Chains escrita por Passarinho


Capítulo 6
Vinho


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo bem morninho saindo do forno (bem morno).
Eu disse que eu ia diminuir? Menti... menti feio, menti rude. Da próxima EU JURO que tento diminuir.
Tudo que eu tenho a dizer é boa leitura e tentem não odiar certo personagem. Quem conseguir ganha o nobel da paz.



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A luz do dia começou a tomar conta de Serdin mais uma vez, mas não do quarto deles, que ainda estavam dormindo. Lá, as paredes não possuíam sequer uma janela, deixando o cômodo escuro. Assim que o sol raiou, o frio que dominava toda a região se foi, voltando a temperatura normal.

O fogo que Dio houvera conjurado ainda estava aceso, e sem o frio para nivelar a temperatura, fez daquele ambiente um perfeito forno. Veigas, já suando a ponto de começar a molhar o travesseiro e quase se despindo inconscientemente por causa do calor, acordou alguns minutos depois.

Já percebendo a fonte do seu incômodo, começou a puxar a corrente tentando acordar o outro, que ainda dormia.

    Ei, apaga o fogo. — Veigas puxava com mais força, mas em troca, não recebeu nenhum sinal de que Dio tivesse acordado. — Acorda logo e apaga essa desgraça!

Continuou gritando e puxando cada vez mais forte, até Dio cair no chão e finalmente acordar com uma pancada na cabeça que fez um barulho consideravelmente alto.

    — Você é surdo? Faz alguma coisa com teu foguinho, anda! — O menor apontava.

Dio, fazendo as chamas desaparecerem, levantou rosnando de raiva e tentou arranhar Veigas com sua garra. Errando por ter sido desviado, trouxe o mesmo braço com tudo para trás, agarrando a corrente e puxando para a mesma direção bruscamente. Com isso, o outro caiu da cama e fez o mesmo “barulho consideravelmente alto” quando a cabeça entrou em contato com o chão.

Agora também raivoso e mais irritando que antes, Veigas chutou a canela de Dio e se ergueu, já no anseio de começar mais uma luta, que mesmo pelo fato de não poder matar, já o satisfaria só com alguns arranhões. Pronto para mais um ataque, conjurou energia, mas quando ia lançar, foi paralisado no ato.

    — Arani me pediu pra vir ver se estão acordados. A comida está quase pronta, se quiserem podem tomar outro banho antes. Depois disso, temos de conversar. — Nahu, que tinha aberto a porta sem bater e nem avisar, falou e foi embora, como se fosse um pequeno robô.

Ambos foram deixados por ela com uma cara de paisagem imensa. A energia se desfez da mão de Veigas, que já estava sem o clima para lutar, assim como Dio, que suspirou e se afastou, indo direto para fora. Mas antes, olhou para trás, e suspirando mais uma vez, recomeçou a andar e foi até o banheiro, e o menor vinha logo em seguida.

Em um consenso mútuo e sem a necessidade de trocar nenhuma palavra, Veigas foi o primeiro a tomar banho por ter sido mais sensível ao calor e estar mais suado, voltando com seu cabelo do jeito normal e os brincos de argola habituais. Em questão de meia hora, já estavam se dirigindo para a sala, sendo recebidos por Nahu que os guiou até a mesa. Arani, deixando tudo arrumado, os convidou para sentar, convite que tinha sido silenciosamente aceito por Dio e claramente rejeitado por Veigas que alegava não estar com fome. Terminado de comer — coisa que ele fez o mais rápido possível — Dio já ia saindo da mesa.

    — Espere um pouco, antes nós temos de conversar sobre algumas coisas! — Arani parou Dio de se levantar, e logo virou-se. — Veigas? Pode vir aqui um pouquinho?

Ele estava longe da mesa até onde o limite das correntes o permitia, não dando ouvidos ao chamado. Dio, já sabendo do que estava por vir, o puxou para mais perto, já que não queria ser o único a escutar os longos discursos que as duas mulheres provavelmente fariam.

    — Vamos começar sobre as regras da casa, não? É bem simples, primeiramente... — E a morena continuou falando e falando sobre as tais regras. A maioria delas era de senso comum ou até bizarras, como “não sair e deixar o chuveiro ligado” ou “não tentar comer as plantas do jardim”. Mesmo Veigas tentando escapar dali inúmeras vezes, era parado por Dio, que só estava lá ainda porque queria ver o outro agoniar de tédio. — ... e eu acho que isso é tudo. Esqueci de algo, Nahu? — Arani concluiu, depois de um longo monólogo.

Em resposta, Nahu meneou a cabeça negativamente. Os dois, mentalmente, deram graças a deus que não tinha mais nenhuma “regra” a ser falada. Arani, percebendo o clima ruim que tinha deixado, começou a falar de novo.

    — Ahn, bem... Já que vocês já conhecem as regras, vamos mudar de assunto... Ah, já sei! Ontem, eu estava conversando com Serre, e pelo que ele me contou, se interessou bastante em vocês! Disse que têm um tipo de magia especial.

    — Magia especial? — Veigas perguntou.

    — Sim, e nos contou também sobre a espécie de vocês... Elfos híbridos, né? Poxa, deve ter sido difícil. Eu só ouvi falar da espécie por meio de lendas de outro continente, não sabia que existiam de verdade...

Ambos entraram na onda e concordaram em serem chamados de híbridos.

    — Esse “outro continente”, por acaso é Arquimídia? — A mente de Dio repentinamente o deu um pequeno flash de memória.

    — Dio? Essa é a primeira vez que você fala alguma coisa pra gente desde que chegou aqui! — Os olhos de Arani brilhavam. — Sim, é um mito que eu li em um livro vindo de Arquimídia.

    — Calnat. Você sabe como chegar lá?

    — Calnat...? Oh, sim, eu sei como, mas nunca fui de verdade. Por que quer ir pra lá?

Dio ficou em silêncio. Abaixando a cabeça, entreolhou a corrente, aquela que seria impossível dele arranjar paciência e se dispor de vontade de explicar sobre. Suspirou.

    — Ah, provavelmente pelo mesmo motivo que todo mundo quer. Calnat tem o acervo de magia mais poderoso que qualquer outra cidade. Nunca ouvi falar de nenhum mago de outros continentes que fosse mais forte que um calnatiano, e sem contar toda tecnologia que tem lá. — Nahu falou, enquanto retirava pratos, copos e talheres da mesa.

 Dio e Veigas fingiram que aquele era o seu objetivo, afinal “elfos híbridos que querem fazer uma viagem continental atrás de força” soava bem melhor do que “demônios de outra dimensão que querem se matar e dar o fora daqui”.

    — Um dia eu também quero ir à Calnat, mas eu tenho mais prioridades aqui em Serdin. Até porque eu acho que não conseguiria chegar lá sã e salva sem ter uma bela quantia de dinheiro... — Arani, depois de ter dito isso, quase enxergava um ponto de interrogação acima da cabeça dos dois. — Ah, é que Calnat é muito, muito longe daqui, e no caminho de cá pra lá tem tantos perigos, que seria quase suicídio ir por conta própria. Claro, tem meios de transporte, mas são tão caros que eu conseguiria comprar um castelo só pela ida...

    — E qual o caminho que eu tenho de fazer pra chegar lá? — Veigas parecia pronto para sair andando da casa assim que ela respondesse.

    — Mas eu acabei de dizer que é perigoso, vocês não conseguiriam chegar até lá sem se machucar mais do que já estavam quando nos encontramos... — disse a morena, já percebendo como se desenrolaria aquela história.

Assim que ela contasse, eles iriam embora. Assim que ela contasse, não os teria mais ali, e ambos certamente se machucariam de novo. E nem ela nem Nahu estariam perto para ajudar. Mas Arani sabia que não conseguiria, sozinha, prendê-los por muito tempo. Entretanto, quanto mais tempo ela conseguisse a companhia deles, melhor. Olhando para Veigas, que esperava avidamente a resposta da pergunta que fez, já sabia o que fazer.

    — ... Não. Eu não vou contar.

Nahu, que já tinha terminado de limpar a mesa, entreolhou Arani com espanto, mas logo se deu conta. A ruiva a conhecia como ninguém, e não bastou dois segundos para saber o que ela tinha em mente, porque só existia um motivo ali para ela recusar algo para alguém. Nahu saiu de perto da mesa e foi em direção ao corredor vazio, se afastando da conversa e entrando na última porta.

A morena já percebia a boca de Veigas começando a se abrir em contestação, e logo colocou a explicar-se.

    — Eu não vou contar, porque eu sei que vocês vão sair correndo daqui, deixar o reino e se machucarem de novo. Eu não os conheço nem a dois dias inteiros, mas eu sinto que isso vai acontecer.

    — Ora, pare com essa estupidez e desembuche o caminho, eu não tenho paciência pra esse tipo de brincadeira. — Veigas ralhou.

    — Eu não estou brincando. Vocês podem morrer lá fora, e eu não quero isso.

    — Ah, quer dizer que esse tempo todo, ficar aqui foi só perda de tempo? — disse ele, se redirecionando para a saída da casa — Então, eu mesmo vou descobrir sozinho. Alguém mais nessa cidade tem de saber.

    — Acho melhor não tentar sair daqui tão cedo. — Nahu, que tinha voltado sorrateiramente para a conversa, recostou-se em uma parede próxima. — Eu fui conversar com Serre, e ele me contou sobre você ter atacado Aldun perto do centro de Serdin. Agora, a cidade inteira deve estar sabendo, e eu não acho que vai ser fácil de conversar com alguém depois disso.

Veigas parou de se mover, quase encolerizado de raiva. Dio, que presenciou tudo quieto, tomou a sequência da conversa.

    — E o que eu preciso fazer pra vocês falarem?

    — Não seja fraco. — Nahu respondeu secamente para Dio, já virando-se para Veigas, adiantando a resposta que receberia — Não tente discordar, eu lembro de que você tentou atacar Arani quando nos encontramos perto da muralha, e sua magia era tão fraca que ela conseguiu se defender só com a palma da mão.

    — E se vocês tentarem sair de Serdin assim, com certeza não vão conseguir chegar à Calnat... Não vivos... — Arani prosseguiu.

    — Então, a única opção que vocês têm é ficarem fortes. Senão, não soltaremos um pio. — Nahu olhou para a outra, que estava sorrindo.

Eles já tinham compreendido o que estava por vir. Era óbvio, e para completar, do corredor já vinha Serre, com um belo amontoado de livros na mão, também com um sorriso relaxado no rosto e olhos inchados de quem acabou de acordar.

    — Quanto tempo faz que a casa não fica animada assim? — ria o velho, já se aproximando para colocar os livros na mesa. — Desculpe, eu não consegui acordar a tempo pra comer com vocês, mas Nahu e eu conversamos sobre algumas coisas. — Virou-se para Dio e Veigas. — Então, querem que eu comece a lecionar para vocês hoje mesmo?

    — ... Lecionar? — Dio perguntou, mesmo sabendo do que ele queria dizer, mas torcia para que tivesse ouvido errado.

    — Sim! Serre viu algum potencial em vocês, e como querem ir para Calnat sozinhos, mas ainda são fracos, nada melhor que ficarem aqui e treinarem sua magia! — Arani alegrou-se, pois tinha arranjado a justificativa perfeita para que os dois ficassem por mais tempo.

    — Como ela disse, jovens. E eu posso começar a treiná-los assim que estiverem prontos. Afinal, é como eu disse antes, eu sou o diretor da Academia de Magia principal do reino. O único contratempo é que, depois do “tumulto” de ontem, não posso colocá-los na Academia agora, então terá de ser tudo aqui mesmo. Hum... — O velho pensou um pouco. — Hoje de noite, que tal? Vocês me mostram do que já sabem fazer, e eu aplico o método instrutivo mais apropriado.

Outra vez sem nenhum direito de resposta, os dois só conseguiam pensar na merda que se meteram. Tudo o que eles queriam no momento era sumir dali, porém, quem realmente sumiu foi Serre, que já ia saindo da casa sem dizer nada, e antes que pudessem perguntar sobre, as duas também já estavam na porta de saída

    — Nós temos de resolver algumas coisas na cidade, mas voltamos rápido, ok? Podem explorar a casa o quanto quiserem, só não saiam ainda, porque... Vocês sabem. — Arani entoava sua voz gentil enquanto saía em companhia da ruiva. — Se cuidem.

E assim, só sobraram eles na casa. Dio, esperando até que não conseguisse ouvir sequer um barulho vindo do lado de fora, se levantou da cadeira em que estava sentado. Veigas pegou um dos livros jogados pela mesa e o folheou, em busca de alguma informação que considerasse importante, mas logo largou.

    — Vamos esperar dez minutos até que eles estejam longe, e sair daqui. — Veigas pegou outro na mesa e começou a folhear.

    — Não vamos sair.

    — O quê? — ele fechou o livro que tinha em mãos, colocando-o junto dos outros. — Você quer mesmo ficar aqui junto daqueles humanos?

    — Não, não quero. Mas qual a outra opção que eu tenho?

    — Sair dessa casa e procurar alguém que saiba ir para Calnat?

    — Mas qual a outra opção que eu tenho que não inclua a possibilidade de você arranjar mais problema? Não tem condição de sairmos agora, não tem pra onde ir, não tem como perguntar à ninguém.

Veigas ficou sem resposta, porque além de ir à Calnat ou procurar o Tesserato, um dos objetivos dele ao sair realmente era arranjar algo que lhe entretece, ou seja, causar confusão e desordem. Entretanto, mesmo com esse pensamento, não rebateu, não arranjou alguma desculpa e nem quis mais brigar.

E Dio estava desacreditado de que tivera feito Veigas quieto tão rápido. Não era do perfil dele desistir tão fácil assim de qualquer discussão, e isso dava para qualquer um perceber, mesmo com a pouquíssima convivência. Um teimoso que não quer teimar?

Algo estava errado ali.

E não só com Veigas, mas com Dio também.

Uma pontada de dor percorria o interior da sua cabeça, vinda sem aviso prévio e o fazendo quase ver o sistema nervoso que cruzava seus olhos. A dor não era nada se comparada com as dores de outras lesões que tivera no passado, então conseguiu disfarçar com êxito, sem nem precisar piscar.

Antes que percebesse, já estava sendo arrastado por Veigas pelos quartos da casa, mais especificamente no que parecia ser o de Serre, que ostentava a porta de madeira mais clara entre todas as outras. Na verdade, ao abrir, assemelhava-se mais a uma biblioteca que a um quarto, dada a quantidade de livros e estantes repletas de pergaminhos e papéis que dominavam não só as paredes, mas também o chão. E não era nada bagunçado: tudo estava organizado e colocado perfeitamente em seu devido lugar por ordens alfabética, de tamanho, de assunto e até mesmo de cor. A cama, que ficava ao fundo do quarto, se acompanhava de três poltronas ao lado e uma janela atrás.

    — Nada mal. — entrando e pegando mais um livro, Veigas passou o dedo indicador nos que restaram na estante e comprovou que ali não era lar de sequer um grão de pó. — Não pensei que humanos fossem organizados assim.

Entrando cinco minutos depois por ter ficado mais concentrado em parar sua dor de cabeça, Dio observou ao seu redor aquele monte de papel por todos os lados, e pensou que ao menos algum deles tinha de ser um mapa. Remexendo em alguns pergaminhos amarelados e até marrons de tão velhos, ficou procurando por um tempo, de prateleira em prateleira, mas não achou nada parecido com o que buscava.

    — Eu já procurei aí. Não tem nada. — Sentado na poltrona do meio, Veigas sustentava um livro aberto na mão esquerda, no qual passava rapidamente as páginas, não demorando muito para fechar. — Igual todos livros que eu vi até agora. Não tem nada. É tudo de magia ordinária humana e outras coisas inúteis.

    — Deve ter pelo menos alguma coisa. — Dio dava uma olhada pelas prateleiras.

    — Então para de ficar aí só olhando, e ajuda a procurar “alguma coisa” nesse monte de lixo. Eu não vou ler toda essa porcaria sozinho.

Pouco depois disso lhe ser dito, Dio o ignorou e saiu daquele quarto para entrar no outro que estava na esquerda, o de Arani e Nahu. Dentro deste, não conseguiu ouvir tão bem os gritos de raiva que Veigas dava no cômodo ao lado, mesmo que suas orelhas fossem longas o suficiente para captar até a respiração de um rato. Todos os móveis eram feitos de madeira de pinho: as duas camas, o armário, a escrivaninha, a cadeira, o abajur, um grande espelho e uma porta que provavelmente dava para o banheiro delas. Decorações feitas de vidro enfeitavam o quarto e um baú revestido em veludo azul-escuro ficava ao pé de cada cama. Uma grande janela com a cortina da mesma cor dos baús se encontrava na parede de trás.

Começando a vasculhar o ambiente, abriu o armário e as gavetas da escrivaninha, respectivamente encontrando só roupas e tralhas que considerou inútil para si; nada que ajudasse. Abrindo o baú da cama à esquerda, achou um grande cetro escuro com uma esfera azul de cristal em uma ponta, e na outra ponta, um machado afiado com o corte comprovado estar ótimo pelo dedo de Dio, já expondo uma gota bem gorda de sangue. Além do cetro, muitos livros, tecidos e mais tralhas tomavam o espaço de todo o resto do baú, que ele fechou alguns segundos depois, indo abrir o outro.

A única semelhança do conteúdo desde baú para o outro a era o cetro, porque este era tomado por trajes de batalha em couro e metal, uma sela de cavalo, capacetes, duas espadas de treino e uma ínfima caixinha vermelha de fecho dourado, com um buraco para uma chave. Dio, colocando esta caixinha em mãos após ter já visto todo o resto do baú, tentou abrir, mas não conseguiu. Procurou a chave da caixa pelo quarto, indo até o fundo do mesmo na busca até sentir seu braço esquerdo ser repuxado pela corrente. Ouviu um leve baque, mas continuou o que fazia; entretanto, não achou nenhuma chave. Mas achou, prostrado em frente à entrada, uma criatura irritada que bufava ao encarar sua imagem, e que logo se aproximou para lhe dar um golpe atrás da cabeça com o livro que estava ainda segurando na mão, com toda a força que tinha.

    — Vê se você se enxerga, idiota! Antes de sair por aí andando, vê se enfia na cabeça que tá me arrastando junto! — Veigas gritava ao ouvido de Dio, este que massageava o local infligido enquanto disfarçava a pequena vontade de rir ao ver que um dos lados do rosto do outro estava vermelho, por conta da provável queda que tinha levado da poltrona.

Notando que foi tudo proposital — ao menos na cabeça dele, foi tudo proposital —, Veigas bateu mais uma vez na cabeça de Dio, dessa vez deformando a capa do livro por causa do chifre. Dio não quis nem revidar, porque a queda tinha sido o suficiente para ele, mesmo que os golpes doessem mais que qualquer ataque de mentira que tinha levado na noite anterior, e era quase certo que deixaria algum roxo. Antes que Veigas se preparasse para dar mais uma, Dio jogou a caixinha vermelha calmamente para ele, que pousou exatamente na mão que seria usada para o terceiro golpe

    — O que é isso? O que tem dentro? Cadê a chave? — Veigas revirava a caixa de ponta-cabeça para ver melhor, observando também o fecho dourado que chamava a sua atenção.

    — Não achei a chave em lugar algum. Deve estar com alguma das duas mulheres.

    — Tem algo nesse quarto, então? Algo que seja útil?

    — Aparentemente, não.

    — Então, o que você tá fazendo aqui ao invés de ir lá ajudar em alguma coisa?

Jogou a caixa com tudo em Dio, que pegou com facilidade e colocou de volta onde estava inicialmente, fechando o baú e indo em direção à porta, sendo observado por Veigas que mantia os braços cruzados de impaciência. Antes de sair, Dio em menos de um segundo, furtou o livro na mão de Veigas, e com ele se vingou, dando uma batida na parte superior de sua cabeça, para logo começar a andar de novo sem dizer uma palavra. O que antes estava de braços cruzados, agora não tão irritado, começou a seguir o outro até o quarto-biblioteca, saindo do de Arani e Nahu.

Mais uma vez o cheiro de papel e de madeira velha encheu seus pulmões. Ambos selecionaram, pegaram uma pilha de livros e se direcionaram para as poltronas, sendo que Veigas estava com uma pilha consideravelmente maior, quase superando sua própria altura. Ele sentou-se na poltrona que estava antes, a do meio, e Dio sentou-se no chão, ao lado da poltrona direita, recostado em seu braço. Começaram a ler.

Realmente, a maioria dos tópicos de todos os livros eram sobre magia humana, feitiços diversos e coisas do gênero, ao menos para Dio, que somente folheava os livros, e se fosse possível, ia direto ao sumário para ver o conteúdo todo sem precisar passar tempo lendo. Veigas, ao contrário, lia com atenção quando encontrava algo que lhe interessava, que era o caso de um dos livros que tinha pegado.

    —  Achei. — A voz de Dio o distraiu completamente da leitura.

    — Quê? Achou o quê?

    — História. Não é um mapa, mas ao menos não é outro livro de magia.

Veigas, marcando a página que lia com o dedo, ficou de pé em cima da poltrona e andou por cima delas até chegar na que Dio estava perto para se sentar. Dio estendeu o livro aberto e apontou o parágrafo que tinha citado, para que o ao lado pudesse dar uma olhada. Era escrito em uma letra de mão terrível, porém legível.

“Há muito tempo atrás, houve a chamada “Guerra Divina”, conflito causado por um desentendimento entre os seres de nossas terras e os demônios de outro mundo, chamados de asmodianos, que espalharam destruição por tudo onde colocaram os pés, arruinando até mesmo o reino de Canaban e Calnat. O reino de Calnat ainda tem a cicatriz desta guerra: uma enorme cratera, criada pela colisão de poder dos asmodianos. Todavia, humanos e elfos de todos os continentes se juntaram para combater estes demônios, saindo vitoriosos [...]”

   

    — Parece com a Primeira Guerra Mágica, mas bagunçada. — Assim que essas palavras saíram da sua boca, Dio se arrependeu no mesmo instante, já vendo a sobrancelha de Veigas arqueando. Mas uma hora ou outra, ele teria de saber sobre aquela guerra, e esconder agora seria infantilidade. — Na guerra em Ernas, seu clã só atacou a região de Arquimídia, nenhum “Canaban”, e a cratera em Calnat foi obra de uma arma das deusas de Ernas, chamado “Martelo de Ernas”, não foram os demônios que fizeram aquele estrago.

    — Então, está 100% confirmado que estamos em uma Ernas paralela, ou o autor desse livro é um merda. Eu já estive em uma Ernas paralela, quando estava passando por Trivia. — Veigas pegou o livro de Dio e colocou ao seu lado com o intuito de ler depois que terminasse o que estava lendo antes da conversa se iniciar.

Aliviado pela reação fraca, Dio foi até as estantes para tentar pegar outra pilha de livros, mas enquanto fazia isso, ouviu a voz de Arani.

    — Aqui estão vocês! Voltamos. — Ela veio um pouco mais perto. — Eu trouxe as roupas que eu disse ontem que ia comprar. Deixei em cima das camas de vocês, espero que sirva direito dessa vez. — Piscando brincalhona para Veigas, este que não notou por estar absorto na leitura, Arani saiu do quarto anunciando que dali a pouco queria ter mais uma conversa com eles.

Já se perguntando quantas “conversas” eles teriam de ter, ambos se retiraram também, Veigas levando os dois livros que lia e Dio vindo na frente, em direção aos seus quartos. A roupa realmente estava lá, e eles se trocaram o mais rápido possível. Assim que acabaram, Nahu veio quieta recolher os uniformes, sem olhar para nada a não ser o que veio pegar e a porta na qual sairia.

E eles, já vestidos com algo mais casual — só uma camiseta e uma calça em Veigas, e uma camiseta e uma bermuda em Dio — saíram do quarto novamente, libertos do grosso uniforme. Da “biblioteca”, que ainda estava com a porta aberta, entrava uma luz alaranjada suave da janela; estava de tarde. E foi só aí que perceberam que passaram o dia inteiro lendo, e o tempo voou como se tivesse sido só trinta minutos.

    — Vocês ficaram lindos assim! — Arani observava-os, com orgulho das roupas que tinha comprado. — Dessa vez está no tamanho ideal, Veigas. Bem melhor que o uniforme gigante, não acha?

Nahu, que estava perdida em pensamentos enquanto olhava para o nada, pareceu ter despertado e veio se juntar àquela conversa que não era exatamente uma conversa, porque a outra parte ainda não tinha falado nada. A ruiva, que não tinha visto antes, olhou por um momento para os dois e fez um sinal positivo com a cabeça, como se tivesse tido sucesso em algo.

    — Já já Serre vai chegar, mas eu vou avisar antes. Ele quer que vocês participem da seleção de elite se quiserem sair daqui e ir à Calnat, e eu não achei má ideia. É o mínimo que vocês podem fazer para se provarem fortes o suficiente para sobreviver fora. É até melhor que só treinarem dentro de uma casa pequena como esta! — Arani explicava, com entusiasmo.

    — Seleção de Elite? — Veigas perguntou.

    — É como se fosse uma seleção aqui em Serdin para denominar os usuários de magia mais fortes do reino, parecido com uma competição. É feita no coliseu de cristal, no Oeste mais afastado do centro da cidade. Daqui a alguns dias, nós os levamos para lá para terem seu primeiro teste, que é o de admissão na seleção. Só que Serre me disse que vocês têm de fazer todas as etapas da seleção juntos, e eu já dei um jeito. Mas não sei por que ele quer isso, porque é muito mais difícil em dupla do que individualmente.

“Talvez se você enxergasse a desgraça da corrente, você saberia? ” ambos pensaram. Mas não demorou muito para vir a outra pergunta: “por que diabos Serre não explicou nada para elas?”

    — Enfim, eu dou mais detalhes quando forem fazer o teste de admissão. Esse teste inicial é praticamente só medindo o poder de vocês para ver se são bons o suficiente para entrar. — A morena continuou. — Acho que era só isso. Nahu, vamos começar a fazer o jantar, senão, não vai dar tempo. Até daqui a pouco, meninos!

Eles voltaram para o quarto. Veigas tinha deixado os dois livros em cima do criado-mudo, e pegou assim que colocou os pés no cômodo, para então se jogar na cama e começar a ler de novo, pois não tinha nada melhor para fazer. Já Dio, que não gostava tanto de ler, só deitou na cama esperando o tempo passar, invocando suas asas e mordiscando-as enquanto pensava. Aquelas asas enormes pareciam fazer o ambiente ser pequeno demais para ele.

    — Esconde isso. Se aquelas mulheres entrarem aqui de repente, vai ser impossível de explicar. — Veigas pedia, ainda focado no livro.

Recostando a cabeça sobre travesseiro, Dio fez o que o outro pediu, e mais uma vez a monotonia se preenchia, um silêncio só quebrado pelo som do papel sendo virado. Mas isso também parou, quando Veigas fechou o livro e tomou ar para falar.

    — Você... — Mas se interrompeu para repensar em como dizer o que queria, entretanto, não encontrou as palavras ou a brecha que precisava, por fim desistindo e pensando qualquer outra coisa. — O Tesserato sumiu.

    — Ah — Dio virou-se de lado — anteontem, de noite, ele também não estava na floresta te seguindo. Só vi aquele cubo de novo quando você já tinha acordado.

Veigas ponderou. “Talvez os dados dimensionais daqui estejam tão irregulares que ele não consegue detectar a minha localização? Mas se o que esse aqui disse for verdade, por que na floresta conseguiu? Quando foi que parou de me seguir? Foi quando saímos da floresta? Ela tem algo de diferente? A floresta...”

A floresta. Curativos. O Fogo. Dio.

A brecha perfeita.

    — Tem certeza que é asmodiano? — falou, colocando o livro sob o criado-mudo.

    — Quê?

    — Você está manso demais.

    — Hã?

    — Por quê?

Dio franzia a testa em uma expressão de pura e genuína confusão a cada frase que ouvia, e um suspiro frustrado de Veigas denunciou sua insatisfação ao perceber que teria de explicar tudo o que não queria.

    — Você não parece o asmodiano que eu já lutei com, e não parece o Dio que conheci em Elyos. Você estancou meu sangue e me fez curativos, você acendeu fogo quando fiquei com frio, e como eu cheguei naquela floresta eu não sei, mas foi obra sua e tenho certeza que eu não fui arrastado pelo chão, porque em mim não tinha nenhum arranhão a mais.

    — Deve ser porque estamos presos por uma corrente, e se você morrer, eu morro também?

    — Um asmodiano preferiria morrer a fazer alguma coisa daquelas para outro de família inimiga. Aliás, para qualquer um.

Dio tinha travado, sem saber o que dizer, e mesmo assim, Veigas continuou a falar.

    — É mentira, não é? Você está usando as correntes como só como desculpa. Não tente negar, eu vi que você desviou os olhos quando falou.

    — Desculpa? Desculpa de quê? Você está ficando louco?

    — Então, me diz: por que você fica olhando pra mim toda hora? Eu mal posso virar as costas e você já está querendo me encarar. Não tente mentir dessa vez; você mente mal.

A resposta podia não ter sido imediata, mas a reação foi. Dio cobriu o rosto com as costas da mão esquerda, e começou a pensar em como poderia responder aquilo. Falaria a verdade, ou tentaria esconder de novo...? Ah.

Mas se fosse para acabar logo com esse assunto desconfortável, mentir só pioraria ainda mais. Que seja a verdade, de uma vez. Foram só três dias, afinal.

Erguendo as costas e retirando-as do contato do lençol macio da cama, se pôs sentado na mesma, em direção ao seu “interrogador”. Distanciando a mão da própria face, respirou mais uma vez para falar.

    — Eu estou interessado em você. — Disse, em alto em bom tom, sem tremulações, que não deixava sequer um resquício de dúvida de que era a verdade. — Absurdamente, e não sei o motivo.

Veigas levantou o torso um pouco em choque, porque a resposta que ele esperava não era exatamente essa, mas sim alguma outra desculpa ou evasiva, que ele já tinha planejado fingir acreditar. Agora, também sentado, notou que, como de costume, o indivíduo que acabara de falar já estava o encarando.

De novo.

Pela milésima vez.

“Mas... eu não acabei de falar sobre isso, e ele já...? ”, pensava, segurando o sorriso que quase se esvaiu de seus lábios se ele não se apressasse em mordê-los para impedir, cobrindo o rosto para que sua expressão não fosse vista.

Seu peito foi tomado por uma sensação horrível, detestável, hostil e sufocante, que o fazia querer arrancar todos os seus órgãos dali para fazer parar. Suas bochechas começaram a latejar levemente, e um aumento de temperatura o fez se perguntar da probabilidade do outro ter conjurado fogo no quarto mais uma vez. Além das bochechas, suas orelhas também queimavam, e qualquer ruído era motivo para sua respiração falhar.

Mordeu o lábio ainda mais forte, até um fio de sangue se fazer visível e escorrer queixo abaixo. Aquela dor constante tinha o ajudado a, ao menos, colocar suas ideias no lugar.

Ou não.

Lambendo o sangue de sua boca, levantou-se totalmente da cama, e de passo em passo, caminhou até ficar próximo “o suficiente” de Dio. Dio recuou um pouco, mas continuou a encarar o outro avidamente, prestando atenção em qualquer movimento.

Veigas permanecia com aquele sentimento sufocante preso dentro de si, que veio acompanhado de um pensamento que nunca teve antes. Uma vontade insana, imensa e grotesca de simplesmente... agradecer. “Agradecer pelo quê? Por ter me ajudado? Por ter feito alguns curativos meia-boca? ”

Mas não era por nada disso, era só por agradecer, sem precisar de motivo. Um ato genuíno que nunca tivera feito antes, e que agora queria fazer. Mas isso era demais. Um asmodiano não agradece. Muito menos ele, ele não agradece. Ele nunca falaria algo assim.

A não ser que não precisasse falar nada.

Não, não precisava. Bastava só que fizesse alguma outra coisa. Algo que saciasse essa vontade.

E olhando para cima, Dio ainda observava o que se mantinha de pé em sua frente, este que estava sem ação alguma além de corresponder o seu olhar com outro, que aparentava distante, e ao mesmo tempo, próximo demais.

Veigas agora tinha se deixado tomar por aquele sentimento ruim, porque era mais fácil assim. Deu mais um passo à frente, certo do que ia fazer, mesmo que fosse contra sua vontade mental. Mas a mente dele não o controlava agora, pois estava sendo consumida e dominada rapidamente.

Ele se aproximou um pouco mais.

Uma gota de suor percorreu a têmpora de Dio.

E Veigas, já pronto para ficar mais perto ainda, já ia erguendo uma de suas mãos trêmulas.

“Clic”.

A porta, antes fechada, se abriu, o som da maçaneta pareceu extremamente alto. Veigas demorou um segundo inteiro para processar o barulho, tão tomado e tenso que estava. Dio deu uma inspirada forte como se tivesse perdido o ar, e em espanto, se virou para o outro lado. Veigas, que parecia ter acabado de acordar de um pesadelo, quase caiu para trás, se afastando o mais rápido possível.

    — O jantar está pronto, e Serre já chegou, depois de comerem, falem com ele. — Sempre sem bater, Nahu tinha aberto a porta, falado como se fosse uma mensagem decorada e gravada, e saído de lá rapidamente, com um olhar de peixe-morto indiscutível direcionado ao chão, como se não tivesse visto os dois naquela situação.

Veigas deu graças que ela tinha chegado para interromper antes que ele fizesse alguma besteira de que se arrependesse depois.

Dio já ia em direção à porta, ainda suando e um pouco em choque. Veigas, que ficaria ali mesmo, pensando em alguma explicação para suas ações, só seguiu porque as correntes não eram tão compridas quanto desejava.

    — “Interesse”, hum. — murmurou baixinho, passando a língua na ferida em sua boca, fazendo-a doer o quanto mais pudesse, para que conseguisse manter-se na realidade.

“Talvez o meu tipo de interesse e o seu sejam diferentes. ”

A imagem dos olhos que estavam a pouco o encarando não se esvaíram mais da mente dele desde ontem. Seu peito doía.

“Cor de vinho...”

 


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Notas finais do capítulo

Ai meu deus, olha meu bebê deixando de ser trouxa pra ser mais trouxa ainda! *^*
Narrando o capítulo: "E FOI, TA INDO, BATEU, CHUTOU E ÉÉÉÉÉ... na trave..."

“Nahu abriu a porta”
Dio.exe parou de funcionar.
Veigas.exe parou de funcionar.
Leitor.exe parou de funcionar.

—---
Okay, agora deu pra notar um pouco mais a mudança de estilo de pintura (se não conseguiu notar nada, compare a imagem desse capítulo com a do capítulo 2)
Por mais incompreensível que pareça, demora menos pra fazer (na verdade, não sei se demora menos, mas deve ser porque é mais divertido de fazer e o tempo passa mais rápido) do que o outro estilo.

Link para a imagem sem edição e sem corte: http://blackfoxu.deviantart.com/art/fanfic-cover-Interest-663789212



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