Contos Espontâneos escrita por Glenda Brum de Oliveira


Capítulo 2
Capítulo 2 - Consumido pela fome


Notas iniciais do capítulo

O que fazer quando o sucesso, mulheres e dinheiro não são o bastante para satisfazer um homem?



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"Já não me importa mais se vocês vão acreditar na minha história ou não. O sanatório, é óbvio, não acreditou. E deu no que deu. Sim, eu tinha ido até lá, espontaneamente, um dia antes do que acabou acontecendo. Eles disseram: “Você está bem, vem aqui só pela comida” e, de fato, eu precisava comer. Qualquer ser humano que não come enlouquece, louco ou não. E eu não sabia mais se minha loucura era genuína ou pura fome. O que dizer? Acho que enlouqueci de fato, ou de fome."

Nem todos me questionavam ou me escorraçavam como naquele dia. Durante os últimos dois anos, desde que o doutor me liberou do sanatório, havia uma calada indulgência comigo. Não sabia pra onde ir. Coloquei minha mochila nas costas e saí andando pelo portão. Andei o dia inteiro. Não sabia que endereço procurar. Quando cansei, sentei debaixo de uma árvore. Descansei. Acho que dormi. À noite voltei para a porta do sanatório. Onde mais poderia ir? Passara ali os últimos três anos. Sem visita. Sem parentes. Agradecido ao sono e aos remédios que tinha naquele lugar. Ali não precisava pensar.

Sentei do lado de fora do portão e esperei. Não sei o que esperava sentado ali. Um dos enfermeiros da noite me viu quando chegou para assumir seu turno. Desapareceu porta a dentro e logo depois voltou. Chamou para entrar e me conduziu para a parte detrás do prédio. Depois de entrarmos  me fez sentar na mesinha que havia na imensa cozinha. Serviram um prato de sopa com pão. Comi tudo. Repeti. Repeti de novo.

Ouvia os cochichos dos que me olhavam de longe colocando a cabeça pela porta pra me olhar de soslaio. Sacudiam a cabeça. Faziam expressão de pena. Eu comia. Olhava. Voltava a concentrar-me no meu prato. Depois que não entrou mais nada, ofereceram um canto onde guardavam as ferramentas do jardim para eu passar a noite. Colocaram papelão no chão, um colchonete rasgado e um cobertor velho com cheiro de mofo. Pareceu confortável. Não pensei. Dormi.

De manhã acordei junto com os passarinhos e a luz do sol que surgia. Eu sempre acordava com eles. Tinha uma caneca de café fumegando e três fatias de pão com margarina. Olhei ao redor, mas não vi ninguém. Comi. Lavei meu corpo como deu na mangueira que regavam o jardim e voltei pra rua. Isso virou rotina.

Passava os dias andando pelas ruas e bairros da cidade. Eram quilômetros e quilômetros percorridos sem destino. Sem chegar a lugar nenhum. A não ser no fim do dia, quando voltava para o sanatório pra comer e me esconder na casinha das ferramentas do jardim. Agora eram minhas companheiras silenciosas de quarto. Sim, esse era meu novo quarto.

Seja por pena ou outro motivo qualquer, nunca perguntei nem tive curiosidade de saber, porque me deixaram ficar. Acolhiam-me como um rato de estimação. Eles sempre me deixavam entrar, comer, dormir, comer de novo e partir. Em geral ninguém pedia nada. De vez em quando alguém me trazia roupas velhas, cortava meus cabelos e me deixava usar o banheiro do jardineiro pra tomar um banho.

Mas minha vida de uma certa forma nem sempre fora assim. E de outra era a mesma, a vida toda. Sempre fui um desajustado na escola. Um rebelde na faculdade. Mas apesar disso ou por isso mesmo, tornei-me um profissional respeitado por minha ousadia e capacidade de acerto. Um empresário de sucesso. Bajulado, odiado e invejado por aqueles que desejavam o que eu tinha e era. Não era uma vida ruim, mas quando as luzes se apagavam e fechava a porta do meu quarto, mesmo que uma mulher dividisse a minha cama, me sentia só.

A solidão sempre me acompanhou. Um sentimento tão visceral que parecia fome. Uma voracidade que não podia ser saciada. Olhando para trás creio que tentei preencher o vazio, saciar a minha fome trabalhando e perseguindo o sucesso. Eu era o melhor. Meus rivais nos negócios ou nas atenções de uma mulher, acabavam se tornando desafios fáceis e com o tempo, toda conquista se tornava enfadonha e eu precisava de um novo desafio. Assim cresceu minha fortuna. Assim cresceu o meu sucesso. Nunca era o bastante, porque também crescera a minha fome. Se tornara descomunal.

Virava noites trabalhando, traçando metas, estabelecendo estratégias. Ao comemorar uma vitória não me sentia realizado. O sentimento é de que não bastava. Estava faltando algo. Queria mais. Com o tempo, nem as mulheres me satisfaziam. É como se comesse isopor. Tudo estava sem graça. Comecei a buscar por esportes radicais, mas o excesso de adrenalina na me saciava. Recomendaram Yoga e meditação, que também não adiantaram e pareceram aumentar o meu vácuo interior. Remédios pra dormir, encher a cara com bebidas fortes, festas, esmagar a concorrência, não era suficiente. O buraco dentro de mim sempre estava um pouco maior. Tudo virou compulsão. Os que estavam ao meu redor começaram a se preocupar. Alguns tinham medo. Outros, pavor mesmo. Seja por medo ou por ganância, chegou um dia que me destituíram da minha vida. No dia em que surtei. Gritei. Quebrei. Bati. Corri para rua e quase morri.

Fui atropelado. Passei algumas semanas no hospital. Assinei sem ler papéis. Documentos. Depois descobri que eram procurações para que outros assumissem a minha vida. Depois me declararam incapaz. Não me importei. Só queria que a dor parasse. A dor na alma. A apatia tomou lugar da fúria. E por fim decidiram que o sanatório era o melhor lugar pra mim. No início até me visitavam. Meu irmão frustrado vinha de vez em quando. Depois desapareceu. Minha secretária bonita e eficiente, também veio durante um tempo. Não sei se sentia culpada, com pena ou porque gostava de mim, mas também se fez fumaça. Talvez tenha achado alguém mais interessante ou chegou a conclusão que eu não tinha jeito.

Depois de alguns meses tudo ficou em silêncio na minha vida. Os remédios me faziam dormir e a fome sumir.  O tempo passou e o médico considerou que não precisava continuar no sanatório. Podia seguir com o tratamento fora de lá. Mas para onde voltar? Para quem voltar? A fome vai me achar?

Achou! De uma forma diferente, mas achou. Passei a comer chão. Devorar estrada, assim como a comida que ganhava no sanatório. Cada vez parecia comer mais. Andar mais. Vendo a cozinheira cochichar com o enfermeiro, ouvi dizerem que até parecia um saco sem fundo. O outro disse que era porque não comia nada o dia inteiro.

E num dia qualquer, um língua de trapo falou de minha estadia no sanatório desde a alta. Isso acontecera no dia anterior. Vi a gritaria e o escândalo, mas achei que não dava em nada. O novo administrador pirou ao saber que havia um hóspede a mais. O cara, talvez pra mostrar serviço, resolveu implicar com o que eu comia e meu quarto com as ferramentas do jardim. Banho de mangueira, nem pensar. Creio que não me expulsou na hora, porque não achou onde eu estava.

Antes dos passarinhos cantarem e o sol surgir, meu cobertor mofado foi arrancado, e fui puxado sem cerimônia de minha cama sobre o colchonete rasgado, que repousava nos papelões. E como se meu estômago entendesse o que acontecia, passou a roncar com impiedade, lembrando-me de que não comia desde a noite anterior.

Saí pra rua escorraçado. O portão grande de madeira, bateu com estrondo depois que a criatura sem coração e que não queria explicações, jogou em cima de mim a mochila que ficara no meu quarto, junto com as  colegas ferramentas do jardim. Agora ali na calçada jogado decidi. Com a fome do estômago e a da alma me corroendo por dentro, resolvi comer estrada. Iria mais longe. Talvez essa caminhada me aliviasse a necessidade que sentia e não sabia saciar. Precisava algo que me suprisse a fome da alma que ninguém entendera. Nem mesmo eu sabia explicar. Minha fome era minha loucura ou minha loucura era minha fome. Não sei. Só sei que sinto fome sem parar.

Primeiro parágrafo de Leonardo Marona, trecho de um dos contos do livro "Conversa com leões" (Editora Oito e Meio)

Conto produzido como atividade do Curso Escrita Criativa da Editora Oito e Meio.


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Notas finais do capítulo

Pessoas de grande potencial perdem-se pelo mundo tornando-se andarilhos, mendigos e até se suicidam por não conseguirem resolver seus vazios interiores.



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