esse caso, não por ela, não por ninguém.

‘Eu e ela, nós somos duas pessoas diferentes.’ Maura acrescentou e esperou que essa escolha de palavras, insinuante, fosse melhor do que eu não sou ela, porque a segunda escolha era óbvia e clara demais.

O corpo de Jane se sobressaltou sutilmente com o que poderia ser um soluço reprimido. Nenhuma palavra, apenas olhos fechados com força, repreendendo lágrimas. Nenhuma escorreu pelo seu rosto. Entre tudo, o que Maura notava era apenas a tensão ainda em seu corpo.

Jane não tinha dito nada, ainda.

Mas Maura a conhecia bem demais para pressioná-la a dizer.

...

Maura tentou primeiro com Kendra. A resposta, como ela esperava, foi negativa, sob o argumento de que Jane sabia o que estava fazendo e já tinha lidado com situações como aquela antes. Além de toda a outra conversa que as duas já tinham tido algumas vezes no passado.

Maura, então, recorreu à sua psicóloga. A mulher disse que entendia seus medos e anseios, mas que aquela questão em particular não envolvia a saúde mental da loira, sendo que aquele era apenas um traço do afeto pelo qual sentia por Jane, e não um sintoma da sua condição.

‘Eu sinto muito, Maura. Apesar de entender seu anseio, não há nada que eu possa fazer. Essa questão está completamente fora do meu alcance.’

‘E se Jane vier aqui? Para uma sessão?’ Ela insistiu.

‘Eu não posso, de maneira alguma, obrigá-la a fazer qualquer escolha.’ Ela devolveu.

‘Entendo.’ Maura murmurou, tamborilando os dedos sobre as pernas.

‘Por que você não me fala como se sente em relação a isso?’ A mulher a motivou.

Maura concordou com a cabeça, mas não falou nada depois de um tempo considerável.

No final daquela semana, ela decidiu jogar sua última carta: a da honestidade. Isso é, se Jane concordasse em, pelo menos, escutá-la.

Ela viu a oportunidade surgir em uma noite quando Jane se ajeitava na cama, puxando a coberta para cima de seu corpo. Maura estava sentada, terminando de ler um capítulo de um romance, quando fechou o livro e dirigiu sua atenção ao que lhe era mais importante no momento.

‘Jane, dentro de poucos dias eu preciso voltar para a corte, para testemunhar.’ Sua voz soou passiva de qualquer tipo de sentimento. Era apenas uma informação, uma observação.

‘É, eu sei.’ Jane disse e segurou sua mão num gesto de conforto, de compromisso e encorajamento.

Maura sentiu lágrimas nos olhos. Não era aquilo que ela realmente precisava. ‘Eu preciso te pedir algo.’ Ela murmurou, agora um tanto hesitante.

‘O que é, querida?’ E a voz de Jane dizia o que você quiser, eu te dou. Tudo o que quiser.

Sua garganta se fechou mais um pouquinho, mas ela precisava dizer. Precisava afastar Jane pelo próprio bem dela. ‘Eu não quero que você vá.’ O tom era educado e determinado ao mesmo tempo, mas a morena já estava balançando a cabeça em não.

‘Nós já conversamos sobre isso, Maura.’ Era decisivo, inflexível e autoritário, tanto, que ela nem se deu o trabalho de olhar para a loira. ‘Minha família vai estar lá por você, para te apoiar, por decisão deles.’ Tudo o que quiser, menos isso.

Maura mordeu o lábio inferior e fechou os olhos, porque a lealdade de Jane era tão intensa, inquestionável e inabalável que ela não tinha entendido. Ela inspirou lentamente, tentando acalmar o coração que batia fortemente contra seu peito.

‘Não, Jane. Não sua família.’ Ela começou e explicou com mais clareza dessa vez. ‘Eu não quero que você vá.’ Ela tentou lutar com toda sua força contra as lágrimas que se acumularam nos olhos quando o olhar de Jane, agora confuso e quase magoado, pairou finalmente sobre seu rosto.

A morena se sentou na cama lentamente, ainda tentando entender a situação antes de reagir. ‘Por que?’ Ela perguntou simples e curiosamente.

Foi um soco no estômago de Maura. Ela estava esperando por mais teimosia, argumentação, mas não essa abertura para compreensão. Ela abriu e fechou a boca algumas vezes, tentanto se orientar e elaborar algo para dizer. Para ganhar tempo, ela também se sentou na cama e colocou sua mão sobre a da mulher. ‘Você já sabe o que aconteceu. Você esteve aqui o tempo todo, Jane. Eu temo que assistir essa sessão só vai  te sobrecarregar, ainda mais. A sua semana tem sido difícil, e eu odiaria ser a razão do acréscimo de estresse nela.’

Jane estava num estado que deveria ser bem perto do de choque. Ela franziu o cenho e inclinou a cabeça para o lado, e pela primeira vez a loira temeu confessar algo para ela. ‘Você acha mesmo que eu vou fazer isso? Simplesmente assistir você entrar naquela sala e ficar do lado de fora enquanto você passa por esse inferno todo?’ Ela perguntou com a voz baixa, o que soou bem próximo de um rosnado.

‘Eu não estou duvidando da sua integridade, Jane. Eu estou pedindo para que você se retire de cena nesse momento porque eu estou vendo, dia após dia, como você tem voltado exausta do trabalho, em como esse caso está te afetando, e em como você está associando -’

‘Não.’ Jane a interrompeu, mas Maura insistiu.

‘Em como você está associcando ao meu.’

‘Eu não estou.’ Ela teimou.

‘Jane.’ Maura segurou o rosto da morena e beijou sua bochecha. ‘Por favor, seja razoável.’

Impulsiva, como sempre fora, Jane se afastou do toque e levantou da cama. ‘É o que eu tô tentando fazer.’ Ela respondeu infantilmente, sua teimosia e orgulho tomando o melhor de si.

‘Jane!’ Maura protestou, acompanhou a caminhada da outra com o olhar. ‘Onde você está indo?’

‘Tomar um chá para me esquentar.’ Ela respondeu a contragosto e deixou o quarto. Talvez ela tenha levado o coração de Maura e todos os outros orgãos junto, porque era assim que ela se sentia: vazia por dentro.

...

Jane voltou para a cama três horas depois, braços longos e fortes apertando o corpo de Maura como faziam toda noite, com um toque de proteção e cuidado que nunca se provavam vazios.

‘Eu não quero que nada disso atinja você.’ Maura murmurou sem se virar para a morena, sua voz rouca por ter chorado sua frustração de mais cedo.

‘Nada dói mais do que quando você me afasta.’ Jane devolveu sem maldade, beijando a nuca da loira.

‘Eu não estou afastando você.’ Maura se virou e apertou um braço na cintura dela para reforçar suas palavras.

‘Eu assumo os riscos.’ Jane beijou sua testa e depois seus lábios. ‘Eu assumo as consequências.’ E foi seu último e único argumento. Tão honesto, numa súplica carregada de dor.

Algo dentro de Maura se estilhaçou.

‘Não me deixa do lado de fora, Maur.’

E se consertou de novo.

...

Maura se sentia enojada, insegura, exposta e ansiosa. Como um verme rastejando em sua pele, cada pergunta soava gélida, parecia se arrastar pelo seu corpo, arrepiando cada pelo, embrulhando seu estômago, trazendo junto aquela sensação de repulsa. As palavras que saiam de sua boca voltavam como um eco: ampliadas, gritando de volta para si mesma, mas Maura tinha certeza de que se ela dissesse ‘isso aconteceu comigo’, a voz diria de volta ‘isso aconteceu com você.’ 

Do momento em que ela tinha sentado na cadeira, de frente para uma audiência inteira, o olhar de Jane não pairava sobre outra pessoa, senão ela. Olhos escuros, sombrios e afiados como de uma águia, como se não aprovasse o que vinha escutando, mas também suaves, gentis e motivadores, como se reforçassem todo seu apoio - e Maura usava esse último como incentivo para continuar, para traçar logo a linha de chegada e depois, finalmente, se jogar nos braços de Jane.

‘Maura?’ A promotora a chamou pela, o que deve ser, segunda vez.

A loira retirou os olhos sob Jane e encarou Miranda com um pedido de desculpas no olhar.

‘Eu entendo que isso vai ser difícil para você. Mas você se importaria em nos dizer qual foi o tratamento que você recebeu enquanto em cativeiro?’

Maura lambeu os lábios, tentando decidir por onde começar. Notando sua confusão, a promotora direcionou-a. ‘Que tal pelos primeiros dias? Se ele te ofereceu alimento, água.’

Maura balançou a cabeça em negativo. ‘Não,’ ela disse num murmúrio. ‘Nada de comida nos primeiros dias. Água... no terceiro, eu acho.’ Ela apertou os dedos um nos outros, não ofereceu mais nada.

Miranda deu um passo para frente e perguntou com a voz suave. ‘Você pediu por comida? Por água?’

‘Diversas vezes. Ele sempre me ignorava, ou me chantageava, ou me desdenhava. Na maioria das vezes ele tinha um sorriso no rosto, como se divertindo-se da situação.’ Ela disse com os olhos baixos, e depois encarou Miranda como para se certificar de que estava respondendo corretamente o que fora perguntado. Um meneio de cabeça deixou entender que sim.

‘Que tipo de chantagem?’ A promotora pressionou, e Maura sentiu o ar ser expelido dos pulmões. Ela não previu a pergunta, logo, não calculou o custo da resposta. Ela suspirou, lançou um olhar para Jane. A morena meneou a cabeça em sim. Continue. E depois o ollhar de Kendra. O mesmo menear, a mesma motivação.

‘Ele... tentou me tocar tantas vezes que perdi a conta. Eu lutei contra ele quantas vezes eu pude, e quando a agressão ficava pior, quando eu reagia com mais vigor, era o que ele gritava para mim: sem comida, sem água.’

‘Essa era a moeda de troca? Foi isso o que você precisou fazer das poucas vezes que recebeu algum alimento?’ A promotora pressionou mais, e Maura se sentiu um tanto quanto irritada, mesmo que a pergunta tivesse sido feita sem acusação nenhuma.

‘Eu estava morrendo de sede e fome, fracas demais para lutar. Que escolha a mais eu tinha?’ Sua resposta tinha saído com um tanto de raiva e indignação, e logo após a explosão ela se sentiu terrivelmente culpada por responder duramente para quem não tinha culpa nenhuma do que tinha lhe acontecido.

Houve uma pausa momentânea, em qual o ar do lugar pareceu ficar mais denso, mais difícil para respirar. Ela olhou para Jane, e a expressão da morena permanecia exatamente a mesma de antes. Revolta, companheirismo, força e cuidado expressados de uma vez, estampados em suas feições com tanta firmeza que Maura não pôde deixar de compará-la a uma estátua esculpida com a mais pura das expressões humanas.

‘Ele te agredia.’ Miranda estava falando de novo, e Maura voltou sua atenção para ela com um balançar de cabeça.

‘Principalmente quando eu lutava contra ele.’ Ela respondeu num murmúrio, se deu conta da escolha de palavras e desejou ter pensado melhor antes de se expressar.

‘Alguma vez ele te agrediu por outra razão que não tenha sido sua auto-defesa?’

Maura se enfureceu com a pergunta. Havia tantos sentimentos rodopiando dentro de si que ela não conseguia raciocinar direito, e a pergunta mal colocada despertou raiva, assombro, indignação. ‘Sexualmente? Verbalmente? Que tal meu direito de liberdade?’ Ela continuaria enumerando, mas Miranda ergueu uma mão em desculpas e elaborou.

‘Permita que eu reformule minha pergunta, Maura. O que acontecia quando você não defrontava ele?’

Ali estava. De novo, aquele verme gosmento e mole se rastejnado pelo seu corpo. Ela mordeu a parte interna da bochecha para evitar a onda de náusea. Respirou fundo, checou Jane, Kendra, seus olhares.

‘Algumas vezes ele só dizia coisas.’ Ela começou.

‘Como...?’

Maura fechou os olhos e tentou se lembrar de algumas delas. Quando a memória recuperou partes de cenas, ela repetiu-as. ‘Você está sozinha. Você me pertence. Eu vou tomar seu corpo.’ E sua voz quebrou aqui, e ela precisou tomar ar para expandir o tórax, tentando, também, expandir e se desfazer do aperto no peito.

‘E das outras vezes?’ Miranda perguntou de novo, dessa vez com a voz mais suave.

Maura fechou os olhos e respirou fundo, e quando eles voltaram a ser abrir, estavam carregados de lágrimas. Ela se lembrava de todas as vezes que ela não tinha lutado contra ele, de como sentia seu corpo fraco como se estivesse doente por mil anos, de como sua cabeça pesava por conta da desidratação, e de como cada movimento custava tamanho gasto de energia. E, pior, ela se lembrava das mãos dele no seu corpo, ásperas e fortes e nada gentis, contrastando com sua voz fraca, suplicando para que ele não a tocasse.

Suas mãos tremiam com uma mistura de raiva, desejo de vingança, ódio. Seus olhos recaíram sobre Jane mais uma vez. A morena permanecia imóvel, escutando cada palavra, estudando cada gesto seu. Ao seu lado, Frankie a observava com o queixo um tanto baixo, como se constrangido por ouvir algo tão pessoal que não dizia respeito à ele.

Frankie.

Maura fixou o olhar nele, sem se dar conta de que o tempo continuava passando.

...

'Okay', Frankie disse para ela, 'você precisa dobrar um pouco os joelhos. Seus braços precisam estar dobrados nesse ângulo, nessa altura', ele mostrou como o próprio corpo e Maura imitou com perfeição. 'Mantenha o peso sobre os pés, e na hora do soco não use o ombro para se equilibrar. Se você fizer isso e o saco se mexer fora do lugar, você vai se machucar. Ok?'


'Ok.' Ela disse, tentando se lembrar de todos os detalhes.

'Manda ver.' Ele incentivou.

Ela bateu uma vez no saco de pancadas, primeiro fraco, apenas testando a luva, a sensação, o peso voltando contra seu corpo. Na segunda vez, ela investiu com força, dessa vez com a mão direita. Ela ficou surpresa com a dor que ardeu em seu punho. Indignada, ela o girou várias vezes no ar a fim de aliviar a sensação incômoda. A última vez que ela sentira dor naquele punho, tinha sido quando conseguira se livrar das algemas que a prendiam no cativeiro. Fúria rastejou-se por todo seu corpo, e ela girou os ombros duas vezes para tentar se livrar da tensão. Como se por vingança, ela tentou se lembrar de novo e de novo de que, dessa vez, era o causador de seus pesadelos que estaria preso em uma jaula. Não ela.

'Você tá bem?' Frankie pareceu preocupado, provavelmente porque sabia que se Maura se machucasse, Jane arrancaria sua cabeça com os próprios dedos.

'Não é nada, obrigada.' Ela dispensou a preocupação dele, e bateu tentativamente algumas vezes no saco.

Ele não insistiu e continuou revirando as coisas que encontrava na garagem da casa da mãe. Ferramentas, decorações velhas, um móvel bem conservado que descansava no canto esquerdo, uma caixa de brinquedos. Distraído, ele só percebeu o que Maura estava fazendo quando ouviu uma arfada. Ela entregava os socos com força, seu rosto vermelho e retorcido em raiva. A mulher era menor do que ele e bem mais magra, mas assistindo-a depositando tanta força contra um objeto inanimado, com tanta voracidade, lhe causava certo medo.

'Maura, Maura!' Ele chamou, caminhou em sua direção e colocou um braço sobre os dois dela. 'Assim você vai acabar se machu...' Sua frase morreu antes de ser terminada, porque só então ele notou que ela tinha lágrimas nos olhos. 'Ei, você tá bem? Você quer que eu ligue para Jane?'

'Não!' Ela exclamou com urgência, quase raiva. Depois, se dando conta do tom, disse mais suave, 'não, por favor. Eu estou bem.'

'Você não parece bem.'

Ela tentou limpar os olhos mas as luvas eram grandes demais e faziam da missão, uma impossível. Em vez disso, então, ergueu o braço e escondeu o rosto, respirando fundo várias vezes. 'É só um ataque de raiva.' Ela se justificou um tempo depois, fungando.

'Ah. Entendo.' Ele disse, se colocou atrás do saco de pancada e o segurou. 'Vem.'

Maura olhou para ele, confusa. 'Perdão?'

'Descarrega toda sua raiva. Eu vou segurar para ficar mais fácil para você. Só toma cuidado com seus ombros e punhos, ok? Finge que você tá batendo em mim.'

Ela inclinou a cabeça levemente e a jogou para o lado. 'Mas não é de você que eu estou com raiva.'

'Faz de conta que eu sou a pessoa que você quer socar a cara, no final, a satisfação é a mesma.' Ele abriu um sorriso brincalhão – o mesmo que aparecia no rosto de Jane – e meneu a cabeça. 'Com toda força que você tiver.'

Ela sorriu levemente e concordou com a cabeça, e bateu até que seu rosto estava vermelho com o esforço, as mãos doendo e os ombros queimando. Ela definitivamente tinha um longo caminho para aprender a técnica correta para boxear, mas aquela tarde com Frankie tinha sido produtiva de outra maneira. Ela nunca tinha descarregado sua raiva daquela maneira antes, e agora que fizera, ela aprendera que colocá-la para fora seria sempre a melhor solução.

...

‘Maura?’ Miranda a chamou com um tom de preocupação na voz.

Maura engoliu o nó na garganta, abriu as mãos e fechou uma vez. Por que não direcionar aquela raiva que estava sentindo para algo produtivo? ‘Ele se agachava primeiro, todas as vezes, na minha frente, como se eu fosse um animal abatido, estudando a possibilidade de se aproximar ou não. Nos dias que eu me sentia mais fraca, era quando ele se aproximava de mim. Primeiro tocando meu rosto, depois o resto do meu corpo, como se me avaliando.’ Ela disse tudo de uma vez, num impulso de raiva.

‘O que você quer dizer com como te avaliando?’ Miranda pediu para que ela esclarecesse.

Maura deu de ombros. ‘Eu não sei, mas ele sempre dizia que eu ainda não estava pronta.’

‘Você acha que as ações dele eram desempenhadas por algum tipo de fantasia sexual?’

‘Sim.’ Maura disse sem dúvidas, mas num murmúrio.

‘Se importa em elaborar?’

Me importo, Maura pensou, mas não verbalizou. Ela manteve os olhos abaixados e ela sabia que aquele era o fim de uma estrada, o começo de outra. Culpa, medo, aversão e nojo fizeram com que ela se encolhe-se na cadeira. Seu desejo mais profundo era fechar os olhos e se teletransportar para outro lugar, assim como um persongagem de um filme que ela vira com Jane conseguia fazer. Mas a realidade era que ela estava presa ali, o centro das atenções, com todos os olhos voltados para ela. ‘Ele...’ Ela começou e precisou tomar ar. Pela visão periférica ela viu Jane se inclinar para frente, como se sentindo de que havia algo errado. Sua respiração ficou pesada e lágrimas caíram de seus olhos. Com um olhar rápido para Kendra, a mulher meneou a cabeça para dizer que continuasse a falar, que não recuasse agora. Ela se lembrou de cada conselho da detetive, mesmo os que Jane não concordava. Com um segundo restante, ela fez sua decisão. ‘Ele se tocava depois de... me assediar.’ Duas lágrimas caíram em sua perna, e elas pareceram tão pesadas quantos as palvras que acabara de dizer. Um murmurinho de exclamação se espalhou pela sala do tribunal, e morreu tão ágil como começou.

‘Maura, uma última pegunta, ok?’ Miranda disse com a voz mais baixa, como se pudesse acalmá-la.

Ela concordou com a cabeça, limpando as lágrimas dos olhos.

‘Ele fez com que você o tocasse?’

Seu estômago se revirou e ela sentiu bile subir por sua garganta. Com esforço, ela engoliu saliva e apertou os dentes com força. ‘Sim. Em troca de água.’

E depois ela enterrou a cabeça nas mãos e perdeu o controle sobre suas emoções.

...

Em sua memória, ela não soube registrar o que aconteceu primeiro: Kendra abraçando seu corpo e dizendo com a voz calma e suave que ela não tinha feito nada de errado e que nada daquilo era culpa dela, ou a porta - daquela sala aleatória que estavam - se abrindo com força e fechando. E então a voz de Jane que a fez pular.

‘Você mentiu?’ Ela perguntou no que pareceu um rosnado. Maura se sobressaltou nos braços de Kendra e virou para a morena, parte ofendida, parte perplexa.

‘Você mentiu para mim ou para a juíza, Maura?’ Ela inssistiu.

Maura engoliu seco e balançou a cabeça em não, lágrimas ainda rolando pelo rosto, sua voz perdida em algum lugar. Ela não tinha mentido - mas ela tinha muito bem omitido aquela parte do abuso, em partes porque queria esquecer, em partes porque quando ela finalmente se sentiu pronta para falar sobre aquilo, ela achou que o momento de compartilhar com Jane o que tinha passado no cativeiro, além do que ela já tinha contado, tinha passado.

‘Ela não mentiu, Jane.’ Foi Kendra quem respondeu, ainda acariciando as costas da loira.

Maura assistiu confusão se estampar no rosto da morena, depois mágoa e dor, como se a compreensão fosse acordando cada sentimento. ‘Você mentiu para mim, então.’

‘Jane, eu não menti para você.’ Maura levou as mãos para frente, como se pudesse interromper aquela linha de pensamento, como se pudesse, com aquele simples gesto, paralizá-la e obrigá-la a escutar sua explicação.

Mas Jane estava machucada e claramente se sentindo traída. ‘Eu te perguntei uma vez, e você ficou na defensiva, quase ofendida com minha pergunta.’ Ela acusou, seus olhos negros, profundos e furiosos.

‘Você me perguntou algo completamente diferente!’ Maura atirou as palavras com sua própria fúria, sentindo os dedos de Kendra apertaram em torno de seu braço, uma pequena nota pra que ela não perdesse a cabeça.

‘Como, por Deus, você pode achar que isso é mais aceitável, Maura? Ou que foge da categoria de abuso sexual?’ Ela disparou. Sua voz quebrou com as últimas palavras e ela levou uma mão ao rosto para tentar se controlar. Suas mãos estavam tremendo.

A voz de Maura respondeu pequena e frágil. ‘Não foge.’ Ela fungou, os olhos no chão. ‘Mas não foi isso que você me perguntou.’ Ela sabia que era uma resposta pobre, mal elaborada e injusta, mas ela sabia também que Jane, naquela altura, não entenderia seus motivos. Ela se sobressalta pela segunda vez quando a morena pousa a mão em punho na mesa mais próxima, num ataque de raiva.

‘Merda!’

‘Rizzoli!’ Kendra exclamou e esticou um dedo para ela. Maura se sobressaltou pela terceira vez em menos de cinco minutos.‘Você está agredindo patrimônio público e perturbando minha testemunha. Se recomponha, ou eu vou pedir para que você se retire.’

‘Desculpa.’ Ela jogou as mãos para cima, se redimindo. ‘Me desculpa, eu não estou brava com você, Maura.’ Ela se aproximou e segurou o rosto de Maura nas mãos, e naquele momento a menor queria implorar para que Jane a carregasse para casa. Em vez disso, ela suspirou quando os lábios da detetive encontraram sua testa e se deixou perder no abraço que recebeu em seguida. ‘Você deveria ter me contado. Isso é inaceitável. É inaceitável.’ Ela repetiu, mais para si mesma do que para Maura.

‘Eu vou dar a vocês alguns minutos.’ Kendra disse e apertou o braço de Jane e lançou um olhar significativo para ela.

Ela esperou até que a porta estivesse fechada e só então continuou. ‘Era por isso que você queria que eu não viesse? Era por isso, não era?’

Maura balança a cabeça em não, e depois, como se tivesse refletido melhor sobre a questão, em sim. ‘Eu sabia que você iria reagir assim. E eu estava pronta para te contar bem antes disso, mas não havia mais momentos oportunos, e nossos dias estavam sendo leves e livres desse drama, então eu só coloquei de lado porque eu nao queria causar mais comoção.’ Ela limpou os olhos com as mãos e suspirou. Ela não pressionou e não adicionou que, na verdade, a razão pela qual não queria Jane ali era diferente. Ela sabia, sim, que a morena reagiria daquela forma, mas o que era mais grave era que Jane vinha engarrafando todas as emoções negativas, e Maura temia que logo, logo ela iria explodir. ‘Eu sinto muito, Jane.’

A mão da morena apertou sua nuca com carinho, e num abraço ela ninou a menor lentamente. ‘Não. Não, Maura. Eu é quem sinto, querida.’


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