Meteoro escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 9
Colapso


Notas iniciais do capítulo

Hum... antes de tudo já deixo avisado para separarem seus lencinhos e prepararem-se para sofrer muito.
Façam uma boa leitura... e espero que não queiram me matar depois. :(



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Alguns meses após a minha cisão com Kandrak, já tendo completado dezenove anos e retornado a minha rotina – que baseava-se em caçar, me infiltrar e matar – a bruxa saíra em uma pequena viagem alegando que daquela vez aniquilaria, definitivamente, o metamorfo.

Nunca soube o porquê dessa decisão tomada tão aleatoriamente. Havia começado a teorizar que aquela velha sentia tanto rancor dele, que precisava descarregar esses sentimentos de vez em quando, para evitar explodir.

Estava quase acreditando que o metamorfo já morrera por conta da ferida enorme que eu deixara em seu coração. Mas a bruxa saberia se ele estivesse morto… Uma história de ódio tão longa quanto a que eles dividiam não podia ser finalizada sem que um dos dois soubesse.

De maneira que a mulher detestável partiu e deixou-me para trás, sem nenhuma missão para aplacar meus nervos. E eu nem me daria ao trabalho de completar minha cota nesse meio tempo, de qualquer forma… com alguma sorte, os dois se encontrariam e a bruxa seria morta.

Meneei a cabeça automaticamente ao pensar nisso. Eu sabia muito bem que a sorte nunca estava a meu favor. O mais provável era que ambos se cruzassem, saíssem igualmente feridos, mas se mantivessem vivos. Ou que nem chegassem a se encontrar. Havia também a pequena possibilidade da bruxa realmente voltar com o coração do metamorfo entre seus dedos atrofiados. Um arrepio desceu por toda a minha espinha. Não sabia porque ainda me preocupava com o que podia suceder a Kandrak. Disse a mim mesma que ele havia me abandonado. Lembrei-me que, se nós dois um dia batêssemos de frente outra vez, alguém sairia extinto.

Eu repeti milhões de vezes que era uma parva e que me arrependeria daquilo mais tarde, enquanto me levantava e arrumava-me para uma pequena excursão, saindo do recanto precário em que dormia.

 

Basta dizer que frustrei-me.

Cogitei ao menos avisar ao meu antigo melhor amigo que minha mestra tenebrosa estava em seu encalço, porém não havia sinal algum dele. E fiz questão de procurar por muito tempo. Passei por todos os pontos de encontro que costumávamos usar, até mesmo arrisquei-me a ir até o Reino dos Pesadelos e procurar na antiga mansão que ele usava na Corte dos Metamorfos. Me dei conta que eu sempre encontrara Kandrak quando buscava-o, aquela era a primeira vez em que falhara totalmente nisso.

Kandrak não queria ser encontrado.

Eu só o achara todas as outras vezes porque ele deixara.

Sentimentos contrários reviraram-se dentro de mim. Tal atitude significava que aquela cisão era oficial… que ele cortara todos os laços que tinha para comigo assim que lhe foi possível. Paralelamente, a consequência disso era que a bruxa também não seria capaz de encontrá-lo.

Retornei para o tormento que chamava de casa. A velha megera ainda não voltara, então enfiei-me mais uma vez em minha toca particular e tentei afundar meu nervosismo em metade do meu estoque de Acidic. Teria sido melhor se não fosse culpa do próprio Kandrak eu ter viciado-me nesse troço.

Após nossa briga, tomei a decisão de fazer o que era necessário: juntar Kandrak a Elirya, meus pais, meus sonhos de criança e até mesmo Willian e suas pinturas, em um quartinho minúsculo da minha mente, tão remoto que mal conseguia sentir a presença deles ali. Um cantinho reservado as coisas inesquecíveis que precisavam ser trancadas para que não me quebrassem.

Ainda fico zangada comigo mesmo ao pensar sobre isso. Em como eu deixara aquele metamorfo malicioso, cruel e repleto de más intenções tornar-se alguém insubstituível na minha vida.

Eu sabia que uma existência como a minha não concordava com a palavra insubstituível.

Eu sabia que as pessoas que conhecia estavam fadadas a partir para todo o sempre.

E sabia que, se eventualmente precisasse colocar algo a mais naquele pequeno quartinho em minha cabeça, não haveria espaço. A porta cederia e tudo que estava lá dentro seria catapultado para fora com a força de uma avalanche. Eu seria soterrada uma vez mais, e sabe-se lá o que viria disso.

Passei alguns dias assim, a mente trabalhando de maneira febril e vivendo de copos de Acidic e petiscos comestíveis que encontrava pela casa (os quais eu verificava várias vezes para ter certeza de que não eram feitos de carne humana ou pior). Então, a contragosto, deixei a bebida de lado e coloquei-me a andar de um lado para o outro. Concentrei meu único olho numa lamparina a óleo, cuja chama dançava com o vento que adentrava o recipiente por cima. Mordi o lábio inferior… seria fácil derrubá-la. Queimar aquela casa inteira, até virar feias cinzas. Mas tinha a consciência de que, enquanto não desse um jeito de matar a bruxa, qualquer tipo de vingança estúpida seria contra-atacada com algo muito pior. Ignorei à força o lado piromaníaco que eu nem sabia possuir e deixei-me cair descuidadamente sobre o banco em que estava sentada mais cedo, pegando meu florete e passando a afiá-lo.

O som da pedra raspando contra o fio relaxou gradativamente meus músculos tensos. Estava quase… quase retornando a minha calma fria. Me concentrei naquele ruido, minha mente migrando para um som ainda mais estranho, vindo de uma ilha flutuante que não existia mais.

Quando eu consegui finalmente chegar a um ponto pacífico em meus pensamentos, ouvi um barulho diferente a distância. Foi preciso um minuto ou mais para eu concluir que era uma gargalhada.

Mais um segundo para saber quem estava rindo.

Mais cinco para eu notar que só havia uma razão para a velha rir daquele jeito tão doentio.

Senti como se uma garra gelada espremesse meu coração. Eu estava equivocada… precisava estar equivocada, porque se fosse aquilo mesmo que eu pensara…

Não… não, não, não, não, não!

Cai do banco e recuei aos tropeços. Mantendo uma distância cada vez maior da porta de entrada, com um medo patético do que eu veria nas mãos da bruxa, fui aproximando-me do cômodo onde ela fazia suas poções malignas e guardava as partes de corpos que eu coletava. Naquele mesmo lugar havia um caldeirão que nunca se apagava e nunca estava vazio, coberto de olhos coloridos em toda a sua superfície. Eu acreditava, no começo, que meu olho perdido tinha juntado-se aqueles outros, bem debaixo da minha vista… mas estava errada. Nunca fui capaz de reencontrar o globo ocular que a velha me roubara – não antes das Terras de Ninguém, ao menos.

A gargalhada maliciosa estava seguindo-me. Eu podia ouvir a porta da frente da casa batendo com um estrondo, os passos claudicantes daquela monstruosidade chegando mais perto…

A garra em meu coração apertou ainda mais.

Quando a maldita finalmente adentrou o espaço em que eu estava, ainda ria. Dizia frases desconexas, como “o quanto esperara por aquilo” ou “até que serviu para alguma coisa, pirralha”.

E quanto a mim?

Eu só conseguia olhar.

Olhar o órgão morto entre os dedos esqueléticos e horríveis, os mesmos que arrancaram meu olho. Um coração arruinado pela fenda que eu reconheceria facilmente. Aquela que eu fizera a meses atrás.

A palavra não ainda martelava em minha cabeça, mas aquela visão era real. Por mais que aquela maldita gostasse de me atazanar, ela não se daria ao trabalho de armar uma situação tão perfeita apenas para me ver quebrar mais um pouco. Sua satisfação era tangível demais pra aquilo não passar de uma provocação…

Kandrak estava morto.

E eu tinha razão quanto a minha salinha mental. Ela não realmente não suportava mais nada.

Eu estava a beira do colapso a meses, e a bruxa só terminou o serviço.

Pior para ela… eu estava pronta para cobrar a compensação pelos últimos sete anos.

Com juros.

 

Uma coisa a se dizer sobre todas as criaturas: elas são burras.

A burrice pode ser enorme, perceptível com facilidade e estar presente em todos os momentos. Mas também pode ser miníma, um mero erro de cálculo que pode matar. A bruxa era esperta demais, isso estava claro para mim desde que ela mostrara-se ser mais do que uma velhinha solitária. Ainda assim, até mesmo suas táticas continham falhas. E o erro dela, ou sua tolice momentânea, foi justamente acreditar que ainda conseguiria me controlar com a raiva que eu estava sentindo.

Acreditava que me destroçaria, quando a morte de Kandrak adentrou meu cérebro, mas não… minha raiva apenas despertou, mais forte do que da última vez, quando houve minha cisão com o metamorfo. Era como se não pudesse separá-la de mim, como se só existisse essa emoção, um furacão de ira que poderia acabar com tudo em meu caminho.

Eu podia perceber a bruxa tentando ganhar o controle do meu corpo, a chama em minha cabeça latejando. Mas o incêndio que me consumia por dentro varreu-a com facilidade desta vez.

Se eu estivesse lúcida teria rido da expressão assustada no rosto da velha ao ver que sim, daquela vez eu tinha superado-a totalmente. Porém, só havia fúria. E foi com ela que eu cortei fora o braço que ela estendera em minha direção, visando me acertar com suas garras. Meu florete desceu e subiu novamente, e arranquei o outro membro. Depois, as duas pernas. Abri-a de todas as formas que poderia pensar, cortes longos e retos, tornando o aposento um mar de sangue.

O prazer maior veio quando arranquei seus olhos. Um após o outro, depois de espetá-los até que vazassem. Não sabia se ela sentia aquela dor, se havia algo claro em minha cabeça era que fatiá-la não seria o bastante para matá-la, sequer me deixaria satisfeita. Entretanto, eu desejei.

Desejei que a vadia sentisse cada fiapo de agonia que extraíra de mim em todos aqueles longos anos.

Ainda estava ajoelhada no chão repleto de sangue e pedaços do corpo enrugado da bruxa quando notei o coração de Kandrak, jazendo esquecido ao meu lado, depois de ser derrubado ao cortar a mão que o segurava. Encarei-o por alguns segundos, a raiva esfriando um pouco. Estaria me conformando com aquilo? Com o fato de que eu não pudera fazer nada para ajudá-lo?

Não sabia.

Ainda conseguia ouvir o chiado entrecortado de respiração que aquele montículo de carne fazia – chamar aquilo de corpo era um eufemismo. A minha obra de arte parecia com tudo, menos com uma carcaça humanoide. Lançando-lhe um olhar enojado (que não se explicava pelo seu estado, mas sim por aquela praga permanecer viva), levantei-me e esmigalhei o último resquício do metamorfo com o pé.

Afinal, eu não era uma bruxa.

Eu não coletava partes de corpos… por mais queridos que seus donos fossem para mim.

E o gostinho de ouvir outro chiado, indignado por eu ter destruído algo que custara tanto a conseguir, era realmente revigorante.

Observei mais uma vez o ambiente ao meu redor, me lembrando da lamparina que vislumbrara antes. Havia uma similar ali, naquele cômodo, acesa como a sua duplicata. Caminhei até ela, usando minha visão periférica para vigiar a bruxa. Ela estava se reconstruindo lentamente. Mas preferi não dar-lhe qualquer chance de escape. Nunca podia prever o que aquela mente maliciosa estava pensando.

Agarrei a lamparina e desencaixei a proteção de vidro. Então derramei um pouco do óleo nos olhos do grande caldeirão, que reviraram-se de um lado para o outro, não possuindo pálpebras para se fecharem. Agachei-me próxima ao objeto amaldiçoado e soprei um pouco a chama naquela direção, fazendo com que esta tocasse o óleo e se alastra-se por toda a superfície. O cheiro de coisa queimada era desagradável, no mínimo, e somado com os grunhidos de desespero da bruxa atrás de mim, fez com que meu estômago revira-se.

Mas, que se dane… ela merecera.

Eu não era tão boa para dar-lhe uma morte rápida.

Girei nos calcanhares e atirei o resto do óleo sobre os restos daquela que eu chamara de bruxa. Eu arrancara a sua língua fora antes dos olhos, talvez fosse por esta razão que a velha só conseguia balbuciar coisas desconectas. Ou talvez fosse por conta dos outros ferimentos que infringi e órgãos que puxei para fora… não importava, realmente.

Podia sentir o fogo queimando atrás de mim. Ele chegara ao chão de madeira e seguia o caminho por onde o seu catalisador pingava, espalhando-se com rapidez, e não demoraria para a sala, se não a casa inteira, tornarem-se uma gigantesca fornalha. A ideia me fez sorrir. Ainda tinha a lamparina entre meus dedos, olhando para a bruxa aos meus pés. Arrependi-me de ter cortado sua língua… seria maravilhoso ouvi-la implorar por minha piedade.

— Como era mesmo que você dizia? O mundo pertence aos mais aptos? — estendi a chama perto da testa dela. — Parece-me que seu tempo acabou. Aproveite bem sua miséria, vadia.

E soltei o objeto das minhas mãos.

 

Não fiquei muito tempo vendo-a ser consumida pelo fogo. Imagino que essa tenha sido minha burrice, mas as chamas alastraram-se pela casa e eu ficaria presa ali se continuasse. Agora que penso sobre isso, ela deveria manter meu olho escondido em outro lugar… outro refúgio, onde eu não pudesse encontrá-lo e muito menos recuperá-lo. Isso salvaria sua vida, e culminaria em um reencontro deplorável anos mais tarde, nas Terras de Ninguém.

Entretanto, eu pensava que tinha matado-a. Que estava livre, definitivamente, que tinha vingado-me de cada situação deprimente que ela me fizera passar em todos aqueles anos. Quando deixei o incêndio que criei eu o fiz de queixo erguido e peito estufado, com meu fiel florete bem seguro em minha destra.

Essa postura só durou tempo o suficiente para eu deixar a casa para trás.

Depois eu desabei. Meus joelhos afundaram na terra e senti como se o peso do mundo inteiro fosse atirado sobre as minhas costas. Eu estava livre, mas a dor não cedia. Ela pulsava em meu peito como se fosse física, embora eu soubesse que era só tristeza. Uma sem medida.

Levei a mão até o peito, apertando o local, como se isso amenizasse aquela agonia.

E, pela última vez, eu chorei.

Chorei por Elirya em sua armadura prateada, com o sonho que eu mesma destruí.

Chorei pelos meus pais, perdidos para sempre.

Chorei por todas as almas boas que eu sacrificara… e talvez pelas más também. Por William, por Tierra e Demigod…

Chorei por Kandrak.

Kandrak, o monstro.

Kandrak, o metamorfo, que se alimentava do medo de crianças e devorava humanos quando bem entendia.

Kandrak, o amigo mais perturbador e pouco afetivo que alguém poderia querer… quiçá o pior amigo que se poderia desejar em todo o Sonhar.

Mas o único amigo que eu tinha. Eu preferia um milhão de vezes saber que ele me odiava em algum lugar do que ter a consciência de que estava morto.

 

A mesma criatura que me botara no chão, me dera forças para levantar-me novamente.

Tenho plena consciência que, não fosse por ele, eu teria desistido. O metamorfo me ensinara a ser mais forte do que já era. A seguir em frente quando absolutamente tudo ruía ao meu redor. A sobreviver, mesmo que fosse sozinha.

Honrando essa pequena lição que ele me dera, reergui-me, limpando minhas lágrimas com os punhos. Juntei todo o peso nos meus ombros e coração e voltei a atirá-lo em outro quartinho mental, maior que o último, devidamente trancado, onde nada entraria ou sairia.

Mesmo sabendo que eu só sabia caçar e lutar, que precisaria aceitar um emprego como caçadora de recompensas ou algo próximo disso, não me desesperei. A hora de chorar tinha passado…

Eu sobreviveria…

O que não nos mata, nos fortalece. E depois de colar todos os meus caquinhos, um por um, eu estava mais forte que nunca.

Após essa sucessão de eventos, tornei-me a Vega atual.

 

E creio que agora esteja perguntando-se: E quanto ao Torneio? Como foi que tornei-me uma Campeã?

É claro, ainda falta um pouco para meu relato ter um fim apropriado.

Afinal, algum tempo depois, a princesa Hannyere morreria.

E um encontro com o Rei selaria meu destino, definitivamente.


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Notas finais do capítulo

Gente, "meu sofrimento não tem fim", parafraseando nossa queria Elsa. Escrever esse capítulo tirou uma parte da minha alma. Acho que vou precisar de mais do que uma semana pra me recuperar e poder postar os dois últimos...

Eu sei que vocês vão querer me assassinar agora que eu dei um fim no Kandrak. Mas deixem para fazê-lo assim que eu finalizar a fic, tudo bem? Ai podem fazer picadinho de mim (terei tempo de sobra para sair correndo q).

A parte boa é que a Vega teve uma vingança lenta e cruel sobre a bruxa. Acho que ela quase ficou satisfeita com o estrago que fez... quase.

Digam suas expectativas para o final da história, pessoal. O próximo capítulo já é o último, e bem, teremos mais um que será como um pequeno Bônus. E garanto que o humor negro de nossa querida espadachim voltará com força total na próxima parte, para quem está sentindo falta das piadinhas ácidas.

Afinal, uma vez Vega, sempre Vega.
Até a próxima, pessoal! E lembrem-se, nada de archotes nem ancinhos, okay?
Kisses, kisses para todos. ♥



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