Momentos por escrito. escrita por DkPringles


Capítulo 2
Capítulo 2 - Um shopping no século XIX




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/713093/chapter/2

Oh, nosso estilo musical era tão diferente. Desde o instante em que entrei no carro e tirei as chaves do bolso, dando a partida e dirigindo para fora da garagem até o instante em que cruzamos o quinto sinal, meu sistema nervoso inteiro parecia relaxar-se até demais com as trilhas sonoras de filmes épicos tocadas em violinos que Alice costumava ouvir, eu não fazia parte do time de pessoas que achavam tais músicas tediosas, na verdade até gostava, só não achava uma boa ideia ouvir tão cedo da manhã, dirigindo, quando tudo que eu queria agora era estar relaxando na minha cama.

— Você está bem quieto pra alguém que não estava com um tom de voz muito bom em casa. — Ela mexia em seus cabelos deixando-os serem levados pelo vento da janela semi aberta.

— Hm. — Disse-lhe pouco apreensivo de fazer algum comentário que a deixasse confortável mas logo tomei a decisão de insistir no assunto — Hey... você tem certeza sobre esse lugar? Digo... sei lá, tem certeza de que é isso mesmo que você quer?

— Mike...

— Não, eu sei. — Interrompi seu pensamento rapidamente procurando tentar me explicar — É só que... eu não vejo uma grande diferença entre esse lugar e o lugar que a gente tentou antes. Só o tamanho.

— Michael... — Sua voz soou num tom mais alto, porém não rude — ... eu sei, você está preocupado com isso já a um bom tempo, percebi pelo seu tom de voz. — Seu rosto como sempre estava focado para frente, com seus óculos cobrindo os olhos e uma expressão facial talvez gêmea à minha naquele momento — Olha, não é pelo tratamento que eu escolhi mudar, ok? Lá provavelmente vão me dizer a mesma coisa que sempre me diziam em todos os lugares e eu vou fazer o mesmo tratamento que fazia em todos os outros possíveis lugares dessa cidade, a diferença é que... agora eu vou poder interagir com pessoas como eu, entende? Pessoas que... nasceram diferentes ou que acabaram por se tornar diferentes com o tempo.

— Eu imaginei que você fosse falar isso... — Um sorriso bobo nasceu no canto de ambos os nossos rostos por breves segundos, nada que pudesse demarcar uma mudança na seriedade da conversa.

— É bom as vezes saber que num lugar onde todos são diferentes de uma forma igual, no final todos somos iguais outra vez.

Eu não era alguém do tipo sentimental, podia simplesmente ter deixado aquilo passar mas ouvi-la dizer aquela sua última frase foi como ver um dos vídeos de família que minha mãe sempre mostrava a todos no natal, nostálgico mas responsável por uma breve pontada de humanidade dentro do coração de um garoto fechado para o mundo.

— Eu ainda apoiaria a ideia de a gente só comprar um cachorro pra você. — Ela riu.

— Ah claro, se eu não tivesse alergia a eles seria uma boa ideia! — Suas sobrancelhas arqueadas combinavam com a forma como seu sorriso no canto do rosto ressaltava sua melhor expressão facial, de alguma forma, ali acabaram minhas dúvidas, porém não aquela pitada de preocupação com relação a tudo isso.

O lugar não era tão perto de casa, já havia quase 20 minutos e ainda estávamos um pouco longe, Alice não parava de falar sobre o lugar e o quão confortável ela confiava que se sentiria, eu por outro lado, cumpria o papel do irmão mais velho.

— Aposto que você vai chegar em casa um dia levando um garoto super estranho e dizendo "Mike, esse é o Herbert, meu namorado." — Insinuei brincando.

— Hã? Herbert? Esse não era o nome do nosso hamster de quando o Elliot era bebê? Credo, Mike. — Alice riu e claramente começou a entrar na brincadeira — O nome dele vai ser Huston, porque aí quando eu tiver que apresentar ele pra vocês e você em especial odiar ele, eu posso dizer: Huston, temos um problema.

— Que bosta de piada... — retruquei balançando a cabeça.

— Bosta é a sua namorada, garoto. — A voz dela parecia séria ao mesmo tempo que brincalhona, procurei não demonstrar estar rindo por dentro e segurando o riso por fora.

— Ok, então sem Herberts nem Hustons, qual será o nome dele, huh? — Perguntei.

— Ele não vai ter nome, nem idade, nem voz, nem aparência física, nem vai existir, se é isso que você quer tanto saber. — Ela riu voltando a passar a mão no cabelo enquanto coçava a bochecha abaixo do óculos.

— Ah, claro... quero só ver! — Dei o assunto por terminado ao notar a aproximação do lugar o qual minha mãe havia direcionado, avisei a Alice e no mesmo instante seu ânimo voltou a parecer querer fazer ela saltar do banco para fora do carro de uma vez.

Não era uma clínica, não mesmo. Aquele lugar mais parecia um shopping. Um shopping localizado em algum lugar celestial. Sim, era como um Shopping celestial, tudo na fachada era branco, as paredes, janelas, cortinas, bancadas e escadas, tudo parecia completamente branco. O prédio me lembrava um pouco uma casa colonial do século XIX, era notável à distância aquela semelhança. O estacionamento era bem à frente e pelo tamanho do muro em volta do lugar, havia uma enorme área externa escondida ali.

— Wow... — Soei baixo.

— Huh?? Você impressionado? Esse lugar então deve ser muito melhor do que eu imagino! — A agitação dela tornava-se ainda maior a cada segundo, Alice logo começaria a se comportar como uma garota de 12 anos em seu primeiro dia de escola nova, era bom eu fazer ela já estar lá dentro antes que começasse a surtar.

— Er... tanto faz. Vamos então? — Destravei as portas do carro e desci primeiro, indo até o lado dela e abrindo sua porta, esperando-a descer e segurando sua mão enquanto travava o carro e caminhava à entrada.

Todas as linhas arquitetônicas daquele lugar traziam minha mente a um flashback de todas as minhas aulas de história à respeito, exceto pelas janelas, eram mais sofisticadas e algumas delas, as mais abertas, podia ver as cortinas finas de tecidos macios e pouco pardos sendo balançadas pelo vento, não precisava toca-las para dizer que eram cortinas de ótima qualidade, o brilho e a leveza do tecido já parecia me passar essa informação à distância. Haviam estruturas em abóbodas ligando os pilares de mármore, o corrimão era feito de pedra e as portas na entrada eram enormes e de madeira grossa, não havia apenas um estilo de arquitetura naquele lugar, mas sim vários, uma combinação perfeita de arte e expressão arquitetônica que fazia minha mente correr séculos e séculos num mesmo ambiente. Subimos as pequenas escadas e logo já estávamos na recepção, onde um sujeito de roupas sociais e uma linha preta cortando o tecido na altura do peito sorriu a mim e Alice com um saudoso "Olá" imprimido nele.

— Olá. Eu sou a Alice Callahan. Eu tenho clínico marcado com a Dra. Parker. — Deixei que ela tomasse a frente naquele momento, dei dois passos para trás apenas a observando caso precisasse de mim.

— Muito bem então, er... Alice! Eu só preciso fazer sua ficha, tudo bem? E pegar algumas informações básicas. — O sujeito tinha voz completamente diferente do que seu corpo parecia dizer, ele era magro e baixinho, com uma cabeça enorme e sua voz era grossa como a de um locutor de rádio. — Nome e idade, por favor?

— Alice Callahan, 18 anos. — Ela respondeu.

— Dra. Parker, certo? — Ele anotava numa ficha tudo que ela confirmava ou dizia — E como você achou a gente, Alice?

— Bem... — Sua voz pareceu tremer um pouco, mas confiei que ela daria conta disso. — Quando eu tinha quatro anos comecei a perder uma porcentagem da visão, aos oito anos eu já não conseguia enxergar nem mesmo 20% das coisas, com dez anos fiz minha terceira cirurgia e desde os doze anos que eu venho tentado diferentes tratamentos pra recuperar ao menos uma parcela da minha visão. É complicado, e eu estava perdendo um pouco as esperanças nos outros cinco tratamentos que eu já fiz até hoje, mas então um amigo da minha mãe contou pra ela sobre esse lugar, que vocês promovem técnicas de tratamentos médicos e fisioterapêuticos pra pessoas como eu, pessoas com deficiência, e desde que ela comentou sobre isso comigo e sobre as coisas que ela já tinha ouvido sobre o lugar, eu meio que... não conseguia dormir direito até poder vir. Eu acho que é isso.

O sorriso em seu rosto era enorme naquele momento assim como as bochechas acanhadas, até mesmo o sujeito da recepção parecia sorrir com sua breve história, a qual de fato, não cabia a mim ter de contar a respeito.

— Muitas pessoas com o mesmo problema que eu vem aqui, não é? — Ela perguntou.

— Sim. — Ele respondeu deixando um sorriso escapar.

— Na verdade, eu diria que pessoas com deficiências visuais são os mais frequentes do lugar, ou isso, ou o pessoal do fisioterapêutico. Todo mundo gosta de se enturmar com o pessoal que é diferente igual a eles. — Completou.

Alice parecia animada. Tratei de me sentar num sofá marrom ao canto de frente para uma mesinha de centro com panfletos da clínica e de frente para uma segunda porta de madeira, que dava para um lugar diferente e completamente aberto dentro do território do lugar. Não passou muito tempo e logo Alice foi acompanhada pelo rapaz até seu novo tratamento, estava feliz por ela, e também um pouco entediado em estar ali. Fazia o terceiro período de medicina na faculdade e provavelmente podia acabar algum dia num lugar como aquele ou qualquer outro, ainda teria de esperar para saber, mas quando se tratava de esperar numa recepção, aquilo me matava. A porta de madeira à minha frente parecia chamar meu nome. Havia grama do outro lado, separada de mim por um parapeito de pedra igual ao da entrada e um caminho de pisos brancos e bejes seguindo nas duas direções. Não havia ninguém ali, o sujeito da voz grossa ainda não havia voltado e meus pés pareciam pedir que eu me levantasse para que eles pudessem me levar até lá. Não parecia ser algo proibido por ali então acabei por ceder à curiosidade, saindo pela porta e começando a andar na área externa do lugar.

Havia um coreto de madeira e tijolos no centro da área verde, ao longe, escondido por algumas árvores espalhadas pelo espaço. Parecia um lugar bem solitário, haviam caminhos de pedra vindo de todas as direções e terminando-se nele, mas ao que meus olhos me permitiam ver, havia apenas uma figura lá. Um garoto de jaqueta vermelha, solitário balançando as pernas enquanto sentado no parapeito do coreto observando alguma coisa. Não dei muita atenção a aquilo e apenas continuei andando, ao menos era essa a minha principal intenção.

— Indo a algum lugar? — Uma voz feminina pouco grossa ecoou num tom alto bem à minha frente.

— Jesus!! — Num pulo, um ser humano simplesmente havia brotado do chão à minha frente e barrado minha passagem enquanto ainda observava os caminhos de pedra. De onde aquela mulher havia surgido? Não fazia a menor ideia, mas quase havia me causado um infarto em aparecer daquela forma.
— Não, infelizmente. — Ela respondeu.

— De... de onde você...? — meus olhos buscavam apressados uma explicação para de onde aquela mulher havia aparecido mas não havia explicação, haviam apenas janelas àquele ponto no corredor externo, e pessoas apenas a mais de trinta passos de distância de mim. Ela havia surgido do nada.
— De onde VOCÊ saiu? É acompanhante? — Retrucou

Seu olhar pra mim era o mesmo que uma vegetariana fazia a um suculento corte de picanha na mesa ao lado num restaurante ao jantar. Ela trajava as mesmas roupas do recepcionista, era funcionária do lugar, aquela era uma percepção importante, já sabia que não se tratava de um fantasma. Sua pele morena batia maravilhosamente bem com a cor castanha de seus cabelos cacheados e presos mas sua cara era assustadora, ela literalmente parecia querer arrancar meu fígado com os olhos.

— Er... eu... — Apontei à porta de madeira já alguns metros atrás de mim. — Acompanhante.

— Hm... tá.

Ela girou os olhos nas orbitas como se estivesse cansada de ver gente aleatória caminhando sem permissão pelos corredores, seus braços eram grossos e ela podia talvez ser algum tipo de segurança do lugar se não fosse pelo seu tamanho, ela não era alta, na verdade era talvez alguns centímetros mais baixa que minha irmã.

— Então, seguinte ... Você não pode ficar aqui, área restrita. Tá vendo meu crachá meu amor? Tá vendo? — Ela puxou o crachá que estava debaixo da camisa e praticamente começou a esfrega-lo na minha cara. — Então? Sem crachá, sem passe livre, isso aqui não é museu nem circo não.

Aquela era talvez a forma mais normal dela de dizer a alguém que a pessoa não podia estar ali, isso julgando a feição em seu rosto ao me dizer aquilo. Eu não tentei argumentar, estava sem direitos ali, apenas dei as mãos por rendidas e virei de costas já dando o primeiro passo de volta à recepção até sentir um puxão no braço e me ver sendo arrastado por ela pelo caminho que estava seguindo antes.

— Mas já que eu tenho algumas horas livres ainda eu vou te dar um tour básico do lugar, vamos logo com isso porque eu mudo de ideia rapidinho. — Disse ela, já me puxando para dentro dos demais corredores.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Momentos por escrito." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.