Chains escrita por Passarinho


Capítulo 5
Tédio


Notas iniciais do capítulo

Awe, bolinhos.
Notei que isso tá ficando maior a cada capítulo (não me diga?) em questão de número de palavras. E eu sei que é meio maçante, então eu vou tentar diminuir da próxima vez.
E sejam muito bem-vindos à um texto formado 50% de slice-of-life, 49% de clichê e 1% de história! (Sim, o título do capítulo descreve ele muito bem)
Atrasei ele de novo, porque eu odeio a minha provedora.
Aliás, além da provedora, também odeio o quanto o nyah acaba com a formatação do meu texto.



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Aquela última frase me intrigou. Se eu souber como tirar as correntes, ou como matar Dio, posso entrar em algum portal dimensional perdido para sair daqui.

    — Diga como. — Falei, inquieto.

    — Hmm... Para isso, tenho que contar desde o início, então se acalme, jovem Veigas. —  O velhote respondeu, já mexendo naquela maldita barba de novo. — Bem, há muito tempo, um mago batalhou contra um... monstro, muito poderoso e sanguinolento, e não conseguindo derrotá-lo completamente, tentou o aprisionar, atraindo-o para uma caverna envolta em selos de restrição e prendendo-o ali com simples correntes mágicas. Um tempo depois, ele se libertou, e o mago, vendo que não tinha feito o suficiente, conseguiu atrair mais uma vez o monstro para outra caverna, também envolta em selos, mas desta vez, ao invés de prendê-lo com correntes mágicas normais, extraiu e usou a própria alma do monstro como algema. Esse é o resumo mais breve que posso dar.

Eu quase ameacei dormir, mas continuei prestando o mínimo do mínimo de atenção. Onde que a parte “tirar a corrente” se encaixava ali naquela historinha, eu ainda não tinha achado. Sentei no chão, que era o lugar mais acessível para eu não cair no sono, e logo, o velhote voltou a falar.

    — Então, creio que tanto a algema do monstro, quanto a que vocês têm, sejam o mesmo feitiço.

Eu não tinha certeza de que tudo o que ele tinha falado antes era verdade, mas isso era quase óbvio que se tratava de uma mentira. O Tesserato tinha dito que foi o Criador que colocou a maldição através de uma divindade inferior, e o Criador nunca faria uso de uma maldição criada por meros humanos. Ou usaria...? Não, não usaria. É impossível.

Mas ainda sim, eu queria saber mais. Mesmo se fosse mentira, ainda é informação.

   — Como você sabe disso? — Perguntei, mais desconfiado do que estava antes.

   — Eu sou o diretor da principal academia de magia do reino, por isso, preciso saber das coisas. Senão, que tipo de mestre eu seria? — Ele riu, mas logo ficou sério de novo. — E por tudo que já vivi, não tem como não saber...

    — “Tudo que já viveu”? — Talvez eu descobrisse algo, mas a maior das minhas apostas era a que ele só disse aquilo por ser um velhote.

    — Oh, não, não é nada importante. Eu li em alguns livros sobre essas algemas, mas eles devem ter se extinguido há décadas. — Serre abaixou-se com dificuldade e pegou as correntes que estavam no chão, colocando-as na frente dos olhos. — Só que está um pouco diferente do que li...

   — Diferente? — Dio indagou.

   — As algemas não estão em um só indivíduo, mas dois, ao mesmo tempo. Nos livros, citavam que era usado para prender alguém a algum local com a própria alma, não prender uma pessoa à outra. Que curioso... Da alma de qual de vocês dois a corrente deve ser feita? — perguntou a si mesmo. — Ou será que é feita da dos dois? Se for assim, eu acho que não sei realmente se o método que li para retirar esse feitiço vai funcionar... Hum... Mas e se...

    — Eu ouvi dizer que pra tirar, um de nós tem de morrer sem ter a alma destruída. — Dio interrompeu os pensamentos altos do velho, agilizando a conversa, e graças a deus, eu não aguentava mais ouvir aquele falatório. — Você sabe como?

    — Oh, não! Morrer? De quem você ouviu isso, jovem? Com certeza deve existir alguma outra alternativa, se procurarmos...

    — Só diga logo, como se faz isso? — Eu estava já sem energia para aturar qualquer coisa.  

    — Mas vocês vão atrás disso sabendo que um de vocês vai morrer? Uma corrente não vale uma vida...

    — Claro ora, eu vou matar ele. — Vi Dio gesticulando com a boca um “eu que vou matar você”. A ingenuidade dele quase me fazia rir, coitado.

    — Mas...! Por quê? Não jovens, matar é horrível, não! Esqueçam!

    — Que seja, então ninguém vai matar ninguém, só conte como se faz de uma vez!

    — Oh, ufa, então tudo bem. Eu conto o que eu sei.

Pera, o quê? Fácil assim? Com uma mentira esfarrapada dessas? O velho está caduco, só pode. Fiquei sem reação, olhando para a cara dele, até virar meus olhos de relance para Dio. Devo ter feito a pior cara de desconcerto do mundo naquela hora, mas a dele estava com certeza pior que a minha. Eu só voltei a pensar novamente quando ouvi a voz rouca de velhice de Serre recomeçar a perturbar meus ouvidos de novo.

    — Existe um templo em Calnat que abriga essências de almas perdidas, quando alguém morre lá, é impossível que a alma se destrua.

 “Calnat? Mas Calnat não tinha sido dizimada? ” pensei, mas logo me lembrei de que não estava em Ernas. Talvez, nesta dimensão, ela não tenha sido aniquilada ainda. Então... quer dizer que eu ainda tenho a chance de destruir aquele reino? Não seria a mesma coisa que destruir a Calnat de verdade, mas... parece que encontrei algo para fazer depois de matar Dio.

   — Mas, de qualquer modo! Eu vou tentar achar uma solução para vocês a todo custo. Hoje mesmo vou pesquisar em todos os livros da casa sobre alguma coisa que os ajude. E mais uma coisa... — Justo quando eu pensei que ele ia se virar para ir embora, prosseguiu. — Obrigado por aceitarem ficar aqui, me deixa muito feliz ter mais gente aqui em casa. — Dessa vez ele realmente abriu a porta e saiu. — Agora, preciso falar sobre aquele teste com as meninas. Depois eu chamo elas para cá, para vocês conversarem um pouco. Até mais!

Ele encostou a porta. O silêncio apossou-se do quarto, porém durou só alguns segundos.

    — Calnat... — Dio murmurou, se sentando na cama que estava próxima a ele, pensativo.

Aproveitei a situação.

    — O que aconteceu em Calnat, quando você estava em Ernas?         

Ele pareceu surpreso, mas depois fechou a cara de novo.

    — Por qual motivo eu te contaria?

    — Eu quero saber o que aconteceu com o exército que eu enviei, porque eu perdi toda a diversão, ninguém em Elyos me contou nada, e eu sei que você tem algo a ver com aquilo.

    — Esquece essa maldita guerra. Eu não vou falar nada pra você.

    — Anda, desembucha. Porque você ficou ao lado daqueles humanos na guerra? Porque Heitaros voltou pra Elyos com o rabo entre as pernas, repetindo toda hora sobre um tal “Martelo de Ernas”? E...

    — Garotos? Podemos entrar? — Fui interrompido. Era a voz de uma daquelas mulheres irritantes.

Sem nenhuma permissão concedida, entraram mesmo assim. A primeira foi Arani, a segunda Nahu. Felizmente, nenhuma delas parecia ter ouvido nada do que eu disse.

    — O que vocês querem? — Eu torci para que não fosse mais monólogos como o velho tinha feito.

    — É que Serre nos pediu para vir conversar, e depois que eu fui jogar fora aqueles esparadrapos cheios de sangue que você deixou lá na sala, lembrei que roupa de vocês estão todas sujas e rasgadas, então Nahu trouxe essas aqui. — Arani deu espaço para a ruiva que tinha nas mãos duas pilhas de roupa branca e azul. — É um uniforme, mas amanhã nós duas saímos pra comprar outra coisa que seja mais confortável. É que não temos muitas roupas masculinas aqui em casa, mas vai ser só por hoje.

    — Minhas roupas servem nele. — Nahu olhou para mim. Mal ela terminou a sentença, e eu já estava tomado de vontade de esfregar a cara dela no chão.

    — Ahn... É... Não, Nahu, eu acho que é melhor não... — A outra pareceu ter notado minha reação. — Enfim, melhor vocês tomarem um banho e darem uma... — ela olhou rapidamente para mim, que estava ainda irritado —  relaxada antes da gente começar a conversa sobre as regras da casa, não?

    — Regras da casa? — perguntei.

    — Sim, regras da casa, como por exemplo... não ficar em cima da cama quando estiver todo sujo. — A ruiva olhou para Dio.

Ele se levantou, e mal teve de virar-se para notar que o lençol branco estava agora marrom de terra. Eu, que ainda estava sentado no chão, riria da situação se eu não olhasse para baixo e visse que a minha situação estava praticamente a mesma.

    — Dessa vez, passa. — Arani abanava a mão e sorria, enquanto ia se virando para o corredor. — Venham aqui, eu vou mostrar o banheiro.

Dio foi primeiro. Eu me levantei e fiz o mesmo, sendo seguido por Nahu ao sair do quarto. Depois de passar reto por uma porta de madeira mais clara que as outras, o corredor dobrava-se para a esquerda, onde ficava localizada mais duas entradas.

    — Nahu! Você está com as chaves? Me empreste! — A morena gritou lá da frente para Nahu que estava atrás de mim.

    — Ah, tô sim. Já estou ind... — E com uma proeza quase impensável, Nahu obteve sucesso em enrolar o pé nas correntes e cair de cara no chão, espalhando as roupas que ela carregava consigo. Colei minhas costas na parede, me afastando do local da queda.

    — Você está bem!? — Arani arregalou os olhos.

    — Sim, estou...

    — Como você caiu? Escorregou?

    — Não, eu só... Só caí, do nada... Senti algo travar meu pé e eu caí.

    — “Caiu do nada”? Você é cega? — Me desencostei da parede.

    — Como assim? — A ruiva, já se colocando de pé novamente e recolhendo as roupas do chão, me olhou com uma cara de desentendimento detestável.

    — Você tropeçou nas correntes, preciso desenhar?

    — Correntes? Que correntes? — A morena também começou a fazer a mesma cara. Pelo jeito que elas reagiram, será possível que... — O-o que está fazendo, Dio?

Ele se colocou a testar minha teoria, balançando sua algema com o pulso bem próximo ao rosto de Arani, esta que nem ao menos piscava, e sua única reação parecia ser temer que alguma das garras dele a arranhasse sem querer. Estava comprovado, elas não conseguiam ver as correntes. Ele afastou-se de perto dela, que na mesma hora começou a falar.

    — Bem, é... Se “correntes” é algum codinome entre vocês dois, eu realmente não entendi... Enfim... Nahu, pode vir aqui e destrancar a porta do banheiro de hóspedes? — Ao pedido de Arani, a ruiva foi até lá, desta vez sem tropeçar, retirando um molho de chaves do bolso lateral e abrindo a bendita porta. — Quem vai tomar banho primeiro?

Dio estava até agora quieto, e continuou assim. Eu até tive vontade de ir primeiro, mas depois de pensar em certas circunstâncias, fiquei quieto também.

    — Dio, vai primeiro. O Veigas está mais sujo de sangue que você, ele vai demorar mais, é melhor ele ficar por último. — Nahu apontou para dentro do banheiro.

    — Tem uma cesta lá dentro onde podem deixar suas roupas, que depois nós vamos lavar e tentar consertar onde estiver rasgado. Até depois, e bom banho pra vocês! — Arani se virou e foi saindo, acompanhada de Nahu.

Ele pousou a mão no rosto e seguiu porta adentro. Mas obviamente, quando foi tentar fechar, a porta emperrou por causa da corrente. E como ele é uma mula, começou a bater com mais força como se fosse adiantar de algo, até completar três tentativas falhas e concluir que teria de tomar banho de porta aberta mesmo. Encostando-a o máximo que podia, deixou só uma pequena brecha.

Por ela, eu percebi que ele acendeu a luz. Ouvi o barulho de cliques de metal, provavelmente dele tirando os cintos, e mais alguns sons que eu não consegui identificar porque o som da água do possível chuveiro começou a ressoar através da porta. Me sentei de novo no chão, e o som da água se alterou, provavelmente por ele ter entrado debaixo dela.

    — Desculpe, a Nahu esqueceu de... — A morena voltou, desta vez sozinha, com aquela pilha de roupas na mão. — Veigas? O que faz aqui? Pode ir pro quarto se quiser, não precisa ficar esperando do lado de fora.

E ela cruzou os olhos na fresta, por onde saia vapor de água quente.

   — Por que isso está aberto? Nahu não deu uma chave para vocês? — Ela tentou fechar a porta também. — Ih, será que emperrou? Desculpe por isso, depois nós tentamos consertar. De qualquer jeito... Dio, eu trouxe as roupas que Nahu esqueceu de entregar! Vou deixá-las aqui fora, do lado da porta! — Arani gritava para que ele ouvisse, colocando uma pilha de roupas no chão, depois virando-se a mim e entregando uma pilha também. — As suas estão aqui, tome.

Ela tentou fechar a porta mais uma vez, e dessa vez tanto fazendo um barulho mais alto quanto fazendo a porta abrir mais ainda com o impacto. Assim que o baque repercutiu, o barulho de água parou abruptamente. Antes mesmo que ela pudesse perguntar do porquê, deve ter se tocado da situação, então pediu licença e saiu correndo dali, falando algo entre “me desculpe” e “eu juro que não vi nada”. Quando dobrou o corredor e seus passos se tornaram inaudíveis, ouvi uma espécie de exale em alívio, e a água voltou a soar.

Ficou com medo de alguém entrar aí dentro, Dio?

 

Você era o “alguém”.

E quer fazer isso só para irritá-lo.

Afinal, você adora fazer isso.

 

Apoiado sobre o braço, me levantei. Mas quando eu ia empurrar a porta com tudo, já pensando na variedade de insultos que usaria para provocá-lo, o som da água parou de novo, só sobrando o pingar de algumas gotas. Alguns momentos depois, a linha de luz que a brecha formava no chão ficou maior. Ele abriu a porta levemente, somente para que seu braço esquerdo conseguisse passar, e tentou alcançar a pilha de roupas que descansava no chão.

Essa oportunidade eu não perderia. Peguei aquela pilha o mais rápido que pude, e joguei um pouco mais longe.

    — Para com essa palhaçada. — Ele colocou o braço um pouco mais para fora, e quando quase alcançou a pilha, eu a peguei mais uma vez, e me afastei da porta. — Me dá essa porcaria, desgraçado!

    — Vem pegar, então.

    — Me dê logo!

    — Já disse, vem pegar.

Eu continuei com isso até ele realmente parecer farto, e encostar a porta de novo, para alguns segundos depois escancará-la repentinamente. Ele, ainda inteiramente encharcado e só com uma toalha amarrada na cintura, avançou na minha direção tão rápido que chegou a me respingar água. Pegando as roupas da minha mão, voltou bufando para dentro do banheiro e bateu a porta.

Mesmo de fora, consegui ouvir um suspiro de frustração. Faça mais desses, Dio, eu adoro escutá-los.

Ele saiu mais uma vez do banheiro, descalço e vestido com as roupas que tinham lhe dado. Era exatamente igual aos uniformes que os humanos daqui usavam pela cidade, totalmente branco com detalhes em azul. Secando o cabelo com a toalha que antes estava amarrada em sua cintura, me fitou com o olhar de praxe de “quero te matar”.

    — Eu disse que teria volta. — Retruquei o olhar, pegando a minha pilha de roupa e levando para dentro do banheiro. Ele virou a cara, e eu entrei encostando a porta atrás de mim.

No interior, as paredes e o piso eram idênticos ao resto da casa, mas pareciam revestidas para não mofar. Se constituía de um chuveiro comum, uma banheira, um vaso sanitário e uma pia com um espelho em cima e um cesto embaixo. Nada de impressionante. O cômodo era pequeno, e nada parecido com o que eu estava acostumado em Elyos.

Deixei a roupa que tinham dado em cima da tampa do vaso, e me virei para o espelho.

Na frente dele, tirei os brincos argolados das orelhas e os deixei na superfície da pia, enquanto desfazia as tranças do cabelo. Tirei meus sapatos e os coloquei no chão. Me despi, dobrei minhas roupas e fui abrir o cesto para colocá-las ali, só que ao ver a situação, preferi deixá-las em cima da tampa.

Aquele chifrudo maldito tinha feito um bolo com as roupas sujas dele e jogado de qualquer jeito dentro do cesto; até mesmo seus sapatos estavam fazendo zona no chão. Eu que não seria o idiota a me atrever de colocar minhas roupas no mesmo lugar das dele.

Terminado isso, fui para baixo daquele chuveiro medíocre, e girei o registro que indicava água quente, junto do de água fria, até que ela ficasse morna. Quando o vapor se instaurou ao ponto de embaçar o espelho, eu comecei a me lavar; a algema me dificultava um pouco o processo. Meu cabelo se desfez da forma que eu o deixava arrumado, cobrindo as laterais do meu rosto assim que a água começou a escorrer por ele.

Não muito mais que cinco minutos depois, ouvi passos do lado de fora. Talvez fosse Dio andando em círculos como um cachorro perseguindo o rabo, mas os passos eram leves demais.

    — Eu não acredito, você também vai ficar esperando do lado de fora, Dio? — Era a voz de Arani. Ela estava começando a realmente me dar nos nervos. — O Veigas eu entendo, porque ele seria o próximo a tomar banho, mas você pode ir pro quarto se quiser...

Até mesmo eu poderia tentar explicar que não dava pra ele ir pro quarto por causa das correntes, mas eu não perderia saliva com isso. E parece que ele também não, já que não respondeu nada, ou ao menos eu não ouvi. Ela continuou a falar.

    — Aliás, uniforme caiu muito bem em você, ficou bonito. Eu dei para vocês dois do mesmo tamanho... e ficou perfeito em você, mas minha preocupação é com o dele, que talvez fique largo, já que ele é um pouco peque... — eu pensei em sair do banheiro para rebater, só que fui parado pelo fator de estar pelado — Enfim, vim falar que caso as roupas fiquem ruins, podem me chamar que eu dou um jeito. E que nós vamos ter de deixar a conversa que íamos ter para amanhã, já que está ficando tarde e Nahu e eu temos alguns trabalhos para fazer. Vai ser mais fácil assim, já que depois que estiverem descansados, será melhor de conversar.

Ouvi mais passos, mas dessa vez, eles se esvaíam. Ela tinha ido embora. Não dava pra ver muita coisa pela brecha, já que o ângulo em que ela ficava e onde o chuveiro estava eram muito desfavoráveis. Continuei o que estava fazendo como se nada tivesse acontecido do lado de fora.

Se eu tinha ficado com vergonha ou com medo de alguém tentar entrar aqui? Não, nem um pouco. Eu não sou aquele idiota e não preciso ficar com medo, porque tenho certeza que ninguém ousaria entrar. Mal prestei atenção mais naquela porta, já que fiquei distraído com meus pensamentos enquanto debaixo d’agua.

Alguns minutos depois e já estando limpo o suficiente, fechei os registros e saí do chuveiro, pegando uma toalha branca que estava perfeitamente dobrada e empilhada sobre outras três em cima da caixa do vaso sanitário. Me sequei e peguei o uniforme.

Com as duas mãos, estendi a camisa. Era de abotoar, tinha mangas longas e seria exatamente como Arani disse: ficaria largo. Mas eu não chamaria ela nem ferrando.

Coloquei aquilo sem pensar duas vezes, e para minha surpresa, a corrente não ficou presa dentro da manga. Aliás, não tinha ficado presa nem quando eu tirei minha roupa pra entrar no chuveiro. Eu retirei o braço da manga e coloquei de novo só para comprovar, e ela parecia atravessar o tecido como se ele não existisse.

Me impressionei pouco com aquilo, porque sinceramente, não existem tantas coisas que me impressionem de verdade no mundo. Abotoei a camisa e peguei a calça pra vestir. A estendi, e dela caiu alguma coisa branca, que ao pegar e olhar melhor, percebi que era uma cueca.

Nem precisei olhar no espelho pra dizer como que a minha cara estava. Isso aqui é sério? De onde aquelas mulheres arranjaram isso? Não parecia ser emprestada daquele velho e muito menos ter sido usada antes, estava nova. Elas deixaram de antemão para caso alguém ficasse na casa? Ou...? Não, nem quero mais pensar nas hipóteses.

Pus ela de uma vez — que por sinal ficou larga e incômoda — e comecei a colocar a calça. Porém, quando me abaixei para isso, senti que tinha algo de diferente na cena. Na cena em geral. Alguma coisa tinha mudado. Fiquei um tempo encucado, até descobrir o que é que estava diferente. Eram os sapatos do Dio, que tinham sumido. Terminei de me vestir e abri a porta.

E olhe só se eu não encontrei os tais sapatos ali, do lado dele, que estava encostado na parede e agora me olhando com a cara do idiota que ele é. O pior de tudo é que ele continuou assim, me encarando e me encarando sem motivo, até eu mesmo começar a me perguntar se tem algo de errado comigo.

Ah é, as roupas que estavam praticamente arrastando no chão. Era um motivo bem plausível. E que me fez ficar mais irritado ainda.

E quando eu ia começar a falar, mais uma vez o som de passos. As silhuetas daquelas duas mulheres estavam ali mais uma vez.

    — Oi, desculpa perturbar de novo. A Nahu só veio entregar a chave do quarto de vocês, e eu vim junto para checar como a roupa ficou... Veigas, você quer que eu pegue um uniforme menor? — Arani apontou para mim, mas já pela minha expressão, conseguiu identificar um “não”. — Ok, entendi, entendi. Bem, já está bem tarde, então boa noite pra vocês dois, nós duas vamos pro nosso quarto, mas qualquer coisa nos chame. E colocamos uma coisa dentro da gaveta do quarto de vocês, caso faça frio de noite.

A ruiva entregou uma chave para mim, e as duas se viraram e saíram.

    — Ah, e Veigas! Não se esqueça de secar direito o cabelo, senão vai pegar um resfriado! — A voz da morena gritando do outro lado do corredor se distanciava cada vez mais.

Quem ela acha que é pra me dizer o que fazer?

Voltei para dentro do banheiro, peguei meus brincos de cima da pia, meus sapatos e a toalha, e comecei a voltar em direção ao quarto. Dio pegou os sapatos dele e me seguiu.

Quando cheguei no quarto, botei os brincos sobre o criado-mudo, junto da chave, e os sapatos do lado da cama que denominei como minha. Sentei no meio dela, secando o cabelo com a toalha — mas porque eu quis, não porque me mandaram fazer isso.

Dio, que entrou no quarto depois, só colocou os sapatos perto da cama dele — agora com um lençol limpo — e se deitou. As suas costas, que estavam viradas para cima, se relaxaram. Até os ombros tinham se livrado da tensão que ele manteve durante o dia todo.

Isso até ele acabar por tensioná-los de novo ao tomar um susto. Susto que eu também levei, ao ouvir um barulho agudo e ensurdecedor de metais se chocando do lado de fora do quarto. Cada estrondo, ritmado, parecia ameaçar meus tímpanos de estourarem, e eu estava começando a ficar zonzo com aquilo. Tapei minhas orelhas o mais forte que pude, mas não adiantou de nada. Procurei por qualquer coisa que ajudasse, e por fim enterrei meu rosto por baixo do travesseiro, que pareceu ser a melhor opção. Abafou um pouco daquele barulho infernal, mas ainda me fazia agonizar, tanto que eu até pensei em breves momentos arrancar minha própria cabeça fora e pra ver se a dor acabava. O que era aquilo? Um novo método de tortura? Era isso que aqueles três humanos malditos planejaram?

Eu mal conseguia fazer outra coisa a não ser apertar aquele travesseiro contra minhas orelhas e gritar de dor, mas os gritos nem deviam ser audíveis já que se perdiam em meio àquela tempestade de metal, que era o que provavelmente estava acontecendo lá fora. Mas, mesmo assim, eu fiz algum esforço e levantei a cabeça para olhar ao redor. Tudo estava tremendo, e esse tremor era sincronizado com o barulho. Parecia um terremoto. Olhei para a porta. Por baixo dela, uma luz branca e fosca, também sincronizada ao ritmo do som, se infiltrava pela fissura que separava o batente do chão.

Eu não consegui me importar com aquilo por muito tempo, logo fechando meus olhos para tentar diminuir a tontura.

Depois de uma eternidade, aquele barulho ficou cada vez mais lento.

Mas mais agonizante, mais alto. Eu já não estava aguentando mais. E para piorar, começou a fazer frio, um frio que penetrava os ossos. Eu não conseguia mais me mexer, tanto por causa da friagem quanto do som. Contudo, este último finalmente pareceu ter um pouco de piedade e lentamente começou a abaixar. E foi abaixando, até não sobrar mais nada, e tudo voltar a ficar silencioso no quarto. Minha cabeça ficou zumbindo por mais alguns segundos.

Desapertei o travesseiro do rosto e deitei na cama, exausto. Em meio tempo, percebi que o frio também tinha ido embora. Entreabri os olhos, me deparando com uma chama arroxeada flutuando no espaço entre as duas camas. Ela era idêntica à que estava do meu lado quando eu acordei naquela floresta.

Eu não sabia como tinha ido parar lá e nem me interessava em saber, mas tinha certeza que era obra do idiota que estava me encarando nesse exato momento, com uma expressão que eu nunca vi antes. Uma que eu não sei explicar.

E que logo se esvaiu, virando a cara e tentando disfarçar assim que notou que eu o tinha visto. O que aquela expressão significava? Não era raiva, não era ódio, não era nada do que eu conhecia.

Minha cabeça parou de zumbir, então eu tentei dormir.

E não consegui.

Me revirei de um lado para o outro, tentei pensar em qualquer coisa que me deixasse com sono, mas ele simplesmente não vinha. Eu estava exausto, mas não estava com sono. Só incomodado pelo silêncio.

A calmaria que se apoderava do cômodo se contrastava tanto com a situação anterior e com todas até agora, que eu até duvidei que um inimigo meu estava logo do meu lado, a menos de dois metros de distância.

 

Você não sabe mais se pode chamá-lo de seu inimigo.

Um inimigo nunca se importaria. Com nada.

Mas ele se importa, só que você ainda não sabe.

E se fosse possível, gostaria futuramente de nunca saber.

 

Estava tudo silencioso demais. Agora, eu só conseguia ouvir ele respirando despreocupadamente.

Com auxílio dos braços, levantei da cama, e agora sentado, me coloquei a refazer as tranças que eu costumava a usar no cabelo. O quarto estava escuro, nenhuma luz estava ligada, mas a chama que estava acesa ali iluminou o bastante para que eu conseguisse.

 Elas eram o que mais me chamava a atenção no momento. As pequenas labaredas dançavam em torno do fogo, mas não pareciam ameaçadoras. Emitiam um calor agradável. Quando terminei de fazer as tranças, instintivamente estendi meu braço para alcançar aquele fogo. Contudo, ainda eram chamas demoníacas, e por isso, logo queimei um dedo. Retirei minha mão dali rapidamente.

As correntes, que estavam no chão, não fizeram sequer um ruído. Elas não faziam barulho. Não importava o quando eu me mexesse, elas não emitiam nada.

Como qualquer coisa ali. Nada fazia nada. Estava tudo tão... chato.

Que tédio.

Tédio.

A coisa que você mais odeia em sua vida.

 

Comecei a rolar na cama mais uma vez, tentando pensar em algo para fazer, ou simplesmente conseguir dormir logo. Talvez eu devesse sair daqui e explorar a casa? Ou o resto da cidade? Ou descobrir o que foi aquele barulho maldito?

Eu estava disposto a fazer qualquer coisa que me tirasse do tédio. Qualquer coisa.

Pensando melhor, eu tenho a solução logo ao meu alcance, presa no meu pulso direito.

Levantei e comecei a puxar as correntes. E como esperado, elas foram repuxadas de volta. Refiz o processo uma vez. Depois duas, depois três. E devo confessar que a paciência daquele maldito realmente era maior que a minha. Mas essa paciência não durou muito tempo, e na quarta tentativa, lá estava ele:

    — Qual é o seu problema, maldi... — ele ia virando-se para mim, mas eu arremessei o meu travesseiro no meio da cara dele, e foi certeiro.

Ele, tirando o que eu tinha jogado da frente do rosto, jogou o travesseiro de volta com mais força, e eu desviei, mas logo recebi outro na cabeça, que era o dele.   

  — Agora, me devolve o meu travesseiro e para de ser estúpido. — disse ele, irritado.

Você se lembra, não se lembra, Dio?

 — Vem pegar.

 

Eu o olhei da forma mais provocativa e irritante que eu conseguia fazer. E isso bastou para que ele viesse fulo da vida e pegasse o travesseiro. Mas eu ia deixar só por isso? Nah.

Puxei a corrente com tudo, esta que se entrelaçou na perna dele e o fez tropeçar e cair em cima da minha cama. Quando ele tentou erguer-se novamente, atirei um pouco de energia dimensional no seu rosto, que o fez cair de novo.

Ele me olhou com uma fúria inexplicável e eu, em troca, só consegui rir dele.

E ele ignorou e saiu.

Ao menos, aquela pequena briga tinha tirado um pouco da minha inquietude, mas não demorou muito para que eu ficasse entediado de novo. Não tinha mais muita coisa que eu pudesse fazer, e ainda não queria dormir.

Se ao menos o Tesserato estivesse aqui, eu poderia conver... sar?

E o Tesserato, onde diabos se meteu? Eu nem me lembro mais da última vez que o vi. Se ele se perdeu em algum lugar, por que foi que não se teleportou de volta para mim, até agora?

Senti uma pancada na testa, obstruindo minha linha de pensamento. Tinha algo em cima do meu rosto. Levei minhas mãos até esse “algo”. Era macio, era de pano e era um travesseiro. Tirei da frente dos olhos, e vi a figura daquele chifrudo maldito, em pé do meu lado.

    — Você que disse pra eu “vir pegar”.

 

Ele realmente não consegue te entediar.

Talvez ele realmente não fosse um inimigo.

Talvez só um adversário.

 

Revidei o ataque, ele fez o mesmo. Eu acabei caindo da cama, e ele continuou a me bater com o travesseiro ali mesmo. E subi de volta e peguei outro para enfiar a cara dele, e ele subiu na cama também. Começamos a trocar golpes, chutes e derivados que na verdade não doíam nem um pouco, eram só de mentira. “Brincar” de lutar era algo que eu nunca tinha feito, não ao menos sem o outro sair morto no final. Mas o importante é que é divertido. E é estranho pelo mesmo motivo.

Eu jamais tinha achado graça em uma luta que não matasse ou destruísse, que não houvesse explosões ou gente agonizando em dor. Mas aquela eu estava tendo agora, era diferente. Eu já tinha lutado com ele valendo vida e morte, e aquela luta “pra valer” não chegava a ser divertida como essa.

Passei umas duas horas brigando, até que eu não tivesse mais energia pra fazer qualquer outra coisa senão arfar de cansaço. A luta ficou cada vez mais lenta, até simplesmente parar comigo deitado e com ele sentado ao meu lado, após uma tentativa de chave de braço malsucedida.

Passei a mão no cabelo, tentando me acalmar, e estranhei um pouco já que ele não estava arrumado como o de costume por causa do banho. Coloquei a franja — que eu simplesmente odeio — para trás.

E adivinha quem estava me encarando de novo? Pois é, na mosca.

Mas dessa vez, o infeliz não desviou o olhar quando eu encarei de volta. Só se manteve ali.

Eu não sabia o que ele queria me dizer com aquilo, mas eu sabia o que o meu olhar significava. Com ele, eu atirava perguntas. “Por que você fez aquilo antes? ” “Por que agiu daquela forma, naquela hora? ” “Por que fica insistindo em me encarar? “

Nenhuma delas eram replicadas, e nada nele denunciava qualquer resposta. A sua expressão neutra, como se estivesse com a mente bem longe dali. Troquei olhares até a cor da íris dele ficar cravada na minha mente. Íris cor de vinho, combinadas com as pupilas estreitas dignas de um demônio, mas que estavam muito dilatadas por causa da luminosidade baixa. Vinho... Vinho estava entre as minhas cores favoritas.

 

Sempre esteve.

 

Como se ele acordasse de um transe, virou seu rosto, levantando-se da minha cama e voltando para a dele. Ele tinha mudado sua expressão para outra, mas eu não consegui ver qual era, já que deu as costas rapidamente.

    — Tch. — deitou-se virado para cima, com o braço direito cobrindo os olhos.

Ele esqueceu o travesseiro dele na minha cama, que é claro que eu fiz questão de tacar na cara dele de novo. Bufando, pegou e colocou sob a própria cabeça, agora de lado.

No fim, acabei com o meu tédio. Tinha sido divertido.

Eu sorri tenuemente.

Olhei de canto. Ele já tinha dormido. Com essa visão, meus olhos acabaram se fechando sozinhos.

Eu dormi também.

 

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    — Arani? O que faz aí?

    — Oh, eu? Nada, eu só vim dar uma olhada nos nossos hóspedes.

    — Eles dormindo nem parecem tão rudes.

    — Que isso, Nahu. Devem estar estressados, talvez tenham tido um caminho difícil. Olhe, são tão bonitos até enquanto dormem...

    — Você está parecendo uma mãe. Está até sorrindo.

    — Verdade...?


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Notas finais do capítulo

Pessoal, daqui pra frente, para entender melhor a fic, você tem de saber o mínimo da história de background do jogo, espero que não tenha apertado X em todos os diálogos enquanto upava ‘v’ Qualquer dúvida sobre a lore do jogo pra você que tem preguiça de ir na wikipedia ler, pode perguntar.

Então, simbora pra Calnat se matar?
sqn

Awe, eu mudei o estilo da pintura. Qual a diferença? Bem, nessa imagem em específico não deu pra notar muito, mas economizou BASTANTE do meu tempo. E de bônus (na verdade, não), eu fiz as referências de personagem da Arani e da Nahu:
http://blackfoxu.deviantart.com/art/Nahu-and-Arani-657171063

E link da imagem do cap sem nenhuma edição, com a cena inteira, para caso... sei lá:
http://blackfoxu.deviantart.com/art/fanfic-cover-Shh-They-are-dreaming-661621144



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