Contos Espontâneos escrita por Glenda Brum de Oliveira


Capítulo 1
Capítulo 1 - Sombria


Notas iniciais do capítulo


Nascera destinada a ser triste e frustrada. Mal amada e ignorada, não aceitou essa sina. Tomou o seu futuro em suas mãos e mudou a sua sorte. Mudou tanto que não se reconhecia mais Sombria. Seu final resplandecia.



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Equívoco. A vida dela era um grande equívoco. Só podia ser! Apreciava coisas que não tinham a ver com sua vida de filha de gente simples e sem recursos. Gostava de ler poesia, ouvir música clássica no rádio, admirar obras dos pintores e escultores clássicos nos livros da biblioteca da escola. Na hora do recreio sempre se escondia lá. Sentia -se deslocada. Cansara do bullying que sofria desde sempre na escola. Era mais fácil se esconder na biblioteca. Depois de um tempo esse lugar tornara-se mais que um refúgio. Era um  paraíso. Estava em paz e aprendia muito. Ninguém mais a gozaria por falar errado, ou por não saber as coisas. Lá ela tinha o mundo aos seus pés.

Viajava pelas areias do deserto. Visitava a França medieval ou a Inglaterra Vitoriana. Conhecia o Homem da Máscara de Ferro ou visualizava Julieta em seu balcão. Os quinze minutos de recreio eram mágicos e preciosos.

A biblioteca também se tornou um refúgio quando queria escapar dos afazeres domésticos. Desde muito pequena fazia todo o trabalho em sua casa. Agora, na adolescência, muitas vezes  ficava cansada daquela rotina de guardar as coisas do almoço, lavar a louça, limpar o fogão, a casa. Queria escapar. Então, nesses dias, inventava uma pesquisa de História ou Geografia e refugiava-se na biblioteca da escola. Realmente fazia a tal pesquisa, caso a mãe resolvesse conferir e porque gostava de aprender. Em várias ocasiões, quando a professora pedia que fizessem uma determinada pesquisa sobre algum assunto, ela já estava com a pesquisa pronta naquele caderno do ano anterior, no qual sobrara folhas em branco.

Eram tardes mágicas àquelas na biblioteca. Depois de fazer a pesquisa, passeava pelas estantes olhando a lombada dos livros e lendo seus títulos. Pegando um aqui e outro ali, para folhear e ver as figuras, enquanto imaginava a história em suas páginas. Escolhia um e deixava escondido atrás dos demais para na hora do recreio, quando ali se refugiava, ler sua história. Conheceu Ivanhoé. Descobriu que alaúde se tratava de uma espécie de violão antigo usado por menestréis ou por cavaleiros errantes no período medieval. E dia-a-dia seu conhecimento ia crescendo. Crescia também um sentimento de empatia pelos livros como se fossem uma pessoa. Seus melhores amigos.

Em outras tardes se deslumbrava conhecendo terras distantes e outras culturas, através das páginas da National Geographic. Viajava no lombo de camelos pelas areias do deserto do Egito ou conhecia a colorida Índia, com suas mulheres de trajes diferentes e homens com pinturas que muitas vezes lhe provocavam arrepios. Ficava muitos minutos olhando e olhando de novo, as mulheres-girafa da Tailândia. Imaginava como colocavam aquelas argolas em seus pescoços.

A escola acabou. O ensino médio foi concluído. Formou-se professora de educação infantil e primária. Mas não era esse o destino que almejava. Não queria trabalhar com crianças pequenas por muito tempo. Sua intenção é que seria professora de crianças até alcançar a sua meta. Tinha sonhos maiores. Queria ver e viver mais do que ser uma professora do interior.

Mas não conseguiu logo trabalho na sua profissão. Foi ser ajudante do lar da sua família durante uns meses. Depois sua mãe conseguiu através da amizade que tinha, um trabalho para ela como recepcionista numa clínica médica. Como seu trabalho era pouco, sobrava-lhe muito tempo ocioso. E os livros continuaram a ser os seus melhores companheiros. Era maravilhoso porque a acompanhavam no trabalho e depois iam pra casa com ela. A parceria só era suspensa no trajeto do trabalho até em casa e o tempo que levava pra conseguir chegar ao seu quarto.

Corria para a biblioteca pública sempre ao final do seu dia de trabalho e punha-se a andar pela sala dos livros que eram emprestados, para escolher mais um ou dois. Depois se dirigia apressada para casa. Os passos sempre se tornavam mais rápidos parecendo encurtar o trajeto, pois desejava a solidão do seu quarto e iniciar mais uma viagem. Desfrutar das delícias de mais uma aventura ou se emocionar com outras histórias.

Após o jantar e a louça estar lavada, o pão feito e esperando o tempo para ser assado, ou outra tarefa que sua mãe tivesse para ela, refugiava-se em seu quarto. Punha-se a viajar na máquina do tempo das páginas dos livros que lia.

Nessa época descobriu os romances. Leu sobre o amor entre homens e mulheres. Passou a desejar um amor assim. Encontrar alguém forte que a protegesse e cuidasse dela, mas principalmente, que a respeitasse e a admirasse por seu trabalho. Não pensava em contos de fadas, em príncipes encantados, mas em alguém real que pudesse dividir e somar a sua vida com a dela.

Como tudo em sua vida, essa área do coração era deserta e insípida. Embora já tivesse idade para namorar, esse namorado não aparecia. Não desejava estar com alguém apenas por alguns momentos como faziam as garotas que conhecia. Queria um relacionamento de verdade. Achava que aquele ficar das amigas era vazio e sem sentido. As transformavam em objetos. Para elas, ela parecia um ET. Em geral a deixavam sozinha, pois ela não tinha nada de interessante pra contar.

E se antes era gozada por falar errado e não conhecer alguns termos, agora a gozavam porque não falava gírias, tinha um vocabulário formal e não parecia fazer parte daquele mundo. Não importava quanto o tempo passasse e o quanto aprendesse, parecia sempre deslocada e vivendo numa época que não era a sua.

Secava suas lágrimas de desilusão nas páginas do pequeno caderno de poesias que tinha desde a adolescência. Ou então, no seu diário. O chuveiro era testemunha das abundantes lágrimas que chorava. Neles esvaziava seu coração atribulado e a sua solidão. Queria mais. Queria o mundo. Não lhe era mais suficiente aquela cidade de interior. Precisava aprender muito mais e expandir os seus horizontes. Conhecer talvez, os lugares sobre os quais lera a vida toda.

Desafiava-se a aprender cada vez mais sobre os mais diversos assuntos. Como ganhava pouco, e não havia bolsas de estudo, não conseguira fazer a faculdade, mas tinha planos. Iria se mudar. Iria mudar. Não desejava mais ser Sombria. Queria ser alegre como as borboletas visitando as coloridas flores no jardim. Queria ser como o calor do sol nas manhãs de primavera. Seu nome lhe destinava para o fracasso e uma vida de solidão e sem sabor. Desejava deixar essa história de vida para trás. História que lhe fazia mal.

Chovia quando Sombria nasceu. O frio intenso do final da tarde de inverno parecia um presságio sobre a vida que acabava de nascer. O lamento choroso da pequenina vida diante do frio que lhe provocava desconforto, seria um companheiro constante durante muito tempo em sua vida. Não o frio físico, mas o frio emocional. A solidão.

Foi gerada na esperança de que nascesse homem, mas diante de seu gênero feminino, foi rejeitada nos afetos dos que a gerarão. Cuidada por não poderem abandoná-la era alimentada e largada em seu berço frio. Aconchego  encontrava apenas nos braços de uma tia adolescente, que em breve foi embora; do avô durão e desajeitado,  por um pouco de tempo; no colo da avó que passou por um AVC, na véspera de seu segundo aniversário e ficou paralítica e incapacitada.

Os pais continuaram tentando ter o filho homem. Uma gravidez de gêmeos não passou do segundo mês. Mas três anos depois do nascimento dela, um menino nascia e ocupou toda a atenção. A mãe se dividia em dar atenção à avó paralítica e ao filho desejado que nascera. Ela recebia comida, banho e deixada para que brincasse sozinha ou era colocada na cama para que dormisse sem histórias ou cantigas.

Ela aprendeu cedo a cuidar de si mesma. Era uma sombra dentro de casa. Lembravam-se dela quando precisavam que algo fosse feito ou limpo. Nos momentos de risadas e convivência familiar, sua presença não era requisitada e nem sua falta era sentida. Brincava sozinha. Conversava com suas bonecas de plástico vagabundo. Deve ter tido amigos imaginários. Não lembrava. Lembrava apenas de horas solitárias no seu quarto, até finalmente descobrir um mundo mágico. Ele existia. Entrava em seu quarto e se escondia nele. Abria o portal para esse espaço de muitas emoções ao abrir a capa de um livro e viajar por suas histórias junto com seus personagens. Ela era a mocinha, a heroína das histórias que lia. Isso, porém, agora seria passado.

Pesquisou sobre o que desejava fazer. Comprou uma passagem de ônibus. Arrumou suas malas e avisou que estava se mudando. Estranhou a surpresa nos rostos, mas não deu atenção aos comentários de que não estava preparada para andar sozinha com as próprias pernas. Que lá fora era perigoso. Sempre estivera lutando sozinha suas batalhas. Não seria diferente. Venceria uma dificuldade após a outra. Uma batalha após a outra e mudaria o destino que achavam que estava traçado.

O novo mundo não era fácil. Desafios do desconhecido precisavam ser ultrapassados a cada dia. Muita coisa nova para ser apreendida e aprendida, mas ela adorava aprender. Encantava-se a cada nova descoberta. O olhar de Sombria estava diferente. O brilho que se via apenas quando estava viajando em seus livros, podia ser notado agora,  sem interrupção. Uma nova história começava a ser escrita. Uma história que merecia um novo nome. Sombria não era mais sombria. Nascia Nívea.

Nívea era luz, claridade, alegria. Seu novo trabalho numa livraria que também era um café, na capital, saciava suas fomes. Conhecimento, um ganho razoável para se manter e poder estudar; e ainda lhe permitia conhecer muita gente diferente. Começou a fazer amizades. Pessoas agradáveis que gostavam de ouvir suas opiniões e sorriam de verdade para ela. Podia estar exagerando, mas até diria que aquele rapaz, que todos os dias sentava-se na mesma mesa, na janela da calçada, a olhava com interesse.

Depois de seis meses conseguiu passar no vestibular. Conseguiu uma bolsa de estudos, pois passara em primeiro lugar, no seu curso. A vida mudara e a mudança lhe agradava e fazia bem. Sua pele e cabelo pareciam ter mais viço. A comprovação de que a mudança fora radical, veio numa sexta à tarde. Uma das garotas esnobes da sua cidade entrou na livraria. Claro que não queria ler. Pediu um café descafeinado. Olhou para Nívea, mas a mudança era tanta, que não a reconheceu.

Nívea tinha o cabelo cortado num corte moderno e com uma cor mais viva. Mudança promovida pela tinta de boa qualidade. Ganhara o novo visual de presente da dona do salão chique do outro lado da rua. Disse que era pela sua amabilidade demonstrada a cada cliente atendido com um sorriso. Na realidade a considerava como uma amiga pessoal. Talvez até como uma filha. Apesar do uniforme, sua postura agora era altiva e impunha respeito. Seus olhos tinham o brilho dos sonhadores que estão trilhando o caminho de seus sonhos. Nem o nome era o mesmo.

Os anos passaram com velocidade. Nívea não andava mais sozinha. Tinha amigos que jantavam com ela, iam a praia e lembravam do seu aniversário. Lembram do cara da janela? Ele  lhe convidou para um passeio num final de tarde, quando havia terminado seu horário de trabalho. Vários outros passeios aconteceram. Alguns sorvetes, piqueniques, tardes na represa ou na praia, filmes... Após um delicioso jantar que ele fizera para ela, o pedido de namoro aconteceu. Namoravam há dois anos e tudo estava ótimo. Mas seus sonhos estavam apenas no início de serem realizados. Havia muitas coisas a serem alcançadas.

Estendeu o mapa que comprara sobre a cama com o avesso para cima. Colou muitas fitas antes de prendê-lo na parede sobre o isopor que já estava lá. Colocou nos locais que pretendia visitar alfinetes coloridos. Azuis para os lugares que desejava conhecer primeiro. Verdes para aqueles que poderiam vir depois. E vermelho para os que ficariam para um futuro mais longínquo. O próximo passo foi aprender  línguas. Começou pelo inglês, depois francês e espanhol. Quando terminou seu curso universitário, estava pronta para rodar o mundo.

Guardara uma modesta poupança que lhe permitiria começar seu sonho. Depois veria pelo caminho como continuar. Seu namorado, um louco como ela, também largou seu trabalho para rodarem o mundo juntos. Começaram visitando a Itália. Não fizeram somente o caminho dos turistas tradicionais, mas entraram pelas vilas e cidadelas. Conversaram com as pessoas aprenderam seus costumes, aprenderam sobre seus cotidianos. Tudo foi registrado e anotado.  A curiosidade virou projeto que recebeu financiamento. E depois livro que foi publicado. E documentário que recebeu prêmio.

A Itália foi apenas o primeiro. Nívea e seu marido se especializaram em mostrar o mundo para àqueles que queriam conhece-lo, mas não podiam viajar. O projeto cresceu e virou um programa de TV. Um trabalho tão bem feito que ganhou prêmios dentro e fora do país.

Um dia alguém quis contar a história de Nívea. Mas não encontrou nada sobre sua infância e início de juventude. Perguntaram onde nascera. De onde viera. Sua resposta foi surpreendente. Nascera de suas entranhas. Viera de seus sonhos. Construíra seu caminho, porque não existia. Mudara seu destino. Diante da pergunta sobre quem era Sombria. A resposta fora. A mãe que me gerou. Sou fruto de mim mesma. Sou obra de meu desejo.

A família? Essa contou uma história tocante e cheia de sentimento sobre a garotinha dedicada e inteligente. Na escola? Todos elogiavam a menina que preferia estudar na biblioteca a brincar com as demais adolescentes. Colegas elogiavam seu bom gosto e seu humor contagiante, mas ninguém realmente lembrava de Sombria. Queriam apenas aparecer na TV e parecerem pessoas boas.

Sombria. Era o que tinha sido. Apenas uma sombra que não existia mais. Sombria cumpriu o seu destino de esquecimento. Trilhou o futuro de abandono ao qual estava destinada, mas não da forma que previram que seria. Abandono porque tornara-se Nívea, a vencedora. Àquela que leva luz, esperança e realiza sonhos. Os seus e os de outros.

Nívea criou uma ONG, que se dedica a ajudar crianças sem esperança a lutarem por seus sonhos, a torná-los realidade. Hoje, Nívea presenteia crianças que como ela precisam de nova vida, com futuros novos de vitória e superação. Uma vida cheia de luz e encantamento, poesia e realização. Nívea é o sol que aquece corações desejosos de esperança.


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Notas finais do capítulo

Escolher vencer, superar-se, sempre é o melhor caminho. Não importa onde nascemos; não importa o que digam e pensem a nosso respeito. Somos apenas aquilo que desejarmos e decidirmos ser.



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