Cor do Pensamento escrita por Monique Góes


Capítulo 7
Capítulo 6 - Submundo


Notas iniciais do capítulo

O outro capítulo. Ele é bem curtinho e é continuação do anterior.



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Capítulo 6 - Submundo

Nem sabia como tinha se metido naquilo. Quando Near percebeu, estavam chegando numa das áreas do Submundo em que Kis fora visto pela última vez, segundo os informantes de Zarya.

Ela tinha lhe arranjado roupas em algum lugar que lhe serviam... E que não pareciam nem tão caras nem tão formais. A única coisa que tinha era o cajado, mas ele era simples e as lâminas de prata de mártir poderiam se passar por algum objeto contrabandeado, segundo a viúva.

— Zarya, uma pergunta. Eu literalmente participei de um cortejo pela cidade. Acho que a probabilidade de alguém me reconhecer é bem maior.

— Ninguém vai acreditar que o príncipe vem se meter no Submundo. Você é “acima demais” de toda essa sujeita.

Tanto ele quanto Eamon a olharam ceticamente.

— Acredite em mim. Ninguém acredita que a Haydée, que era uma funcionária de alto escalão do seu pai, vinha aqui. A probabilidade de acreditarem que o próprio príncipe veio é bem menor. Só deixe seus olhos normais e maravilha.

É, realmente não sabia como tinha ido parar ali.

Eles estavam numa área de porto. O chão de pedra era coberto de pedaços de madeira, papel, o que quer que tenha caído ali, e meio úmido. As docas eram logo do lado esquerdo, e era possível ouvir os tablados gemendo quando as pessoas passavam, e do outro lado eram diversos prédios, a maioria caindo aos pedaços. Estavam passando por uma parte repleta de pessoas se prostituindo, e Near não ficava muito confortável com a cena no geral, menos ainda em ver adolescentes que deveriam ter entre treze ou catorze anos no meio daquilo tudo.

— Ei bonitão, a Suzi pode fazer um ótimo preço pra você... – Uma híbrida falou quando passou. Ela tinha escamas em alguns pontos de sua pele, que passavam do verde ao dourado.

— Não estou interessado.

— Não? Talvez um homem talvez? Alguns dos meus amigos estão bem...

— Ainda não estou interessado. – cortou rapidamente.

Viu os ombros de Eamon tremerem como se ele estivesse rindo. Zarya se virou para ele.

— Você trouxe sua carteira?

— Deixei na sua casa. Por quê?

— Ah, ótimo. Senão provavelmente seria agora que ela a roubaria. Suzy é uma coisinha traiçoeira.

— Tem... Gente muito nova envolvida nisso tudo.

— Nós vivemos uma vida normal até o tempo do contrato do nosso parente humano se esgotar. – Zarya respondeu. – O contrato dura treze anos. Então, os cães do inferno vêm para levar a alma dele, e depois disso, nossas características demoníacas começam a aflorar. E essa é a questão: Você é pouco mais que uma criança, e não pode se misturar com os humanos, pois ainda não sabe se controlar, então de um jeito ou de outro, dá um jeito de acabar no império. E chegando aqui, ninguém gosta de meios demônios, e com certeza, ninguém “normal” lhe dará uma chance. Então, literalmente, todo mundo começa se prostituindo ou roubando, e depois vai refinando suas habilidades para assassinato, contrabando, essas coisas. Alguns nunca saem disso, como dá para ver. Quem não consegue fazer nada disso acaba morrendo, de maneira ou outra. De fome, porque ninguém tem pena dela, espancado, dependendo de onde se meter, pego pelo policiamento, que a maioria das vezes nos mata, ou em rituais.

— Rituais?

— Você pode não saber... Ainda. Muitos nobres, às escondidas, claro, costumam fazer rituais de sangue com a magia de Ashirikas para aumentar seu poder. Sabe, qualquer coisa que infligir dor no sacrifício aumentará a potência, e muitos híbridos tem habilidades únicas. Eles vão atrás das crianças morrendo de fome e se fingem ou de bonzinhos, ou que vão paga-las para fazer alguma coisa, elas caem, e é o fim delas.

Aquilo era... Não tinha nem palavras para aquilo. Monstruoso era a mais leve. Até aquele dia nem havia visto um meio demônio ainda, então aquilo nem passava direito pela sua cabeça, só havia ouvido comentários sobre os crimes.

Um grupo passou carregando uma série de caixas. Um dos meios demônios tinha mais de dois metros de altura e seis braços, praticamente carregando um caixote em cada um. Logo depois, passou um garoto praticamente voando com outro híbrido berrando atrás dele, fino que nem um cabo de vassoura e os cabelos totalmente desgrenhados. O híbrido menor carregava uma sacola e se jogou na água com o mais velho ainda gritando.

— É, é disso que eu estou falando. – Zarya comentou. – Ali, é onde os carregamentos de Kodlak são entregues.

— Você disse para ele manter a entrega?

— É o melhor jeito de pegar Kis. Ele tem que vir recebê-la.

A doca era a mais afastada dos prédios, provavelmente para não chamar muita atenção. Sobre ela, havia um homem musculoso, com diversos desenhos amarelos em sua pele carmesim. Ele descarregava caixas de cerâmica com um imenso “PERIGOSO”, e era possível ouvir os chiados das coisinhas de longe.

Num piscar de olhos, viu a figura da memória de Eamon. Ele estava na parte escura do cais, e era visível que ele não era também muito alto. De longe e na falta de claridade, com ambos tendo pele escura e cabelo claro, era bem fácil confundi-los.

— Foi bem rápido. – Ele falou. Ele estava usando a voz de Eamon.

— Claro que foi. – o homem bufou. – Esse é o último. Agora, Eamon, o chefe está perguntando por que caralhos você...

Ele não terminou. Kis ergueu a mão e o homem só levou a mão ao pescoço.

Eamon respondeu na hora. Só viu que ele lançou alguma coisa contra o outro, que depois percebeu que era uma faca, e acertou certeiro seu ombro. A resposta de Kis foi rápida, ele puxou a mão e correu.

— Não o deixe fugir!

Kis praticamente sumiu com sua velocidade, mas Eamon fez o mesmo. Deu para sentir o vento forte logo depois. Zarya foi até o cais, até o homem de pele vermelha que ofegava.

— Mas que diabos, aquele era o Kis!

— Ele atacou o Eamon há três dias. – ela respondeu. – Roubou a língua dele.

— Quê?! – Ele então olhou para Near, pulando para trás. – Quem é esse cara?!

— Um... – os dois se olharam. – Amigo. Kis estava mexendo com ele também e ele livrou a pele de Eamon mais cedo.

— Caralhos, ele quase me enforcou. – Ele balançou a cabeça. - Façam um favor? Chutem a bunda dele pra mim. Com força. Se quiserem enfiar essa lança bem no meio do...

— Ok, entendemos. – Zarya o cortou antes de ele terminar. – Eamon com certeza deve estar com vontade de fazer isso também. E nós temos que alcança-los também.

— Beleza... O que faço com essas plantas?

— Sei lá. Se o policiamento aparecer, jogue neles.

Ele riu.

— Ok, eu posso fazer isso.

Quando se afastaram, Near a chamou.

— Zarya, se você for correr naquela velocidade, eu vou ficar para trás. Eu posso ser mais rápido que um humano normal, mas não chega àquilo.

— Não se preocupe, minhas habilidades demoníacas não são tão voltadas ao lado físico. Por isso mandei o Eamon atrás dele. Agora temos que alcança-los. Posso seguir o cheiro.

Ela correu na frente, e não foi difícil acompanha-la. Passaram longe dos prédios, em direção a uma gruta que tinha ali. A água estava rasa e não os prejudicava tanto, e o lugar dava para uma caverna bem maior. Pelo cheiro, em algum horário ela deveria ficar totalmente submersa.

— Para onde? – questionou.

— Ali. – ela apontou para um caminho tablado que servia de ponte. Tirando que ele estava coberto de limo e ainda estava meio úmido. – Eles provavelmente subiram as paredes, mas não dá para nós fazermos isso.

Percebeu que tanto o cabelo quanto a pele dela estavam mudando de cor. Seu cabelo estava adquirindo um tom de rosa pastel e sua pele estava se tornando lilás claro. Conseguia ver também as escamas dourado pálido surgindo em listras sob seus olhos e por seus braços desnudos.

Subiram o mais rápido que puderam, e Near tirou seu cajado das costas quando escutou uma risada um tanto... Enlouquecida. Foram dar para dentro de uma grande caverna, que trazia diversas tochas azuladas acesas por ela, dando uma melhor visibilidade do lugar. Acima deles, para a entrada em outra gruta, viu Kis.

Ele estava curvado, como se ofegasse, mas se ajeitou rapidamente quando entraram no lugar.

— Ei, o que é isso que eu estou vendo?! – ele gritou e sua voz era de alguém totalmente descontrolado, como se no limite da loucura. O que ele havia feito com a voz de Eamon, não sabia o que era. – Um garotinho tentando ser uma mulher!

Hein?

— O que foi Grisha? É isso o que você é! Um h-o-m-e-m! – ele deu uma gargalhada ensandecida.

— Filho da puta. – ouviu Zarya grunhir entredentes.

Eamon saltou sobre ele na hora, mas Kis conseguiu ir para o lado. Near ergueu o cajado e deu um golpe no ar. A rajada de magia acertou no suporte de pedra de uma das pontes, que sustentava alguma coisa de pedra que imediatamente começou a ruir sobre ele.

Quando o outro meio demônio tentou pular para a segurança, as mãos de Zarya brilharam, e uma mão de energia dourada surgiu no ar, agarrando Kis. A mulher fez um movimento como se atirasse alguma coisa em direção à parede, e a mão de magia foi com tudo em direção à parede de pedra da caverna com um estrondo. Pedra voou para todos os lados, mas mesmo com a força daquele golpe que provavelmente mataria um lobisomem, viu o outro se levantando. Eamon pulou para o chão, saltando um pouco a frente deles.

Near só estendeu a mão em sua direção. Elos de energia prenderam seus braços, mas quando ia prender suas pernas, Zarya saltou a frente e deu um chute bem no meio das suas pernas.

Até esqueceu o que ia fazer, pois praticamente sentiu a dor do outro. Ele caiu no chão, e ela lhe deu um pisão com o calcanhar de sua bota no mesmo lugar com tanta força que Near até desviou o olhar, pois sinceramente pensou que as bolas dele explodiriam ou algo do tipo. Viu Eamon andando para trás com uma expressão de quem não queria sentir pena, mas sentia a dor só de olhar.

No fim, Kis parecia ter desmaiado. Também...

Aproximou-se um pouco, e viu que a parte esquerda de seu rosto estava inchada, desfigurada pelos cortes de Eamon. Ele estava babando e os olhos estavam revirados, só deixando o branco aparente.

— Enfim... – Zarya se abaixou e pegou um tubo que estava preso no cinto dele. – Esta é a sua língua, acho que consigo pô-la de volta. Abra a boca.

Eamon a encarou, e sua irmã, com toda a delicadeza do mundo, abriu a sua boca e enfiou a língua lá dentro. Não demorou muito para que ele começasse a tossir depois de um tempo.

— Argh, mas que porra andou fazendo com a minha língua?! – ele exclamou assim que Zarya a grudou de volta. Eamon tinha um forte sotaque irlandês, o que percebeu que Kis não havia imitado. – Está com um gosto horrível!

— Pelo menos ela está no lugar.

—... O que foi aquilo? – Near perguntou antes de conseguir se reprimir. Os dois o olharam, rapidamente entendendo o que ele tinha se referido.

— Ok, eu vou esperar lá fora. Se virem.

—... Não, espera, hã... Não precisa dizer nada se não estiver confortável... – acabou tropeçando nas palavras, mesmo assim, o outro híbrido saiu rapidamente do lugar, deixando ele e Zarya sozinhos. Ela suspirou, revirando os olhos.

— Não precisa ficar sem jeito, já que o meu querido irmão fez questão de gritar para todos que quisessem ouvir. – Zarya revirou os olhos, claramente aborrecida. – Nossa “mãe” é um demônio do desejo, e ao selar um contrato com um mortal, ela gera um filho. Sempre homem.

—... Sempre homem? Mas você...

— Eu nasci homem.

Oh?

Ao contrário do que poderiam pensar, aquilo não era estranho para Near. Ele já havia conhecido pessoas que nasciam em um sexo, mas se identificavam com outro. Claro, havia muito preconceito sobre elas e a grande maioria escondia o fato, vivendo no gênero em que se identificavam apenas perto de amigos próximos ou nos bares...

— Bom, mas você se identifica mais como sendo uma mulher, então você é uma mulher.

Zarya pareceu surpresa ao ouvir aquilo.

— Sério isso? Eu esperava ouvir mais um “você é só um travesti” ou perguntas indiscretas.

— Eu conheci um homem como você quando eu tinha uns dezessete anos. A família dele descobriu e eles internaram “ela” num manicômio por perversão sexual. Sinceramente, ele era um homem em tudo, atitude, maneira de falar, qualquer coisa que você possa pensar. Então essa de perguntas indiscretas e tudo mais... Acabei passando essa fase com ele. Tive sorte dele não me bater nenhuma vez.

Ela deu uma risada de descrença.

— A minha principal habilidade como meio demônio é metamorfose. Eu posso mudar todo o exterior do meu corpo, assim, pelo menos fisicamente, eu tenho o corpo completo de uma mulher. Não posso mudar o interior, fazer crescer um útero ou algo do tipo. – ela suspirou. – As únicas pessoas que sabiam disso eram Fausto e Eamon. Fausto porque ele me conheceu antes de eu decidir que queria realmente viver como uma mulher, na época em que eu era “Grisha”, e Eamon porque ele sabe de todo esse negócio de irmãos e tudo mais, foi como Kis deve ter deduzido também. Posso parecer paranoica, mas, além disso, não ser da conta de ninguém, tenho certeza de que a Assembleia tentaria usar isso contra mim. Anular o meu casamento com o Fausto ou qualquer coisa do tipo, dizendo que eu sou um “homem” e me acusar de falsidade ideológica.

— Eles realmente lhe perseguem?

— Mais do que você imagina. Quando Fausto desapareceu, além de eu estar absolutamente estressada pelo que estava acontecendo, começaram a aparecer acusações de todos os lugares de que eu estava envolvida naquilo por causa da herança. Depois de seis meses, quando ele foi declarado morto, surgiram várias entradas de processo que diziam que não deveria ser possível que eu herdasse qualquer coisa dele. Tentaram anular minha cidadania e o meu registro, tentaram provar que eram documentos falsos, que eu havia feito algum tipo de dominação mental no meu marido para que ele casasse comigo e me pusesse como herdeira, que as minhas declarações de “infertilidade” eram porque eu engravidava e sacrificava os bebês em rituais demoníacos. Ou quando eu “adotei” Eamon, vieram acusações de que eu estava criando uma organização criminosa. Como ele era meu irmão, voltaram as acusações de envolvimento com o desaparecimento dos Tinea para que eu me apropriasse das heranças. Tudo isso mais ou menos de julho de 1964 até mais ou menos junho de 1965.

Near ergueu as sobrancelhas. Aquilo era inacreditável.

— Se quiser, eu guardo cópias de todos os processos. Caixotes e mais caixotes de cinquenta e dois anos de acusações e ataques. É um ano produtivo se eu termina-lo com menos de cinco. Eles até mesmo atacam o fato que eu “tento” parecer humana.

— Achei que a Assembleia tinha coisas melhores a fazer.

— Ah, mas eles têm. As bancadas conservadoras são as que mais procuram motivos para ver problemas em mim, mas veja, eles também foram os que mais reclamaram da escravidão ser abolida, por exemplo. Agora quando entram com um processo, mando meus agentes investigarem e normalmente encontro provas e documentos forjados, além de algumas informações interessantes... Então uma ameaça aqui, outra ali, jogar uns escândalos de corrupção no ventilador fez com que as coisas se reduzissem.

— Bom, se você está nisso há tanto tempo, não fico surpreso.

— Falando nisso, príncipe Gaheris... Depois de toda essa confusão com Kis, quero muito saber por que e para quem ele estava fazendo tudo isso. Acho que vou aceitar a sua oferta de emprego.

— Bem vinda a bordo, então, Zarya.


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