Stay escrita por Charbitch


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Não tente me iludir. Sério. Eu sei que você não vai ler.



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 Stay.

 ǂ

❝ Reze para os estilhaços, reze para o seu medo

Reze para que a sua vida tenha sido só um sonho

O corte que nunca sara

Reze agora, baby, reze para que a sua vida tenha sido só um sonho❞.

(Man That You Fear — Marilyn Manson)

ǂ

 Debrucei-me sobre o parapeito da janela e me atentei ao que estava diante de mim, sorrindo verdadeiramente. A vista podia ser caótica para alguns: uma noite escura como piche, chuvosa como dilúvio. As gotas de água entravam pela janela sem pedir licença, molhando todo o meu rosto. Eu não me importava. Respirei fundo, o céu se pintava em relâmpagos e cantava trovões. O meu vazio era preenchido com lágrimas e os meus suspiros se intensificavam. Cinco andares, eram só cinco andares. Aquela janela estava a cinco andares do chão. Seria o suficiente? Sentei-me no parapeito da janela; precisava arriscar. Não era seguro, eu sabia que não era, por isso sorri. Balancei as pernas, tive uma sensação de liberdade, uma sensação que eu não tinha há anos. Ventava muito lá em cima. Os meus cabelos longos, negros e bagunçados se agitavam conforme a força da natureza. Fechei meus olhos. Eu me sentia uma criança, inocente como pássaro e frágil como vidro. Estava tão frio... E eu lá, apenas de vestido verde, meia calça roxa e botas brancas, completamente ensopado... Que caminhos me levaram até aquela encruzilhada?

Observei os meus cortes; eles coçavam... Chuva nenhuma jamais os lavaria. Eu tentava disfarçar as cicatrizes da forma que podia, mas era estupidez fingir que elas não existiam. Não me salvaria cobrir as feridas com as mangas da blusa; eu ainda assim saberia que elas estavam lá. Já tive o ímpeto de tatuar um desenho aleatório por cima delas, a fim de cobrir o estrago causado pela lâmina, no entanto o desenho teria que ser enorme. Eram cicatrizes demais, do pulso ao antebraço. Havia algumas nas pernas também, outras na barriga. Eu era uma legítima colcha de retalhos, marcada por uma história ruim, ou quem sabe por uma piada sem graça.

Eu escrevia certo por linhas de sangue.

O céu tremeu com mais uma trovoada. Assustei-me de início, porém o meu interior sabia que o meu desejo estava prestes a ser concedido. Eu era um tanto obcecado por tempestades, porque elas refletiam muito bem os monstros que se agitavam dentro de mim. A minha maquiagem já estava mais do que borrada, dando-me um ar fantasmagórico, quase irreal. Meu batom e meu delineador, ambos na cor preta, eram tão marcados quanto as linhas na minha pele. Contrastando com tanta escuridão, meu rosto estava pálido e mórbido, coberto por uma espessa camada de pó compacto. Analisei o esmalte preto descascado em minhas unhas. Limpei uma lágrima ou outra. Senti falta de ar, como se uma força invisível estivesse me sufocando. Chamavam aquilo de angústia. Angústia advinda da depressão, uma doença que sempre ia e voltava, como um câncer na alma. Mas como eu ainda conseguia respirar, em meio a tantas amarras? Amarras que eu mesmo tinha inventado. Ou que a vida, sem discrição alguma, pôs-se a enrolar em meu pescoço.

Eu já estava cansado de dar com a cara na parede das dúvidas, caminhando sem jamais me amparar no chão das respostas.

Sem escolha, infeliz e entregue, abri os braços e comecei a cantar:

Pray your life was just a dream... – a minha voz era um chiado desafinado e impotente, quase uma súplica vinda do lago de enxofre. Eu me sentia torturado como no mais cruel inferno; era condizente. – The cut that never heals. – Man That You Fear, a música que eu gostaria que tocasse no meu funeral. Sofrida e incompreendida, assim como eu. Era do álbum Antichrist Superstar, de Marilyn Manson, a minha banda favorita. Fazia tempo que eu não cantava qualquer verso de qualquer música, por mais simples que fosse.

E que motivos eu tinha para fazê-lo?

Assim que terminei o meu “show”, saindo do tom como eu sempre fazia, olhei para o chão lá embaixo. Três horas da manhã, nenhuma alma viva acordada. Eu ria de como todos aqueles anos difíceis construindo um passado podiam ser destruídos tão facilmente com um mísero segundo de descuido no presente.

Arrastei-me até a beirada do parapeito da janela, a um centímetro e meio da morte. Dei uma última olhada para o céu e estava prestes a pular. No entanto, antes que eu pudesse fazer isso, ouvi a porta do meu quarto abrir e as luzes se acenderem. Institivamente olhei para trás. Quem era o maldito intruso? Eu não queria parar, não quando eu estava tão perto...

— Avery? – era Alexis, de pijama, pantufas e olheiras. – Ouvi uma cantoria vindo daqui e vim ver o que estava acontecendo... O que faz acordado a essa hora? – arregalou os olhos. – Seu lunático, como pode deixar a janela aberta com essa chuvarada? Está molhando o apartamento todo! – correu para perto de mim e pôs as mãos na própria cintura, indignado. – Afinal, o que você está fazendo aí?

— Não vê, amor? Estou acabando com tudo.

Ele sabia que era sério quando eu o chamava de amor. Era como um código secreto que dizia: preciso de você.

— Ah não, Avery, de novo não! – arrancou-me da janela, contra a minha vontade. Tentei permanecer ali, esperneando como uma garotinha, mas ele era mais forte do que eu. Alexis categoricamente trancou a janela, fechou as cortinas e me olhou com piedade. – Minha nossa, você está tremendo de frio! Preciso arrumar outra roupa pra você agora!

— Alexis... Por que está tão preocupado com essas futilidades? – pus a minha mão magrela e molhada em seu ombro. – Eu sou um cadáver. Ou ao menos deveria ser. – balbuciei, olhos mortos e drenados. – Roupas não duram muito tempo no caixão.

— Para de falar besteira! Você tá vivo! – esbravejou. – Escuta só isso aqui que pulsa dentro de você! – pôs a sua mão em meu peito, escutando as batidas do meu coração. – Isso aqui é a vida! E eu vou te mostrar que ela vale a pena! – puxou-me pelo braço até sairmos do apartamento.

— Aonde você vai me levar? – perguntei, confuso. – Eu estou todo ensopado, você de pijama... E nós não estamos levando guarda-chuva para o aguaceiro que está lá fora!

— Ora essa... – resmungou. – Você não disse que não precisava de roupas? Então vai com essa mesmo! Já eu, não me importo com a minha. Se gosta tanto de chuva, eu vou me molhar nela com você!

— Nós vamos dançar na chuva? – sorri melancolicamente.

— Isso é tão estúpido e clichê... – riu, dando-se por vencido. – Mas você sempre quis fazer isso comigo...

— E você nunca fez.

— Hoje estou fazendo. Porque eu prefiro dançar com você hoje a te ver morto amanhã.

— Eu te amo!

Ele não me respondeu.

ǂΩ

Descemos pelas escadas e fomos lá fora, sentir aquela chuvarada de três horas da manhã cair sobre os nossos corpos.

— Mas que frio congelante! – Alexis praguejou. – Escreve aí: vou pegar uma pneumonia. Por você!

— Você não está contente? Digo, você... – antes de completar a frase, comecei a chorar. Eu estava muito sensível, porém por um bom motivo: qual seria a salvação em dançar na chuva com ele? Eu continuaria quebrado por dentro. Quando a nossa dança terminasse, eu ainda teria vontade de me matar.

— Olha só pra essas poças! – bradou Alexis, tentando me animar. Ele pulou em cima de uma e ficou todo sujo e molhado. Havia uma folha seca em seu cabelo. Eu sorri e olhei para ele. Fui agraciado com um sorriso mais belo ainda. As lágrimas diminuíram. Eu me sentia tão seguro perto dele... Por que ele não era meu? Por que não?

— Hoje é o meu último dia de vida. – murmurei para mim mesmo. Eu aproveitaria ao máximo aquela madrugada com ele. Prometeria falsamente ao meu amado que não mais atentaria contra a minha própria vida. E pularia daquela mesma janela no dia seguinte.

— Segura a minha mão e vamos nos esbaldar nessas poças! – pediu Alexis, tirando-me de meus pensamentos mórbidos. Nós entrelaçamos os nossos dedos e começamos a pular desenfreadamente de poça em poça, como duas criancinhas. Nenhum carro na rua; a cidade era nossa! Pulamos e pulamos, até não sabermos ao certo onde estávamos. Os trovões às vezes me assustavam, mas Alexis me abraçava para me proteger. Nós precisávamos ficar bem juntos, ou morreríamos de hipotermia.

— Está bem, Mister Alexis... – vislumbrei seus belos olhos na escuridão, iluminados pelo fraco facho de luz do poste. – Nós já pulamos em muitas poças, mas você ainda não me deu a honra desta dança...

— Ah, sim, claro, milady... – deu uma risada de escárnio e me agarrou pela cintura. Nós não estávamos dançando uma valsa. Aquilo estava mais para um Carnaval de bêbados... Ah, Alexis... Eu o amava tanto que daria a minha vida por ele... Se bem que a minha vida ainda era muito pouco, ora essa, eu já queria morrer. Alexis merecia muito mais.

— Você é louco! – comentei, apreciando todo o sabor da loucura. Ele me rodopiou como um pião, fazendo-me cair no chão e morrer de rir.

— Oh a senhorita se machucou? – deu-me a mão para me ajudar a levantar e me colocou de volta em seus braços, rindo aos montes.

— Não me machuquei, milorde... Ainda! – ri junto com ele. Eu ri tão sinceramente que aquela alegria nem parecia vir de mim. Eu nem sabia que podia me sentir daquela forma.

Nós dançamos mais e mais, até cantamos. Acabamos inventando a nossa própria trilha sonora. Levamos vários tombos e bebemos água da chuva. Alexis, mantendo-me em seus braços, inclinou-me levemente para baixo e me olhou profundamente, como os cavalheiros faziam nas valsas.

— Promete que não vai embora. – implorou, humilde e temeroso. Agarrou a minha mão com força. – Apesar do frio da chuva, ainda há calor nessa mão. Eu não quero segurá-la de novo e senti-la gelada. Não agora... Por favor...

— Eu... Eu prometo... – eu nunca tinha contado uma mentira tão feia em toda a minha vida. No entanto, eu sabia desde o início que ele me faria prometer. E eu sabia muito antes que eu teria que mentir. Alexis me abraçou com força e chorou.

— Todos me disseram que seria difícil conviver com um suicida... E eles estavam certos. Porém, também me disseram que eu deveria te deixar sozinho, afinal você não tinha solução. Nisso eu não acreditei. Você não é um caso perdido, eu sou o seu melhor amigo, sei que posso te salvar!

“Melhor amigo”. Aquelas duas palavras-chave quase sempre abriam a porta da tristeza em meu coração. Eu não o queria como amigo. E era por isso que eu estava partindo: para deixá-lo livre. Porque ele merecia a felicidade. Mesmo que não fosse comigo.

— Oh, Alexis... – eu o abracei com mais força ainda, quase o desmembrando. – Eu só te trago tristeza... Você tem desperdiçado o seu tempo comigo... Por que morar com o seu melhor amigo? Procure uma garota simpática, uma moça bonita que te faça feliz... Deixe-me ir! Eu só estou atrasando a sua vida!

— Não! – segurou o meu rosto e me olhou tão fundo que quase me quebrou em mil pedaços. – Eu prometi cuidar de você! Não me importa quantas vezes eu tenha que impedir que você faça uma besteira. Aliás, você não acabou de prometer que não faria mais nada? – apertou o meu rosto, assustando-me. – Você não vai fazer mais nada! Por mim! Por favor! – havia lágrimas em seus olhos; lágrimas quentes, contrastando com a frieza da chuva. – Se não for por você, diga que é por mim que você vai ficar!

— Mas é justamente por você que eu estou partindo... – chorei todas as minhas dores numa só cascata de lágrimas. – Se eu não posso te ter em vida, prefiro a morte.

— Você me tem, você me tem! Eu não estou aqui? – ele parecia confuso, sem ainda compreender o meu amor, muito maior que uma amizade. – Avery, eu estou aqui!

— Não te quero assim. Não desse jeito. – larguei-me de seus braços e olhei para o chão, desolado. – Isso nunca é o suficiente.

— Não estou entendendo.

— Antes de morrer, preciso que você saiba de uma coisa. — suspirei pesadamente. – Desculpa, Alexis. – segurei seu queixo e o beijei delicadamente. Ele se espantou com a minha atitude, afastando-me com um empurrão. Eu senti mais e mais lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Que atitude estúpida a minha! Eu sabia que ele só sentia atração por garotas, por que insistir em algo tão impossível?

A minha única opção foi sair correndo. Depois daquele vexame, eu não queria mais olhar para ele. Eu tinha estragado tudo. Eu sempre estragava tudo!

— Ei, Avery! Não corra nessa chuva! O chão está escorregadio, você pode se machucar! – gritou, correndo atrás de mim. Ele se enganava, pensando que podia me alcançar. Alexis era mais forte, mas eu era mais rápido. – Volte aqui! Vamos resolver esse mal entendido!

Mal entendido? Aquilo não era um mal entendido! Era tão claro quanto a água: eu gostava dele, ele não gostava de mim. Simples assim.

Eu só queria que ele me amasse...

Corri, corri e corri; Alexis estava cada vez mais longe. Eu não sabia ao certo porque estava correndo, eu só queria fugir. Fugir dele e de mim mesmo.

Até que eu vi:

Duas luzes amarelas e brilhantes. Um carro em alta velocidade, completamente desgovernado. Com certeza o motorista estava bêbado, talvez voltando de uma festa. A minha vida passou diante dos meus olhos naquele momento...

ǂΩ

Festas.

Eu sempre era ridicularizado nas festas, por ser homem e me vestir de mulher. Então eu me afogava em Whisky e esquecia aquilo tudo. Lembro-me de quando Alexis me encontrou numa daquelas festas, lindo como sempre foi. Ele também usava maquiagem e se vestia como uma garota. Eu estava jogado no chão do banheiro, tinha acabado de vomitar.

— Você está bem? – perguntou, segurando a minha mão. No estado em que eu me encontrava, não sabia ao certo o que estava acontecendo. – Se você desmaiar, vão fazer covardia com você. Onde você mora? Eu te levo pra casa. Sem maldade.

— Eu... – dei um soluço – Eu não tenho casa... – era verdade. Eu tinha acabado de ser despejado. O meu quadro de depressão ia de mal a pior. Acabei faltando várias vezes ao trabalho, culminando na minha demissão. Não encontrando mais onde trabalhar, devido às minhas roupas “inadequadas”, como muitos diziam, acabei me afogando em dívidas e tive que hipotecar a casa. Não demorei a perder tudo. Acabei no olho da rua, com apenas uns trocados para me embebedar pela última vez. Eu estava à beira do suicídio, como já estive muitas vezes. Alexis me salvou.

Quando acordei, sofrendo de ressaca, estava numa cama de lençóis brancos, com a cabeça deitada num travesseiro de penas.

— Onde estou? – perguntei a Alexis, ele estava ao pé da cama. Eu não me lembrava de nada. Senti o constrangimento tomar conta. – A gente...

— Não, claro que não... – acariciou os meus cabelos e me olhou com ternura. – Eu jamais me aproveitaria de alguém desse jeito. Você disse que não tinha casa. Preocupado e sem coragem de te deixar sozinho naquele banheiro de festa, te levei para o meu apartamento. Acredite, não fui maldoso com você, até porque não gosto de garotos. Eu apenas te carreguei nos braços e te deitei na cama. Beijei seu rosto, como um pai beija um filho. Você sussurrou algo parecido como um “eu te amo”, e desmaiou ali mesmo.

— Obrigado, mas... – eu estava completamente desarmado. Era praticamente impossível existir um ser tão puro quanto ele, a ponto de levar um estranho para casa. Eu não merecia aquilo! De forma alguma! – Desculpa... Eu te incomodei demais... – levantei-me da cama, transtornado. – Sei que sou um sem-teto, mas não vou ficar aqui, como um vagabundo nas suas costas. Você é uma pessoa boa demais. Preciso ir embora!

— Shhh! – ele me segurou em seus braços magros, porém fortes. Olhou bem firme em meus olhos. – Você não vai a lugar algum! – analisou cada centímetro dos meus pulsos, vislumbrando os meus cortes. – Eu vi isso ontem e fiquei assustado. Você se automutila?

— Desde que eu era um adolescente. – meus olhos estavam trêmulos, pesados e chorosos. – Você deve pensar que eu sou uma aberração, não é?

— Por que eu pensaria isso? – brincou com os meus cabelos e sorriu. – Você é lindo.

— Eu sou um suicida. – murmurei.

— Você pode morar aqui comigo enquanto desejar. – segurou o meu queixo. Eu pude sentir a respiração dele. – Sem cobranças, não precisa arrumar um emprego. Sei que parece bom demais para ser verdade, mas confie em mim: eu vou cuidar de você. – era tão estranho ele se importar com um desconhecido... Ele ao menos sabia o meu nome? – Eu não sei o que há comigo... Eu só sei que eu não consigo dar as costas a você. Fique aqui comigo. Podemos ser melhores amigos. Posso te mostrar que você é muito mais que um suicida. Porque eu sei que você é. Os seus olhos são insubstituíveis, assim como o sol e a lua. – ele estava lutando para segurar as lágrimas. – Você vai ficar? Você vai ficar aqui comigo?

— Vou.

ǂΩ

Festas. Festas, festas, festas.

Em meio a tanto Whisky e vômito, lá estava ele... Salvando-me e me sustentando como se eu fosse um parente de sangue. Alexis escondia todos os objetos cortantes, embora eu sempre encontrasse uma lâmina escondida no pote velho de margarina. Meu amado colocava trincos em todas as janelas, embora eu sempre conseguisse quebrá-los de alguma forma. Ele fazia de tudo para que eu não me matasse, embora eu já tivesse tentado tantas e tantas vezes, todas sem sucesso. Aquele homem me tratava com todo o afago e carinho do mundo, dando-me beijinhos no rosto quando eu me sentia fraco. Oh, ele me tratava como se fosse apaixonado por mim...

Mas eu sabia muito bem que Alexis era apenas mais um sonho falido, assim como todos os outros. Não existia razão em lutar; era como cavar um túmulo para alguém que estava vivo. E eu, como coveiro incompetente que era, já estava cansado de correr, correr sem motivo, correr para cavar algo que eu precisava esquecer. E por que não dar uma utilidade verdadeira à minha pá e enterrar a mim mesmo? Eu já estava farto de existir sobre as minhas duas pernas; necessitava padecer em posição horizontal, quebrado, seco, morto e fodido para o mundo. Foi por isso que eu me afastei da calçada, fui para o meio da rua, vi as luzes do carro ficarem mais fortes e me enfiei debaixo delas.

— Avery, não! – o grito de meu único amigo teria me feito parar, entretanto havia sido tarde demais. Já estava feito o que deveria ser feito. Embriagado, o motorista passou displicentemente por cima de mim, seguindo a sua viagem, sem nem se importar em socorrer a vítima. Aliás, que vítima? Eu que tinha acabado de me jogar, por livre e espontânea vontade. Não era culpa dele. Era culpa minha. Era sempre culpa minha. E quem disse que eu queria ser socorrido? Se a minha vontade fosse viver, eu não teria feito o que fiz. Eu não seria um suicida.

Olhei para o céu... Muitas gotas de chuva... Elas caíam do céu com tanta velocidade que me machucavam como balas de AK-47. Eu não conseguia me mexer, talvez tivesse quebrado alguns ossos. Eu só esperava que tivessem sido muitos. Finalmente. Finalmente! Senti o meu sangue quente e inválido escorrer. O meu sorriso se abriu de orelha a orelha.

— Então é assim que a vida acaba... – sussurrei, quase sem voz. Os meus olhos brilhavam. Era perfeito. Eu desejava a morte como nunca antes tinha desejado. E eu sabia que daquela vez ela iria me receber.

Lembrei-me do que a minha falecida mãe me dizia quando eu era pequeno:

Você não tem medo do escuro; você tem medo do que pode estar no escuro. Você não tem medo de altura; você tem medo de cair daquela altura. Você não tem medo da morte; você tem medo de não ter realizado os seus sonhos enquanto estava vivo.

Eu não temia o escuro, pois já havia me tornado parte dele. Meus olhos eram tentadores fragmentos da grandiosidade das sombras. Eu não era a vítima; eu era a própria assombração. Eu não temia a altura, pois desejava o abismo mais alto, do qual eu pudesse me atirar com mais facilidade. Sem rede de segurança, sem cordas para me segurar. Eu apreciaria a vista e me deleitaria com cada segundo da queda. Meus pés não buscariam o chão, mas o vento. A altura me libertaria. Eu não temia a morte, pois era apaixonado por ela. Honestamente, os meus sonhos não eram a minha prioridade; tão utópicos quanto uma ideologia sem falhas. Eu me entregava aos desejos hedonistas, justo aqueles com falsas promessas de que tudo terminaria bem. Eram desejos impuros, estúpidos e repletos de capricho, jamais ao nível da beleza dos sonhos. No entanto, eu não estava à altura dos meus sonhos. Eu estava à altura do abismo. Afinal, já dizia Friedrich Nietzsche: "Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você".

Quando os seus desejos forem concedidos, muitos de seus sonhos serão destruídos.

— Avery, seu doido! – ele me tirou do asfalto e me colocou na calçada. – Você fez de propósito! Você quebrou a promessa! – suas lágrimas escapavam abundantes como em nenhum outro momento. – Você tentou suicídio de novo! – segurou a minha mão. – Preciso te levar para o hospital, ou...

— Não. Não prolongue o meu sofrimento, por favor. – fechei os olhos; eu beirava a inconsciência. A voz de Alexis era como um borrão na minha cabeça. Era quase impossível sentir as minhas pernas, ou qualquer outra parte do meu corpo.

— Avery... – murmurou o meu melhor amigo; quase namorado. – Se você me ama, aperta a minha mão.

Eu apertei.

ǂ


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Notas finais do capítulo

Fuck it.



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