Momentos por escrito. escrita por DkPringles


Capítulo 3
Capítulo 3 - Minha paciência já é curta de fábrica.




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Não era exatamente minha intenção dar voltas e voltas por ali do jeito que estava acontecendo, pretendia apenas ficar andando um pouco pelo corredor tranquilo da área externa e logo voltar à recepção, mas agora já não fazia mais a menor ideia de onde estava de tantos corredores que já havia percorrido por dentro do prédio.

— Olhe aqui dentro, uma das melhores salas! — Ela parou no meio de um dos corredores e apontou para uma janela de vidro que dava visão para dentro de uma sala, haviam equipamentos dos quais eu nunca havia visto antes lá dentro, alguns bem grandes, outros menores. Alguns eu sabia reconhecer como um andador parado ao canto esquerdo, algumas bolas de pilates, esteiras de caminhada e barras de metal usadas geralmente para ajudar cadeirantes a recuperar aos poucos a postura ereta da coluna.

— Fisioterapia? — Chutei.

— Não, é uma cozinha inspirada em Star Wars... — Ironizou — Claro que é uma sala de fisioterapia, não era pra você adivinhar o que era.

— Bem humorada você... — Deixei escapar talvez de propósito.

— Desde que eu nasci, querido. Não gostou então se manda. — Retrucou.

— Eu não falei nada, nem está mais aqui quem falou... — Ela podia ser baixinha mas a mulher tinha peito, muito mais que muitos homens que eu conhecia, além de me lembrar um pouco algumas pessoas.

White people problems... — Reclamou em voz baixa, ainda assim podendo ser ouvida.

— Pode me levar até a sala da minha irmã? — Perguntei.

— Quem é sua irmã?

— Alice Callaghan, ela começou hoje a fazer o tratamento aqui pra Doença de Stargardt, ela... tem problemas de visão. — Dizer que Alice é cega é algo forte na minha família, evitamos essa palava e isso ajuda até mesmo a minha irmã.

— Oh, ela é cega? Ok... Acho que por ser o primeiro dia dela ela está em clínico com a Dra. Marshall ou alguém do segundo andar. Meu bebê está lá também hoje, eu acredito.

Por mais que eu tivesse certa vontade de olhar feio à mulher por ter falado a palavra que evitava ouvir, ouvi-la dizer que seu bebê estava fazendo tratamento igual o da minha irmã fez meu coração, pouco utilizado nesses casos, sentir uma leve pontada. Eu sabia o que era aquilo, sabia o que era ter alguém importante que passava por uma situação em que na maioria das vezes podia acabar dependendo de alguém o resto da vida, e ainda assim não sentia pena, não é bom sentir pena das pessoas, mas sim esperança, de que as coisas são do jeito que devem ser e que se o filho dela era para vir a este mundo com aquela doença, assim como minha irmã, então é porque ambos eram capazes de ter uma vida normal, mesmo com suas limitações.

— Eu sinto muito pelo seu bebê. Quantos anos ele tem? — Meu tom de voz passou de algo mais normal a algo mais calmo e compreensivo, respeitando o momento.

— Hã? Que bebê o quê garoto? Tá maluco? Eu tenho cara de quem já é mãe por acaso? Meu bebê é o meu melhor amigo ok? E ele tem quase sua idade então da próxima vez que achar que eu sou mãe de alguém eu chuto meu pé nessa sua calça limpa.

Era errado jogar alguém de uma janela? Estava pensando a respeito.

— Hey! Espera... então é o seu melhor amigo que tem problema de visão também? — Questionei pouco indignado.

— Não, eu não disse que ele tinha "problemas de visão".

Sua voz soava tranquila como se ela claramente não se importasse nem mesmo um pouco com a cara de preocupação com ela e seu "bebê" que eu havia feito dois segundo atrás. Além das aspas com os dedos que havia feito.
— Eu falei que ele estava no mesmo andar que ela, cada andar tem três alas diferentes, espertalhão. O Térreo tem duas de fisioterapia porque acham melhor não forçar as pessoas em cadeiras de rodas a subir escadas, afinal... isso não é uma coisa fácil. — Completou.

— É, eu consigo ver uma lista completa de coisas nada fáceis por aqui.
Olhava diretamente para ela com uma expressão facial que dava a entender bem o que eu queria dizer.

Todo aquele tempo caminhando e eu não havia em momento algum perguntado seu nome, a aquele ponto tinha receio de faze-lo e receber uma resposta do tipo "Pra quê você quer saber meu nome? Qual sua intenção com ele?" e aquilo era o tipo da coisa que eu não estava ainda com paciência suficiente para lidar. De qualquer forma estaria longe dali em alguns minutos e precisava apenas retornar à recepção.

O Tour estava tedioso, tudo ali era normal e não fazia muito meu estilo, haviam pessoas andando pelos corredores de vez em quando e todas olhavam para mim como se procurassem algum tipo de falha em mim, como se buscassem pela minha deficiência para me tratar igual aos demais do lugar e aquilo soava um pouco estranho até mesmo pra mim mas era de fato o que acontecia.

— Hey, White boy!

A voz da mulher de cabelos cacheados chamou minha atenção novamente a ela, desta vez não me dei ao trabalho de olhar em sua direção, apenas continuei evitando contato visual com todos daquele lugar

— Michael. — Completei-a em voz baixa — Meu nome, Michael.

— Tanto faz. — Retrucou ela.

— Espere aqui, eu já volto pra te levar de volta. — A mulher sem nome aparente sorriu em minha direção e seguiu andando pelo corredor, meus olhos foram a acompanhando enquanto minha feição já ultrapassava os limites do tédio, e logo pude perceber sua aproximação a um jovem rapaz sentado num banco de madeira do outro lado do corredor, daquela distância não era possível ouvir a conversa que estavam tendo, mas aquela calça jeans e jaqueta vermelha lançou um flashback em minha cabeça, eu o conhecia, já havia o visto antes, mais cedo naquele dia. Era o garoto solitário do coreto. Agora estava ali, sentado num banco aleatório com um caderno e caneta em mãos provavelmente escrevendo seus pensamentos ou diários enquanto esperava algo ou alguém. Não tive interesse de manter minha atenção neles por muito tempo, logo estava dando alguns passos para trás e olhando através de outra janela de vidro no corredor, havia uma sala, não estava exatamente cheia, na verdade havia apenas duas pessoas dentro dela, duas garotas, uma loira e uma morena, ambas conversavam como se estivessem no intervalo de aula de uma escola onde ambas podem falar o que bem quiserem sobre quem quiserem. Conhecia aquele olhar, aquele jeito de cochichar, estariam elas falando algo sobre o garoto solitário ao banco de madeira? Meus olhos voltaram ao banco buscando notar qualquer tipo de expressão facial de qualquer um dos dois ali que pudesse tirar minha dúvida, mas todos os pelos em meu corpo ficaram eriçados ao instante em que olhei na direção do banco e a jovem de boca suja já estava parada ao meu lado, me encarando novamente com olhos de desaprovação, ou nojo, ou raiva, ou todos os três juntos.

— Jesus!! — Dei um salto leve com o calcanhar para trás ao vê-la já tão próximo sem sequer fazer um barulho.


— Não, já disse, não ando sobre as águas... não ainda. — Insinuou ela.

Meus olhos voltaram ao vidro e através da janela as duas garotas olhavam desconcertadas em nossa direção, provavelmente agora notaram a plateia e estariam falando algo sobre nós. Os olhos de ambas pareciam rolar devagar entre cada presente ali, e ao chegar na mulher ao meu lado pude notar a feição de "Credo?!" feita por uma das jovens, o que incitou certa vontade de rir dentro de mim, seguramente acabei por engoli-la, caso contrário causaria uma revolta ali. Enquanto desviava o olhar, notei o tom vermelho da jaqueta do garoto de antes parado ao lado da mulher que agora falava algo sobre as garotas na sala, eu não dava a menor das atenções a ela naquele momento então apenas ignorei cada palavra e não memorizei nenhuma delas. Por um breve momento meus olhos foram arrastados na direção do rapaz, como quem pudesse sentir estar sendo observado e imediatamente olhasse na suposta direção e lá estava ele, me encarando.

Seu olhar não refletia a mesma insanidade da jovem entre nós, era algo mais calmo, tranquilo e talvez tímido. A forma como ele olhava na minha direção era como se tentasse descobrir algo, como quem estivesse tentando decifrar o segredo do meu olhar de tédio naquele momento usando apenas os olhos. Suas mãos estavam enterradas nos bolsos do casaco e seus pés pareciam paralelos um ao outro, o bloco de notas de antes estava debaixo de seu braço, bem cuidado e com uma capa escura onde tudo o que eu conseguia ler era um possível nome. "Mid", seria esse um apelido? Não tinha curiosidade de descobrir, meus olhos voltaram aos dele e em seu rosto pouco queimado pelo sol na região do nariz ainda refletia o mesmo olhar, seus olhos eram castanhos num tom indiscutivelmente bonitos, eram claros mas com um brilho diferente por dentro, algo que batia perfeitamente com seu cabelo castanho partido e seu possível jeito. Ele sorriu em minha direção como quem já tivesse finalmente conseguido fazer seu trabalho e tudo o que minha feição pôde demonstrar de volta foi um leve movimento de sobrancelhas, logo desviando o olhar de sua direção e por um breve instante encarando a jovem de cabelos cacheados novamente. Ela não falava mais nada, apenas observava a sala através da janela, as jovens não estavam mais lá, pareciam ter se sentido desconfortáveis com nossos olhares e procuraram outro lugar para ir, agora a sala estava vazia, tão vazia quanto minha animação naquele momento.

Meus olhos perdidos tentavam me forçar a quebrar o silêncio que agora tomava conta do espaço e por alguma razão seguiram em direção à roupa que a jovem ao meu lado vestia, o tecido parecia confortável olhando àquela distância, coisa rara de se ver em uniformes de trabalho, mas não foi aquilo que mais chamou minha atenção. Havia um nome escrito ali, na altura do peito, ao lado esquerdo. inclinei a cabeça um pouco mais para frente e finalmente consegui ler o nome escrito. Michele. Aquele era seu nome, aquele era afinal o nome da ser humana que me assustou duas vezes e me forçou a sair com ela no tour mais tedioso da minha vida até o momento. Michele, um nome que na verdade não me era estranho, haviam algumas Micheles na minha sala da faculdade, era um belo nome ao meu ver.

Minha distração com o nome alheio foi tamanha que por um momento enquanto pensava, foi como se meu sistema nervoso tivesse dado tela azul, meu corpo estava parado pouco inclinado à frente e meus olhos focados atentamente na direção do nome costurado no uniforme, percebendo apenas que aquela talvez fosse uma direção perigosa de se olhar por muito tempo apenas depois de acordar de meu "transe" com a forte ardência de um tapa queimando em minha bochecha.

— Garoto pra onde você acha que tá olhando? Seu pervertido! Tá pensando que eu sou alguma das suas vadias brancas que deixam você olhar pros peitos delas quando bem quiser? Ah não meu amor, aqui a conversa é outra! — Berrou ela.

O tom de voz escandalosamente alto usado por ela distraiu completamente a quentura do tapa que havia levado, meu rosto provavelmente estaria começando a ficar vermelho naquele momento e enquanto isso ela berrava em minha direção com o indicador apontado à mim e fazendo movimentos à todas as direções enquanto ela claramente demonstrava estar ainda mais fora de controle do que antes. Aquele ser humano era completamente louco, até mesmo o outro garoto atrás dela, parecia procurar entender o que havia acontecido, seus olhos pareciam perdidos como os meus, de quem não havia entendido absolutamente nada até aquele vulcão começar a cuspir lava a todos os lados.

— Hã?? — berrei — Eu não estava olhando seus peitos, sua maluca!

— Oh não? — berrou — Menino bata na sua cara antes que eu mesma te bata novamente!

— Palhaço!

A voz dela era alta e logo aquele corredor estaria repleto de uma audiência, isso não era algo que eu gostaria de ser forçado a lidar tão cedo naquele dia, girei os olhos desistindo completamente daquela conversa de malucos e enquanto ela ainda berrava comigo, dei as costas e saí caminhando procurando por conta própria a saída daquele lugar. A qual me tomou quase dez minutos para achar. Na recepção, minha irmã já me aguardava.

— Oh hey! — O sujeito na portaria aparentemente estava fazendo amizade com ela, os dois pareciam conversar bem assim que cheguei passando pela porta de madeira. 

— Hey... — retribuí o cumprimento com uma tentativa frustrada de enganar meu humor naquele lugar.

— Mike! Finalmente! O Daniel estava agora mesmo me explicando sobre algumas coisas legais aqui na clínica. — Alice disse — Cada minuto gosto mais daqui.

— Bacana o Daniel então... vamos embora.

Não medi esforços para encarar mais ninguém naquele sanatório. Entre uma maratona de loucuras com uma mulher doida que brota do chão e claramente tem coisas contra pessoas brancas e um sujeito que pelo jeito de cumprimentar outros estava claramente demonstrando interesse na minha irmã, minha cota daquele lugar estava cheia pelo resto da semana. Alice se despediu do rapaz com quem conversava, eu por outro lado não fiz a menor questão de trocar um "a" com mais ninguém daquele lugar, apenas esperei por ela dois passos para trás e quando senti sua mão segurar meu braço, já parti em direção ao carro, talvez um pouco apressado demais e nos tirando finalmente daquele lugar.


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