Meteoro escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 6
Ruído


Notas iniciais do capítulo

Yei, gente! Demorei um pouquinho, mas to de volta, relaxem.
Hoje teremos um cap mais... diferente, de certa forma. Espero que gostem.
Boa leitura. :3



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Sonhei com cidades perdidas, ruínas abandonadas e um ruído distante, longínquo, quiçá antigo como o mundo, algo entre a beleza e o sofrimento. É… foi a coisa mais estranha que já povoou minha mente, e arrisco dizer que já vi coisas muito bizarras desde que perdi meu olho.

Apesar de parecer um paradoxo, nós, os habitantes do Sonhar, também dormimos e temos sonhos. Acredita-se que estes estejam ligados a profecias ou às inúmeras civilizações que nasceram e morreram com os reinícios de nosso mundo. Simplificando, sonhamos com o que já aconteceu ou que ocorrerá, e mesmo assim, esse não é um evento frequente. Normalmente, nós meramente apagamos, como a chama de uma vela soprada pelo vento.

Foi por essa razão que quando despertei, vi-me suada e absolutamente perplexa. Nunca havia passado por aquilo enquanto era mais nova. E aquela já era a terceira noite seguida. Se sonhar já era estranho uma única vez, quando a mesma experiência se repetia por três noites, começava a tornar-se preocupante.

Havia completado dezesseis anos a alguns dias atrás. Começava a me questionar se aquilo não era algum tipo de dom sacerdotal, o que seria péssimo… não precisava de mais esse tipo de poder na minha vida, era apenas mais uma força para a Bruxa usar. A menos que fosse algo forte o bastante para cortar os laços de nosso pacto, não me seria nada útil.

Independente de ser um dom novo ou não, algo de muito errado estava acontecendo comigo. E eu precisava descobrir o que era. Antes que aquela velha o fizesse.

Cruel como era, ela havia me mandado numa missão justamente no dia que eu completava anos.

 

Já fazia algum tempo – desde que eu retornara da prisão, para ser mais específica – que estava em dúvida de como agir com relação aos sacrifícios. É claro que tinha de me fortalecer para quebrar o controle dela sobre mim, e então seria melhor continuar me negando a fazer o que ela mandava. Contudo, se permanecesse agindo tão levianamente, a velha perceberia o momento exato que eu a ultrapassaria. Depois de Elyria, minha limitação quanto à matança havia evaporado. De maneira que optei por enfrentar a Bruxa menos vezes, fazer meu trabalho direito.

Se a culpa pelas vidas que eu tirava nunca se extinguiria, ao menos eu poderia dar às minhas vítimas uma morte menos brutal. Dependendo do sacrifício em questão, é claro. Algumas vezes aparecia um indivíduo que merecia ser estripado e transformado em um amontoado de carne e ossos.

 

Eu estava retomando o caminho do esconderijo quando os sonhos começaram. Naquela terceira noite, decidi atrasar ainda mais meu retorno para resolver a situação. Preferia não ter de justificar meus despertares repletos de surpresa para aquela Bruxa. Seria o mesmo que pedir: Oh, por favor, use sua magia para mexer ainda mais na minha cabeça.

Não me considero uma pessoa masoquista, então essa nunca foi uma opção.

A princípio não fazia a menor ideia de como ou por onde começar. Mas a lembrança dos sonhos estava fresca em minha memória, talvez conseguisse algo perguntando às pessoas. O problema era que se eu questionasse às videntes ou sacerdotisas, elas logo saberiam quem eu era e me denunciariam. Tinha que ser outro tipo de indivíduo. Um explorador, por exemplo…

E foi nessa ocasião que conheci Allistar.

Encontrei-o depois de vagar discretamente por uma cidadezinha de Vale Profundo. Allistar vestia-se como um arqueólogo e agia como um. Se coloca-se uma placa afirmando ser um caçador de tesouros na testa, não seria tão autoexplicativo.

É claro que eu não podia abordá-lo de qualquer jeito, muito menos onde outras pessoas pudessem me ver. Estava circulando uma recompensa pela minha cabeça, mal conseguira agir tranquila no último ano.

Esgueirei-me pelo resto do dia esperando por uma oportunidade e, quando o rapaz de aproximadamente trinta e poucos anos hospedou-se em um estabelecimento de qualidade questionável, aproveitei para dar-lhe um oi.

Allistar, contudo, não pareceu surpreso quando me viu escalar a janela de seu quarto alugado e entrar sem ser convidada. Muito pelo contrário, estava até ansioso por se encontrar com a grande assassina que aterrorizava a capital. Como tinha conseguido tal informação era uma incógnita, e eu não poderia me importar menos com isso… Desde que ele me ajudasse a encontrar o lugar de meus sonhos e não me delatasse, tudo estaria indo de acordo com o esperado.

Expus ao explorador meu problema atual. Dei todos os detalhes que me vinham a mente sobre as ruínas que buscava, acreditando que Allistar as conhecesse. Não consegui evitar questioná-lo se não estava temeroso de ajudar uma assassina. Ele prontamente me respondeu, alegando que se eu quisesse matá-lo, já teria feito tal coisa – embora, verdade seja dita, um instinto me dissesse que seria mais difícil do que parecia – e que duvidava ser um bom sacrifício.

Desisti das indagações sobre moral e confiança. Isso estava apenas me atrasando.

Ele reconheceu alguns detalhes que lhe citei. Como não tinha nenhum compromisso no qual devesse comparecer, prometeu que me levaria até o local que eu buscava. O homem tinha muita certeza do que dizia. Um pensamento ocorreu-me: aquela pessoa não poderia ser comum.

Até hoje mantenho essa impressão.

Havia algo, entre toda aquela aparência simples, que soava misterioso. Talvez fosse sua sabedoria ou o conhecimento acumulado, ou tudo que Allistar juntou de suas inúmeras viagens. Ele destoava do natural de uma forma óbvia, mas nem um pouco agressiva.

 

Considero que nunca teria encontrado meu objetivo não fosse por ele. Naturalmente, qualquer outro indivíduo teria tentado me apunhalar pelas costas na primeira oportunidade – e, é claro, teria a garganta cortada imediatamente, também – o que frustraria totalmente os meus planos e me faria retornar a presença da bruxa mais cedo… e sem ter resolvido nada.

Levamos alguns dias viajando por caminhos que eu nunca me aventurara antes. Passamos pela colina onde Bree mantém sua vigília sobre as estrelas cadentes (Allistar dissera categoricamente que não via nenhuma menina ali) e por um deserto inóspito, cujos grãos de areia arroxeados flutuavam no ar, formando uma neblina espessa e estranha. Chegamos às margens de um rio prateado que corria para cima, e após seguirmos seu curso por um tempo, este tornou-se tão largo que ladear as margens já não era possível. Precisamos usar as pedras que emergiam dele para mover-nos e, dessa forma, entre saltos e quase quedas, adentramos o vale das ilhas flutuantes.

Bem… creio que chamar aquilo de vale, considerando o mundo onde vocês habitam, seja meio equivocado.

Como já disse, o rio corria na direção contrária ao esperado. Ou seja, em vez de cair em uma catarata como qualquer curso de água que se preze, era o fosso que dava origem ao rio. Ainda sobre as pedras enormes que erguiam-se do leito para que evitássemos a correnteza, podíamos ver o grande abismo de largura incalculável, que ejetava o líquido prateado e encharcava todo o terreno ao redor. Sobre o mesmo as ilhas pairavam calmamente: objetos com formato prismático e negros, cujo topo gerava vida. Árvores multicoloridas nasciam ali, e fontes de água jorravam do abismo criando arcos no ar, que comunicavam as ilhas uma a outra. Ali em cima viviam elementais, acreditava-se. Pequenas civilizações de seres devotados à natureza.

Por último, deveria alegar que, apesar de eu ter usado o termo “objeto” para descrever os prismas, eles são animais vivos. Criaturas ancestrais, dizia-se, remanescentes de um tempo que mal conseguíamos lembrar. A julgar por sua estrutura abstrata e pelas maneiras misteriosas que tinham de nutrir-se, poderiam muito bem ser remanescentes de outras etapas do Sonhar.

Encarei aquela paisagem sem falar nada por alguns instantes. Então percebi os pássaros descendo… ou o que eu julgava serem pássaros. Suas formas eram transcendentes da matéria, eu poderia defini-los como riscos de giz em um quadro-negro, em constante movimento. Levei automaticamente a mão para a empunhadura da espada, mas consegui perceber, pelo canto do meu olho bom, Allistar fazendo um sinal para que eu relaxasse.

“São sua carona” ele dissera, placidamente, enquanto sentava-se em posição meditativa sobre a pedra em que estávamos, ajeitando o chapéu com um toque do dedo. Tive o ímpeto de questioná-lo se não iria comigo até o fim, mas decidi deixar pra lá. Não sabia o que me esperava lá em cima, algo me dizia que seria melhor continuar sozinha.

Vi as três figuras brancas aproximarem-se, percebendo que eram maiores do que eu supunha. Deveriam ter o meu tamanho, o que não justificava a sua quantidade. Imaginei que um só poderia levar-me sem preocupação alguma, mas depois percebi o quão leves deveriam ser. Talvez não suportassem o peso.

Ergui ambas as mãos para que as aves me pegassem. As garras de duas fecharam-se em meus punhos. A terceira voejou ao meu redor, como uma borboleta, e vi-a pousar em frente ao explorador enquanto as outras elevavam-me. Podia jurar que a criatura lhe fizera um meneio de cabeça como agradecimento.

Fui carregada até uma das ilhas flutuantes, com suavidade. Poderia dizer que estava planando tanto quanto minhas receptoras. Eu nunca tivera medo de altura, então aquilo era quase prazeroso. Os dois pássaros soltaram-me na menor das ilhas, cuja qual tinha uma aparência meio mórbida. As árvores perderam as cores do arco-íris, retorcendo-se, cinzentas. O próprio corpo do animal prismático parecia quase transparente. A água do rio que chegava àquele recanto era repelida por alguma barreira invisível.

As criaturas que me escoltaram mantiveram-se paradas. Se possuíssem olhos, diria que estavam me encarando. Dei-lhes as costas e vislumbrei o local com atenção. Havia uma trilha de pedras em meio a floresta. Outrora deveria ser negra, mas agora também estava desbotada, com a mesma coloração cinza das plantas. Ignorando os pássaros atrás de mim, pus-me a caminhar sobre ela, rumando para o que deveria ser o centro da ilha.

Enquanto andava, o ambiente começou a tornar-se familiar. As árvores ficavam um pouco menos curvas, ainda muito desbotadas, mas havia vestígios claríssimos das cores. Elas abriram-se numa clareira onde jaziam as ruínas de um templo de cristal… na verdade eram mais prismas desordenados que cresciam e acabaram por formar uma estrutura. Eram acinzentados como o resto, alguns estavam rachados e deixando lascas caírem sobre o solo. Soube imediatamente que logo estariam tão claros como a estrutura geral da ilha. E ficou óbvio que aquilo deveria ser o coração ou o centro do ser flutuante.

Também era lógico que aquela coisa tão antiga estava morrendo.

O ruído que tanto incomodara meus sonhos vinha de dentro da estrutura, mas eu conseguia escutar os ecos mais longínquos. Um chamado cálido e despedidas sinceras.

Aquilo estava morrendo, e os seus iguais lhe davam o devido adeus.

Essa percepção me deixou com um nó na garganta.

Atravessei o vão entre os prismas e adentrei aquele templo natural.

E parei.

 

Havia uma criatura vagamente humanoide bem no centro da estrutura. Aparentava ser feita de cristais, finamente trabalhada, como se fosse a obra de algum ourives. Pequena e delicada como uma fada, apesar da brutalidade que se espera das pedras preciosas.

Ela não era real, contudo. Eu simplesmente sabia, assim como sabia que aquele lugar estava desfazendo-se. Aquilo era apenas um símbolo… uma representação da alma da própria ilha.

O ruído aumentou de volume. Parecia vibrar de dentro da minha cabeça, como um sino ou algo similar. E ela se aproximou de mim, passo a passo. Não fui capaz de levar minha mão a espada desta vez. Podia compreender o que era esperado de mim, que ela não me faria mal algum.

O movimento fluído dela veio em minha direção, e a criatura enlaçou meu corpo em um abraço. Por alguma razão, lágrimas começaram a verter do meu olho bom. Elas simplesmente não paravam… e, sem entender muito bem o impulso, eu acabei retribuindo o gesto.

Perdera as contas de quanto tempo tinha desde que me enlaçaram daquela forma da última vez. As únicas pessoas com quem mantinha relações eram a Bruxa e Kandrak, e ambos careciam de afetividade.

O ruído mais próximo foi passando, com um agradecimento cortês. E, enquanto minhas lágrimas continuavam a cair, senti a criatura de cristal desaparecer em meus braços. O pouco de cor que havia ao meu redor morreu. A ilha pôs-se a se desintegrar sob meus pés. E os sons mais distantes fizeram um coro final, para depois silenciarem-se completamente.

Então eu caí.

 

Parece estupidez da minha parte deixar-me simplesmente cair daquela forma. Os seres ancestrais flutuavam muito alto, mesmo que houvesse um chão, eu provavelmente morreria na queda. Isso ignorando o abismo que estava diretamente abaixo de mim.

Mas eu não consegui reagir.

A estranha sensação de nostalgia era tão grande que não conseguia sequer pensar em escapar.

Para minha sorte a dupla de pássaros que me trouxera até a ilha moribunda mergulharam no ar para me agarrar e salvar-me de despencar eternamente. Isso despertou-me, eu diria. Mas aquela sensação não desapareceria tão cedo… ela ficaria marcada no meu corpo de certa forma, como uma das minhas inúmeras cicatrizes.

Era um aviso: a morte chega para todos. Mas ela não precisa, necessariamente, ser algo ruim.

Fui levada até a pedra onde Allistar me esperava. No caminho enxuguei o melhor que pude meu rosto. Sentia-me como se tivesse chorado uma vida inteira naqueles poucos minutos. Esperava que o explorador viesse zombar de mim… uma assassina do meu calibre, chorando como um bebê? Era realmente frustrante. Mas ele ignorou completamente meu olho inchado, perguntando se já podíamos voltar para a civilização.

Assenti em resposta. Voltamos pelo mesmo caminho que viemos.

Quando chegamos novamente à colina de Bree, a noite descia sobre nós. Obviamente a pequena criança estava no topo de sua macieira, os olhos atentos fixados no céu para observar as estrelas cadentes e transformá-las em desejos. Não tentei encontrá-la com a minha visão, desta vez. Ao invés disso, foquei minha atenção no simples explorador ao meu lado e fiz uma última pergunta: Por que eu?

Sem sombra de dúvida, era uma ironia enorme. Tão desapegada à vida que me tornara, sendo convocada por um ser além da compreensão para presenciar sua morte. Não fazia muito sentido. Havia pessoas melhores a se escolher.

— Sabe… essas criaturas são fascinantes e difíceis de entender. Elas viveram por tanto tempo que sua existência quase poderia ser considerada obsoleta. No entanto, por serem vivas, elas tem sentimentos. E imagino que ninguém gostaria de morrer sozinho.

— Mas há outras ilhas…

— Sim. Contudo, elas são enormes, não acha? Mover-se de encontro a uma outra poderia prejudicar as colônias que as habitam. Aqueles seres não podem simplesmente se chocar e abraçarem-se como se fossem humanos. Haveria consequências. — Ele fez uma pausa pensativa, olhando para a árvore de Bree. Mesmo quando passamos pelo mesmo local uma segunda vez, alguns anos depois, já em companhia de Louise, sua resposta continuava a mesma com relação ao que ele via: nada além da paisagem. — Eventualmente um deles se desfaz e nos seus últimos momentos convoca um ser aleatório, parece-me, para fazer-lhe companhia. Se há algo que eu aprendi com minhas viagens é que nem tudo segue uma lógica. Algumas coisas simplesmente acontecem e não podem ser explicadas.

Estreitei meus olhos, pensando sobre suas palavras. Quantas daquelas Ilhas se desfizeram desde o reinício do mundo? Quatro, cinco? Não parecia um evento frequente. Me questionava se elas simplesmente cansavam de existir ou chegavam a uma idade em que não era mais possível manter suas partículas unidas.

— Você foi convocado?

— Nunca. Mas conheço alguém, além de você, que já. — ele deu de ombros. — De qualquer forma, é uma experiência enriquecedora, não acha?

Bufei, fingindo tédio. — O que tem de extraordinário em consolar uma criatura anciã moribunda? Foi apenas um favor. Além do mais, aqueles sonhos estavam me incomodando muito.

Allistar riu um pouco. — Pode ser. Mas, já parou para pensar que era você que precisava ser consolada?

Nós paramos de caminhar. Eu tomaria um rumo diferente do dele para reencontrar-me com a bruxa e entregar-lhe os globos oculares que mantinha guardados comigo.

Depois dessa viagem, eu só me reencontraria com Allistar quando os Torneios de Hannyere começassem. Ou seja, aquilo era praticamente uma despedida – e, a julgar por meu histórico, a probabilidade de voltar a vê-lo era realmente escassa – então como a pessoa bruta que sou, usei meu punho para socar violentamente o braço dele. Tanto pelo comentário, quanto como um gesto de adeus.

Mesmo assim, não neguei a possibilidade dele estar certo.

É… talvez fosse isso, mesmo…


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Notas finais do capítulo

E então... Vega já conhece o Al a algum tempo, embora não tenha tanta intimidade com ele. Haha. Para quem não leu Louise no Mundo dos Sonhos, o Allistar é um dos personagens mais próximos da heroína, é graças a ele que o grupo consegue chegar às Terras de Ninguém para resgatar Hannyere.
Espero que tenham gostado desse capítulo um pouco mais fantástico do que os outros, hihi.
Kisses kisses para todos e até a próxima. :3



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