- escrita por Blue Butterfly


Capítulo 36
Trinta e seis




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Ela cobriu os ouvidos com as mãos e começou a contar.

Um.

Em baixo da cama, era assim que ela aprendera a se defender – desaparecer – quando seu padrasto chegava bêbado em casa e começava a gritar com sua mãe. Na maioria das vezes ela contava os números no ritmo das batidas de seu coração. Ela conseguia sentir a pulsação contra o seu peito, pressionado firmemente contra o chão gelado do seu quarto.

Vinte e dois.

Ela tinha apenas nove anos de idade mas sabia uma sequência imensa; uma professora lhe dissera na escola que os números eram infinitos, então ela sabia que não importava quanto aquele barulho todo fosse continuar, ainda haveria tantos outros números esperando para serem contados e, caso ela esquecesse a sequência, poderia simplesmente começar do zero outra vez.

Trinta e um.

As mãos pequenas pressionadas para abafar o som não funcionava muito bem. Eles gritavam tão alto lá da sala. Além das vozes, objetos caindo ao chão. Passos pesados fazendo o piso de madeira ranger de um lado para outro. Um segundo de silêncio, em seguida, explosões de vozes. Era assim que funcionava e ela sabia que se não quisesse entrar em problemas, como da última vez, deveria permanecer assim: calada. No dia seguinte sua mãe apareceria com os olhos inchados, hematomas marcando diversos lugares em sua pele, mas ninguém nunca comentava nada.

Antes, ela chorava. Agora, entretanto, ela entendera que o choro poderia entregar seu esconderijo, então ela mordia o lábio quando as lágrimas vinham e se concentrava nos números.

Quarenta e sete.

Em sua mente, ela pedia repetidas vezes para que aquilo parasse, para que fosse a última vez. Seus braços ficavam muitas vezes cansados e seus joelhos doíam contra o chão duro, só que ela não se queixava. Existia uma dor pior, então ela preferia aturar aquela.

Cinquenta e quatro.

Algumas noites, quando tudo era muito ruim, ela dormiria ali mesmo; a coberta puxada da cama lhe ofereceria calor necessário para se manter viva em noites frias. Aquilo um dia pararia e ela dormiria em paz em sua cama macia, sua mãe não choraria mais, e nem ela, e tudo ficaria bem. Um dia.

Sessenta e três.

Ela só não poderia imaginar que seu pedido seria atendido tão rápido.

'Kendra?' A voz de Bob veio firme e ela abriu os olhos de repente com um sobressalto. O sofá estava tão macio e quentinho que ela nem se pegou caindo no sono.

'O que é?' Ela resmungou, esfregou os olhos e lançou um olhar mal-humorado para ele. Ela estava tão cansada, mais do que gostaria de admitir.

O cabelo preto do irmão apareceu sobre ela, depois o rosto simétrico e aquele sorriso que ganhava qualquer mulher. Os olhos escuros e gentis, um tanto brincalhões, piscaram para ela. 'Você parecesse péssima.' Ele comentou.

'Obrigada. Acho que posso descartar meu sonho de aparecer na capa da Vogue.' Ela devolveu, suspirando e se remexendo no sofá. 'Tirando seu comentário galanteador, qual a razão de você ter atrapalhado meu sono?' Ela perguntou, nenhum pouco interessada.

'Seu celular tava tocando.'

'Hmmm.' Ela respondeu longamente e, como se entendendo o estado improdutivo da irmã, Bob voltou segundos depois com o aparelho na mão.

Ele estava tocando de novo.

'É Caroline.' Ele disse, gravemente.

Os dois trocaram um olhar assustado, ela se sentando rapidamente. Só havia uma razão pela qual Caroline ligava para Kendra: seu pai. Com o coração palpitando fortemente contra o peito, ela atendeu rapidamente a ligação.

'Oi, sou eu.' Ela disse sem formalidades. Caroline era uma das médicas que por vezes tomava conta do pai dela, mas em algum ponto elas acabaram se tornando amigas. Em dias menos complicados, as duas se encontravam para uma bebida, conversas leves e descompromissadas em bares. Essa ligação, entretanto, nada tinha a ver com encontros amigáveis – elas sempre combinavam suas saídas por mensagens, nunca ligações. Isso dito, o coração disparado era resultado de más notícias envolvendo seu pai.

'Kendra, você precisa vir aqui. No hospital, eu quero dizer.' A mulher disse com urgência do outro lado da linha.

'Como ele está? Nick não nos ligou, era para ele cuidar do meu pai!' Nick era o irmão mais velho dos três. Kendra, a mais nova. Quando o câncer do seu pai foi descoberto, os três passaram a fazer rodízio para ajudar a cuidar de sua saúde. A mãe dos três por vezes ajudava, mas separados já por sete anos, os filhos sabiam que os dois não conseguiam ficar muito tempo perto um do outro.

'Não tem a ver com o seu pai, felizmente. Nós precisamos de você aqui. Eu acho… Kendra, apenas venha aqui, ok? Eu não quero me adiantar, mas acho que alguém que você estava procurando acabou de aparecer no nosso pronto-socorro.'

Com isso, a loira abriu bem seus olhos azuis em espanto. Ela abanou as mãos para o irmão como se só aquele gesto explicasse tudo. 'Não é o pai, é trabalho. Eu preciso ir.' Ela disse tão rápido que sua língua acabou se enrolando com as palavras.

'Dirija com cuidado.' O irmão respondeu, parecendo preocupado. 'E tecnicamente você já terminou seu turno.' Ele lembrou.

'É algo grande.' Ela rebateu antes de fechar com força a porta.

Claro. Trabalho sempre era algo grande para Kendra.

Ela passou com pressa pelas portas do hospital. Como ensaiado, juntou o distintivo na mão e mostrou para a secretária no balcão de entrada.

'Detetive Coleman. Recebi uma ligação da doutora Perks, ela está esperando por mim.'

A mulher sentada na cadeira digitou algo no computador, olhou de volta para Kendra com antipatia. 'Segundo andar, quarto 208.'

'Obrigada.' Kendra respondeu depois de já ter começado a andar. Ela sabia que a mulher estava emburrada porque, no mínimo, não tinha uma boa impressão sobre Kendra. Sim, ela era mandona. Sim, ela respondia aos seus instintos, mas ao contrário do que aquela mulher pensava, a detetive não usava seu poder para conseguir tudo o que queria – como, por exemplo, vasculhar o quarto de um paciente quando bem entendesse. Isso seria abuso de poder, e Kendra gostava de seguir regras.

Ela tomou o elevador e bateu o pé no chão com impaciência. Uma vez que as portas metálicas se abriram, ela pulou para fora e procurou o número na porta dos quartos.

208.

Lá estava. Antes que pudesse bater à porta, entretanto, Caroline saiu de lá às pressas, quase esbarrando na detetive.

'Ow.' Ela exclamou, segurando com delicadeza os ombros da médica. 'Por que a pressa, senhor coelho?' Ela brincou e a mulher – mais baixa e de cabelo da cor de mogno – suspirou um misto de preocupação e alívio.

'Você já está aqui. Ótimo.' Ela inspirou fundo, como se controlando a respiração. 'Você não vai gostar do que vai ver.' Ela ergueu um dedo para advertir. 'E Kendra, não se aproxime muito dela, ok? Ela não está respondendo bem ao contato físico.'

A loira franziu o cenho, meneou a cabeça. 'Criança?'

Caroline chacoalhou a cabeça. 'Maura Isles.' Ela murmurou, os olhos castanhos implorando compreensão imediata, como se saber daquilo por si só fosse tão pesado; em contraponto, ela tinha dito como se ninguém mais pudesse saber.

'Você tem certeza?' Kendra perguntou, duvidosa. Havia dias que eles estavam trabalhando para encontrá-la, e saber disso, assim, como se o desfecho para aquele caso caísse do céu, parecia fácil demais. Enganoso.

'Absoluta. Primeiro porque eu reconheceria aquele rosto coberto de lama, e segundo, ela mesma disse seu nome. E pediu por você.' A outra disse com pressa.

'Ok, primeiro: você precisa melhorar suas comparações. E segundo: pediu por mim?'

'Pela polícia.' A outra esclareceu, fazendo um gesto com as mãos.

'Me dê alguns minutos com ela.'

'Espera.' A outra segurou seu braço. 'Eu sei que você veio tratar de assuntos policiais, mas por favor, tente convencê-la a nos deixar colocá-la no soro, pelo menos. Ela está desidratada, mal nutrida. Ela não pode continuar assim.'

Kendra a encarou por um instante, e ainda que sentisse aquela necessidade de conferir a vítima com os próprios olhos, ela precisava de clarificação. 'Certo, me conta tudo do começo. Como ela veio parar aqui? Em que estado chegou? Me conta tudo o que você sabe.'

'Ela foi admitida por dois enfermeiros. Eles estavam na porta de entrada do pronto-socorro, disseram que um senhor dirigiu-a até aqui. Tão logo eles a colocaram na maca, ela apagou. Nós fizemos o check-up principal: respiração, pulso e pressão arterial, procuramos por traumas em seguida. Eu a coloquei no oxigênio porque a pressão dela estava baixa, mas quando tentamos o soro...' Ela balançou a cabeça. 'Ela acordou, afastou os enfermeiros com mãos e pés, pediu para não ser tocada.'

'Esse senhor ainda está aqui?' Kendra pegou o celular e discou um número.

'Na sala de espera. Ele se recusa a ir embora sem ter notícias dela.'

'Caroline, você se lembra de Nicole? Eu vou pedir para ela encontrar com você aqui. Por favor, fique com ele até que Nicole chegue, explique em particular o que aconteceu e depois ela vai saber o que fazer, ok?'

'Ok.'

A loira levantou a mão, pedindo por um minuto de silêncio. Quando Nicole atendeu o celular, Kendra deu instruções de onde encontrá-la e do que fazer.

'Certo.' A detetive disse assim que encerrou a ligação. 'Eu preciso entrar nesse quarto. Eu tenho um último pedido.' Ela adicionou. 'Eu preciso que você reúna todos que tiveram contato com a vítima, que sabem quem ela é. Você precisa dar ordens claras para que isso permaneça em sigilo. Você pode fazer isso?'

A cabeça de Caroline se moveu numa afirmativa, os olhos agora mais preocupados do que antes.

'É por isso que você é minha companheira de crime.' A loira brincou e apertou o braço da médica antes de passar por ela. 'Eu falo com você em alguns minutos.'

Ela respirou fundo, acalmou as batidas do coração enquanto segurou a maçaneta da porta.

Ela não estava pronta para o que viria em seguida.

'Oi, garotinha. Você quer se sentar aqui comigo e desenhar? Eu tenho algumas folhas e canetinhas.' A mulher tinha oferecido para ela, um sorriso amigável no rosto, uma voz macia e convidativa.

Mas ela era esperta e não confiava nas pessoas. Ela permaneceu imóvel, do jeito que sempre fazia quando queria ser ignorada pelo mundo. Abaixou os olhos e estudou os sapatos – o par de tênis velho e sujo que sempre andava por aí. Ela limpou o nariz com a manga da camisa e mordeu o lábio inferior para não chorar. Se ela chorasse, seria pega.

Não chore. Conte.

Um.

A mulher de cabelo preto tinha se aproximado dela, não muito, mas ela estava mais perto. Ela não parecia representar uma ameaça, mas a primeira vista ninguém parecia. Se ela não se mexesse, não se meteria em problemas.

Doze.

'Meu nome é Elena. Você pode apertar minha mão, assim como os novos amigos fazem?' Disse a mulher para ela, os olhos gentis esperando sua resposta.

Amigos. Ela tinha tido um ou dois, mas agora quase não os via. Ela estaria sendo muito boba em pensar que aquela mulher queria ser sua amiga? Ela era tão mais velha. Gente grande só causara problemas em sua vida, até então. Por que ela confiaria nessa desconhecida?

Para primeiro de conversa, não fora essa mulher que a tirara se sua casa? De seu esconderijo? Desde que isso acontecera, ela não tinha visto mais sua mãe. Nem seu padrasto, mas esse último ela não fazia questão. A lembrança da mãe fez seus olhos se encherem de lágrimas. Ela se lembrava estar em baixo da cama, do silêncio, de dormir. E então, de acordar com um policial – ela sabia que ele era um policial porque ele tinha um uniforme como nos desenhos que ela via – lhe chamando e lhe pegando no colo, e depois essa mulher que ela nem sabia o nome, até então, tinha aparecido, colocado ela dentro do carro e as duas estavam nesse prédio que ela não sabia onde ficava. Que lugar era aquele?

Ela tinha se esquecido em que número parara.

'Mamãe.' Ela murmurou infantilmente e imediatamente levou uma mão para tampar a própria boca, respondendo ao medo de se manifestar e ser pega.

'Nós vamos conversar sobre sua mamãe, também.' A mulher disse. 'Antes disso, você está com fome? Eu deveria ter perguntado isso primeiro.'

Ela assistiu quando a mulher se levantou, serviu leite num copo e agarrou uma bandeja de biscoitos.

Ela estava faminta, mas não tinha notado porque o medo e a confusão tinham se tornado maiores do que qualquer sensação física. Quando o copo foi oferecido, ela esticou as mãos para segurá-lo e bebeu metade do líquido de uma vez só. Os biscoitos foram devorados em seguida e, enquanto ela se sentia agradecida pela refeição, ao mesmo tempo ela lançava olhares desconfiados para a outra.

'Você tem irmãos?' Elena perguntou.

De novo, ela achou melhor não responder.

A mulher que parecia nunca se calar, continuou falando. 'Eu tenho dois filhos, os dois são meninos. Eles brincam todos os dias juntos, no quintal de casa. Eles amam futebol. Você tem alguém para brincar?'

Dessa vez, por puro impulso, ela balançou a cabeça em sim.

'Oh, então você tem um amigo! Ou seria uma amiga?' Elena exclamou um pouco mais alto.

Ela se assustou ligeiramente com a nuance, mas não se manifestou. Continuou encarando aquela figura misteriosa.

'Mamãe.' Ela disse, por fim.

'Você brinca com a sua mamãe?' A outra perguntou.

Ela inclinou a cabeça para o lado, ainda não sabendo se estava em encrenca ou não. Depois de morder o lábio inferior e pensar muito, ela resolveu que se não tinha sido castigada até então, talvez não seria mais para frente. 'É.' Ela murmurou.

'E do que vocês brincam?' A outra perguntou mais uma vez, agora sorrindo ainda mais.

'Esconde-esconde.' Ela disse com incerteza, esperando da outra algum indício de que tinha dito o que a mulher esperava ouvir.

'Oh, você sabia que essa sempre foi minha brincadeira preferida? Do que mais vocês brincam?'

Ela mordeu o lábio inferior. As memórias que tinha com a mãe, as brincadeiras, os momentos calorosos… Tudo isso trouxe lágrimas aos seus olhos. Ela queria ir para casa. Ela não morava no melhor lugar do mundo, mas, pelo menos, era um lugar que ela conhecia. Aquela sala, aquele prédio, jamais fizera parte de sua vida. Era tudo assustador. Ela sentia seu corpo tremer.

'Eu quero voltar para casa!' Ela exclamou, as palavras se perdendo entre soluços e lágrimas.

Ela tinha apenas nove anos, mas pelo olhar carregado de pesar e tristeza da outra, ela soube que voltar para casa era algo que não aconteceria.

Os olhos assustados da mulher foi a primeira coisa que Kendra registou. Era sempre assim: medo, confusão, tristeza, desamparo. Era isso que ela enxergava nos olhos de todas as vítimas com quem lidava. Ela fechou a porta cuidadosamente atrás de si. Colocou as mãos cruzadas na frente do corpo, de modo que não parecesse uma ameaça. Observou a mulher sentada na cama, ela tinha os braços em torno das pernas, queixo perto dos joelhos, uma posição que não indicava outra coisa senão proteção. Medo.

Quando Kendra deu um passo para frente, a mulher arfou. Ela não conseguiu evitar a comparação com a vez que viu um cachorrinho de rua jogado ao canto do meio-fio, gemendo em dor – morrendo. Ela mordeu o lábio inferior para espantar a memória triste e forçou um sorriso.

'Oi. Meu nome é Kendra.' Ela disse e, como esperado, a mulher não respondeu. Ela continuou, então. 'Sou detetive do departamento de polícia de Boston.' Ela puxou para o lado o casaco que usava, expondo seu distintivo. Os olhos cansados da outra estudaram a identificação dela, e Kendra sentiu o próprio cansaço arrastando seu corpo para baixo. 'Você se importa se eu sentar ali ao seu lado? Eu tive um dia realmente longo.' Ela suspirou, cansada. Não era de se esperar que Maura fosse concordar, logo a princípio, com a aproximação, mas para sua surpresa a outra mexeu a cabeça levemente em sim.

Ela se aproximou devagar, nunca deixando de olhar para a mulher na cama, sempre se lembrando de se movimentar calmamente. Uma vez acomodada, ela cruzou as mãos sobre as pernas e se inclinou um pouquinho para frente, o suficiente para mostrar interesse na segunda pessoa, mas longe o bastante para não ameaçá-la.

Agora era a parte difícil. Sempre era. Colocar as pessoas para falarem do que tinha acontecido. Pedir detalhes, datas, descrições de eventos que eram traumatizantes. Ela suspirou silenciosamente, lutou para ignorar todos os machucados e hematomas que cobriam a pele da outra, o cabelo sujo, a pele pálida, a má nutrição e desidratação que eram visíveis. Ela tentou ignorar tudo isso, porque se se permitisse sentir pena daquela mulher, ela não conseguiria fazer seu trabalho. E só fazendo seu trabalho, era como poderia ajudá-la.

'Você pode me dizer seu nome?' Ela perguntou com a voz suave.

'Maura Isles.' A outra respondeu num murmúrio. Seu peito subia e descia pesadamente. Kendra se perguntou se era reação do medo ou apenas dificuldade em respirar e, se fosse, porque então a outra dispensara a máscara de oxigênio ao seu lado?

'Certo. Tudo bem se eu te chamar apenas de Maura?' Ela tentou. Pelo menos isso estava sendo relativamente fácil. Algumas pessoas se recusavam a sequer dizerem um oi.

'Sim.' Outro murmúrio.

A detetive ponderou e decidiu que, a julgar pelos machucados, falar deveria ser mais fácil do que se movimentar.

'Maura, eu estava trabalhando para te encontrar. Você sabia disso?' Ela estava tentando aquilo que deveria fazer: se conectar com a vítima. Mostrar que ela estava em segurança, que podia contar com a ajuda dela.

'Não.' Ela sussurrou, os lábios se apertando para conter as lágrimas. 'Por que você demorou tanto?'

E não tinha sido uma acusação; era mais como se estivesse implorando para livrá-la do sofrimento. A garganta de Kendra apertou terrivelmente e ela precisou de um minuto para se recompor.

'Eu sinto muito que nos levou tanto tempo, Maura. Mas eu juro, nós estávamos trabalhando duro para isso. Nada está muito claro para nós, ainda. Você pode me contar o que aconteceu?'

Ela assistiu enquanto a outra inspirou profundamente, o rosto se franziu em dor, mas depois ela disse entre lágrimas.

'Eu estava voltando para casa. E tudo o que sei é que ele me abraçou por trás, cobriu meu rosto com um pano e depois disso tudo ficou preto.' Ela dizia com tanta dificuldade, se engasgando com cada palavra, que Kendra achou que ela fosse desmaiar por conta da falta de ar. A detetive estudou-a atentamente. Os círculos escuros em torno dos olhos, o jeito que seu corpo se curvava sobre as pernas, o modo como ela respirava pesado, o olhar tão perdido.

Exaustão. Ela está exausta, Kendra concluiu. Caroline estava certa quando disse que aquela mulher precisava de assistência médica. E com urgência. Agora, preocupada, Kendra esperou até que a outra se acalmasse e só então voltou a falar.

'Maura, vamos deixar isso para mais tarde. A doutora Caroline, aquela que saiu do seu quarto antes de eu entrar, se lembra dela?' Ela esperou por confirmação, e então continuou. 'Ela me disse que você precisa disso.' Seu indicador apontou para a máscara de oxigênio. 'E precisa de soro, remédios. O que você acha de a gente cuidar disso primeiro? Você vai se sentir melhor.'

'Não.' A outra disse, imediatamente. 'Eles estavam me machucando!' Ela exclamou, indignada. Os olhos agora acusavam Kendra, como se ela tivesse se unido ao lado negro daquilo tudo.

'Ei, ei.' Ela balançou as mãos gentilmente em frente do corpo. 'Ninguém vai machucar você. Eles só estavam tentando te ajudar.' Ela argumentou, tentando colocar razão dentro da mente cansada e assustada da outra.

'Eles estavam segurando meus braços!' Ela soluçou, balançando a cabeça em negativo. 'Eu não quero eles perto de mim.' Ela implorou.

Eles. Kendra registrou. 'Bando de idiotas.' Ela murmurou para si mesma. Segurar alguém que tinha sido mantida em cativeiro, contra própria vontade, era o ato da mais absoluta ignorância. E por falar em enfermeiros capacitados, ela pensou com sarcasmo. Ela revirou os olhos e tentou de novo. 'Caroline é minha amiga próxima e eu te dou minha palavra de que ela não vai te machucar, nem segurar você. E se ela fizer isso, eu vou prendê-la. Eu sou uma policial, afinal de contas.' Ela ofereceu, e se em outro momento ela usaria isso como brincadeira, agora era tinha dito em seu tom mais sério. Sua lealdade estava, agora, selada.

'Você promete?' A mulher perguntou, e se ela fosse uma criança Kendra teria, sem dúvidas, segurado seu rosto e beijado sua bochecha.

'Eu prometo. Agora que eu te encontrei, ou melhor, você me encontrou, é meu dever te manter segura.' Ela disse seriamente, esperando que a outra fosse ceder.

Ainda assim, ela pareceu hesitar, apertou os dedos no lençol que cobria suas pernas, lançou um olhar cheio de desconfiança para a detetive. Mordeu o lábio inferior e só depois de minutos, murmurou. 'Ok.'

Kendra meneou a cabeça e abriu metade de um sorriso. 'Certo. Eu vou avisá-la, então.' Ela se levantou da cadeira, abriu a porta do quarto apenas o suficiente para colocar metade do seu corpo de fora e pediu para uma enfermeira que estava de passagem. 'Você pode pedir para a doutora Perks. Meu nome é Kendra, ela sabe do que se trata. É importante.' Ela adicionou a última parte com seriedade e urgência. A enfermeira, baixinha e magra, concordou com a cabeça e começou a se mover rapidamente.

A detetive se voltou para Maura, sentou-se mais uma vez na cadeira. 'Há alguém para quem você queira ligar? Um familiar?'

Parecendo estar perdida em pensamentos, a outra balançou a cabeça em negativo. Kendra tentou de novo por incerteza. Ela sequer tinha entendido a pergunta?

'Você tem certeza de que não quer ligar para ninguém da sua família? Talvez uma amiga, então? Cônjuge?'

'Não. Minha família não mora nem mesmo nesse país. E eu sou solteira.' Ela respondeu com mais clareza, dessa vez.

'Eu aposto que mesmo assim seus familiares adorariam ouvir de você, Maura.' Ela insistiu um pouquinho, mas o olhar amedrontado que a outra lhe lançou tirou o ar de seus pulmões.

'Não, por favor. Eu não quero contato com eles.' Ela quase implorou, lágrimas brilhando nos olhos mais uma vez.

'Ei, ei. Foi apenas uma sugestão. A decisão é completamente tua, certo?' Ela tentou acalmar a outra.

Maura não respondeu, curvou a cabeça para baixo e se calou por vários instantes, até que uma batida na porta chamou sua atenção e seu olhar apavorado correu de Kendra para a porta.

'É apenas Caroline.' A outra assegurou. 'Entre.'

Assim como dito, a médica estava ali de volta. Mãos dentro dos bolsos dianteiros do janelo branco, parecendo esperar a deixa de Kendra.

'Caroline,' a detetive começou, 'Maura concordou em deixar você, e somente você, assisti-la com tratamento médico.' Ela entregou a informação como se fizesse parte de um contrato.

Caroline meneou a cabeça e olhou para sua paciente. 'Entendido.'

'E, também, eu me comprometi a te prender caso você faça algo que ela não aprove.' Ela entregou essa última parte com mais gentileza.

As sobrancelhas da médica se arquearam com a pseudo-ameaça, e depois a médica concordou com a cabeça mais uma vez, ciente de que embora a situação e aquele acordo exigisse seriedade, Kendra jamais a prenderia realmente.

'Maura, você se importa se eu aplicar o soro primeiro?' Ela começou com gentileza, mas não condescendência.

A mulher pareceu em conflito, mas finalmente concordou com a cabeça. Caroline deu a volta para o lado direito da cama, Maura estudou cada movimento. Sim, ela agia exatamente como um animal abatido, Kendra pensou.

'Por que você não se deita? Seu corpo precisa de descanso, Maura.' Foi a detetive que tinha sugerido e ela viu com aflição a expressão do rosto da mulher mudar de dúvida, assombro e finalmente redenção. Se havia algum modo de criar um laço de confiança com aquela mulher, Kendra estava fazendo aquilo certo; quem sabe por ter tomado o lado dela tão diretamente condenando os enfermeiros e meio que ameaçando Caroline, quem sabe por ter respeitado o espaço pessoal dela ou ainda por não ter ditado o que fazer de agora para frente. Era assim, com calma, que Kendra pretendia descobrir o que tinha acontecido com ela, recuperar tiras da história daquela mulher cuja recuperação começava por ela.

Maura Isles poderia estar desaparecendo agora; se ela fosse uma pintura, Kendra diria que suas cores estavam desbotadas, mescladas de um jeito confuso onde ela mal poderia definir os contornos. Mas o que surpreendia a detetive era que mesmo parecendo tão apagada, havia nela feições definidas; os olhos poderiam se derramar em lágrimas a qualquer segundo, mas quando eles se encontravam com os azuis de Kendra – quando Maura se permitia olhar diretamente nos olhos dela – ela via quão afiados e inteligentes eles eram, mesmo atrás das lágrimas. Seu corpo poderia estar lento, machucado, mas ela lutava bravamente para continuar respirando. Ela notou que a outra se deitara com tamanha dificuldade na cama, mas seus sentidos ainda estavam alerta, e ela estudava Caroline como se avaliasse cada decisão médica – o que poderia ser natural, considerando que Maura também era uma.

'Okay, vamos cuidar bem de você.' Caroline murmurou mais para si mesma do que para Maura. Kendra notou que ela apanhava um kit de perfusão intravenoso e, surpreendentemente, ela sabia o que aquilo significava: tubos e mais tubos, cada um contendo um tipo de líquido – não só o soro fisiológico. A função era simples: os tubos se encontrariam em certo ponto, tornando-se um, e então esse novo tubo distribuiria a medicação por uma única agulha anexa à veia, simplificando o processo e poupando o paciente de mais dor. 'Eu vou adicionar um analgésico, tramadol, para aliviar as dores. O que você acha?' Ela disse para Maura.

'Tudo bem.' A outra respondeu em cooperação. Ela arfou levemente quando a médica segurou sua mão para inserir a agulha.

'Maura,' Kendra chamou-a, 'agulhas me deixam nervosa também, vamos conversar enquanto isso.' Ela ofereceu sua mão para a outra. Maura apertou levemente seus dedos, como se agradecendo-a.

'É por isso que suas vacinas não estão atualizadas?' Caroline provocou a detetive.

A loira revirou os olhos, balançou a cabeça. 'Elas não estão. O departamento me obriga mantê-las em dia.' Ela resmungou.

'Não foi o que eu ouvi dizer.' Caroline rebateu, um sorriso afetado no rosto. 'Maura, você quer contar para ela o que acontece quando não se recebe a vacina, vamos dizer, de tétano?'

Maura olhou horrorizada para a detetive. 'Se você contrair tétano, que é causado pelo Clostridium tetani, em seu caso mais grave e avançado a doença pode levar ao óbito.'

'Olha, eu fui vacinada contra o tétano, ok?' Ela comprou a distração e achou melhor colaborar com a situação criada. Em sua mente, ela agradeceu Caroline por sua compaixão, dedicação e contribuição. Ela sabia que a médica tinha feito isso por Maura. 'Se eu não fosse, eu estaria bem ferrada quando me machuquei com um prego brincando com meus irmãos.'

A conversa foi mudando de tópico e, no final, além de ter os medicamentos conectados em si, Maura colaborou com a revisão das ataduras e bandagens em seu corpo, assim como a coleta de sangue destinado para exames. Com paciência e delicadeza, respeitando seu tempo, não tinha sido assim tão difícil. Quando terminou, Caroline parou ao lado de Kendra – a detetive ainda estava sentada, e dessa vez era ela quem parecia um tanto perdida, como se esperando algo da médica.

'Maura, você está bem por enquanto. Antes de eu deixar o quarto, porém, eu preciso te fazer uma última pergunta.' Ela respirou fundo quando Maura concordou com a cabeça, parecendo perdida. 'Eu sei que pode ser difícil para você, mas… Você precisa de um kit de estupro?'

As últimas palavras transformaram o ar do quarto pesado. Kendra encarou Caroline, uma expressão perplexa no rosto. Lentamente, como se ainda pega de surpresa, ela virou o rosto para Maura a fim de saber a resposta. É claro, a detetive sabia que aquela era uma pergunta que deveria ser feita, ela só não estava considerando em fazê-la agora.

'Não.' Maura disse e chacoalhou a cabeça. Sua mão voou para longe da de Kendra. 'Não.' Ela repetiu um pouco mais sobressaltada dessa vez, porque nenhuma das duas tinham manifestado reação alguma.

Com um estalo, Kendra voltou à situação e levantou as mãos. 'Ei, ninguém está duvidando de você, Maura. E nós não vamos, absolutamente, te obrigar a nada. Se lembra?'

'Faço das palavras de Kendra, as minhas.' A médica lhe assegurou.

'Eu não preciso de um.' Ela repetiu em voz baixa, as lágrimas mais uma vez se acumulando nos olhos.

'Nós já entendemos.' Kendra disse gentilmente e segurou mais uma vez sua mão em conforto. 'Ela só precisava perguntar. Trabalho, você sabe.'

'Exatamente.' A médica concordou. 'E, Kendra, eu entendo que você precisa fazer o seu trabalho, mas Maura precisa descansar, urgentemente. Eu volto em algumas horas.' Ela se despediu com um sorriso tímido e deixou as duas sozinhas, mas uma vez.

Kendra suspirou, mas sorriu em seguida para a outra. 'Ela tem razão, Maura. Você precisa mesmo dormir.' E embora a mulher não tivesse sido avisada, Kendra pegara o olhar de Caroline sinalizando o sedativo que tinha adicionado ao coquetel no intravenoso. As vezes, a detetive sabia, era melhor não avisar os pacientes de que eles estariam sendo sedados. Alguns deles lutavam – fisicamente – contra. Outros, possivelmente assim como Maura, negariam a medicação. Mas Deus sabe como ela precisava de um sono ininterrupto e longo naquela noite. Sem pesadelos, sem incômodos. Ela estava finalmente salva, não tinha razão permanecer alerta por sequer mais um minuto. 'Nós podemos conversar amanhã quando você acordar, ok?'

'Você vai ficar?' Por trás da pergunta que tinha soado apenas como curiosidade, a detetive sabia que ela não fora colocada para ser respondida como se sim ou não.

Era um pedido mascarado.

Agonizante. Porque ela ainda não sabia se podia confiar completamente em Kendra, mas claramente ela precisava da companhia de uma pessoa ao seu lado, alguém que pudesse protegê-la, fazer-se se sentir segura.

'Apenas se você não se incomodar comigo aqui.' Ela disse. Isso era terreno seguro, um oferecimento sútil que correspondia à necessidade de Maura misturado com um pedido de permissão também sutil vindo de Kendra, sobretudo porque Maura precisava entender que, afinal de contas, ela era quem estava sobre o controle do que queria ou não queria de volta.

Um aperto leve em sua mão foi sua resposta. Os olhos já pesados de sono encararam Kendra por uns instantes e aqueles dedos tão frágeis e brancos nunca deixaram realmente os dedos de Kendra.

Confiança integral ou não, a detetive sabia que, pelo menos, alguma conexão tinha sido fabricada ali.


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