Contos Espontâneos escrita por Glenda Brum de Oliveira


Capítulo 3
Capítulo 3 - Renascida no Oriente


Notas iniciais do capítulo

A vida pode ser cruel nos privando de prazeres simples e também dos grandes prazeres, mas para os que sabem serem pacientes e bons aprendizes, ela também pode reservar a vitória e o sucesso. Lavínia sofreu muito e chegou perder a si mesma nesse trajeto de dor e desencantos, mas teve a oportunidade de renovar seus objetivos e esperanças e sonhar novamente.



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Colocou um pé na água sentindo a temperatura. A água estava morna, gostosa. Avançou mar adentro lentamente sentindo como se á agua a invadisse. Sentia-se fundir com esse elemento. Diante de si o pôr do sol refletia sua luz  incandescente nas águas. O momento era perfeito O dia estava se despedindo, morrendo. Assim como ela estaria morta dali a alguns instantes. A decisão estava tomada. Ela, Lavínia precisava morrer. Não havia sentido para que continuasse vivendo como zumbi por mais tempo. 

Camboja, lugar mítico, místico e de rara beleza. Uma joia no Oriente, mas carcomida pelo tempo, pelas guerras e ganância humana. O nascer do sol nas ruínas de Angkor Wat é um espetáculo procurado por milhões de turistas todos os anos. Turistas em busca de  belezas, pessoas buscando revelações e aperfeiçoamento espirituais. Para os ocidentais é um mundo novo cheio de aromas, sabores  e cores diferentes. Uma filosofia de vida que possui um tempo e valores que causam estranheza ao desavisado.  Lugar do destino de Lavínia.

Não estava interessada em turismo, muito menos em encontrar-se espiritualmente. Queria sossego. Fuga da sua realidade. Se pudesse, fuga da vida. Como precisava desesperadamente sumir, por que não do outro lado do mundo? Não procurara nenhuma agência de viagem, nem nada assim. Seu destino caiu em seu colo numa tarde de segunda-feira, enquanto tentava ler o jornal matutino para encontrar promoções para as compras da semana. Não tinha muito o que fazer agora. Nesses dias se ocupava das mais diferentes formas possíveis. Valia qualquer coisa que a impedissem de pensar

O folheto em seu colo falava de uma viagem para o Camboja com finalidade turística e espiritual. Era promovida pelo grupo de Yoga da sua vizinha. Ela vivia inventando coisas para entreter Lavínia desde que Ferdinand, seu esposo, falecera. Trazia pedaços de tortas feitas para o jantar, bolachas recém saídas do forno rescendendo canela, erva-doce ou manteiga. Em outros dias resolvia passear pela feira de antiguidades e quinquilharias para ver o que encontrava. E levava-a de arrasto consigo.

Não podia dizer que era ruim. Pelo menos saía de casa. Via gente e até aprendia algumas coisas interessantes. Obtinha ideias novas para seu trabalho no ateliê. Andava meio sem foco. Perdida seria a palavra exata. Cuidara do marido com câncer nos últimos dois anos. Um período onde perdera o que restara da sua personalidade, do seu amor próprio. Desde então não conseguira estabelecer uma nova rotina. Não cuidava de si mesma. Apenas sobrevivia. Seu trabalho não era bom. Precisava fugir da sua vida. Olhou o folheto e perguntou quanto custava e quando seria a viagem. Duas semanas a separavam dessa salvação.

Nesses dias passou atarefada renovando seu passaporte, separando roupas apropriadas e conferindo se o que restara na  poupança seria suficiente para o que pretendia fazer. Como a viagem estava quase totalmente paga pelo grupo, a ela cabia pagar uma diferença e as passagens aéreas. Era uma oportunidade de ouro. A pessoa que estava substituindo ficou impedida de viajar por causa de uma doença na família. Pensou com culpa,  que o azar de uns pode ser a sorte de outros. Não considerava exatamente como sorte, mas escaparia. Não precisaria responder a perguntas sobre o que estava fazendo, se havia comido ou dormira bem. Essas coisas que preocupam os outros diante do sofrimento e apatia de alguém. Também não precisaria aparentar nada para ninguém, pois era cansativo fingir o tempo todo que tudo estava bem, quando não estava.

O filho despedira-se na noite anterior a viagem. A filha a levou ao aeroporto e colocou em seu pescoço uma bolsa de couro azul, dizendo que era um presente para a viagem. Uma câmera fotográfica profissional. Disse para tirar muitas fotos para mostrar para eles depois. Lavínia sorriu e agradeceu. Afinal era o que esperavam dela. Abraçou a filha, beijou os netos e tomou o rumo do corredor que levava ao portão de embarque. Quase gritou quando afivelou o cinto e sentiu o avião decolar. Estava livre. A vizinha não viajaria com o grupo e todos os demais eram estranhos ou quase. Liberdade!

A viagem não era direta. Desceram em Londres e de lá pegaram outro avião pra o Oriente. Depois de 30 horas chegaram a Tailândia. Lá aproveitaram a praia no primeiro dia para descansar. O dia seguinte estava destinado a visitar templos. Em especial um que tinha o chão feito com placas de prata. O guia disse que cada uma pesava um quilo. Ela comparou o que via ali com as crianças descalças e maltrapilhas que vira nas ruas do mercado no dia anterior.  Era algo incoerente, para dizer o mínimo. Passaram mais dois dias. Passearam em elefantes por uma reserva natural. O verde parecia despertar a vida que não sentia mais dentro dela. Ao final sentia uma estranha sensação de satisfação. Era uma sensação a qual não estava acostumada. Pensou a respeito e concluiu que sentir satisfação era bom. Era algo que preenchia parte do vácuo que a preenchia por tanto tempo.

No quinto dia  seguiram para o Camboja. O voo era rápido e em pouco tempo, já estava se instalando no hotel e fazendo planos para os próximos dias. Não pretendia meditar nas ruínas, como os demais. Tinha pensado em ficar no hotel e dormir, fazer compras, mas ao olhar para a bolsa azul que a espreitava da poltrona onde a esquecera, decidiu fazer algo mais produtivo.

O grupo se reuniu às quatro da manhã pois pretendiam ver o sol nascer nas  ruínas de Angkor Wat. Todos  diziam era uma experiência singular e inigualável. Os tuc-tucs os esperavam na porta do hotel no horário marcado. A madrugada era quente e úmida. Chegaram no ponto que desejavam no momento que o horizonte começava a ficar mais claro. Os demais sentaram–se em círculo para começar o ritual de energização. Ela postou-se sobre um ponto alto de uma das muralhas, onde creu que teria uma vista adequada do sol nascendo. Tinha diante de si a imagem dos contornos dos prédios  do centenário complexo.

Mirou sua câmera e começou a registrar. O ritmo frenético com o qual trabalhava era como se uma produção industrial estivesse em atividade com uma meta muito alta para ser cumprida em pouco tempo. Sossegou a câmera somente quando uma mão descansou sobre seu ombro, no momento em que tentava registrar um ângulo de uma árvore que tinha raízes expostas ou o troco dividido como se fossem muitos tentáculos abraçando uma ponta de um dos prédios que resistia e se fundia em simbiose de pedra e tronco. A impressão é de que a árvore amparasse a velha construção com seus muitos braços ou que a árvore estivesse placidamente assentada sobre o telhado da construção. Era impressionante. Tão absorta estava, que o toque em seu ombro não chegou a assustá-la. Olhou quem a interpelava com olhos vazios como se estivesse em uma realidade paralela.

Um sorriso de escassos dentes amarelos lhe mostravam cordialidade e  amizade. Ela sentia. Podia sentir. Estava sentido novamente. Esse sentimento causava-lhe ao mesmo tempo euforia e uma paz deliciosa. Olhou ao redor e fechou os olhos como se assim pudesse aproveitar melhor a brisa morna que lhe atravessava e o sol que a tocava. Era saboroso como mousse de chocolate com pedaços de morango e crocante de biscoitos numa taça de cristal. Sentia um universo de sensações que não lembrava que existiam, talvez nem as sentira antes. Pareciam inusitadas. O sorriso agora lhe falava como o sussurro do vento. Contava-lhe sobre a história do lugar.

Que momento estranho e extraordinário. Havia uma urgência de registrar. Captar cada movimento, cada refração da luz urgia como o respirar. A voz que lhe interpelava lhe tirou do momentâneo devaneio ou sonho acordada. Ela ainda não diferia. Precisava responder. Não se sentia pressionada, mas motivada a se comunicar. Sorriu de volta. Não doeu como imaginava que poderia ser. Não sabia quanto tempo não sorria de verdade. Foi bom e seguiu sorrindo.

Mirou sua lente para os monges de amarelo e laranja parados como gárgulas vigilantes nos degraus dos templos. Alguns andavam pelas alamedas entre os prédios. Estavam totalmente integrados a paisagem. Seus rostos serenos e olhar profundo pareciam fazer parte do complexo arquitetônico.

Passava do meio-dia. Já havia tomado duas garrafas de água e o estômago estava roncando pra valer. Procurou por uma das barracas que vendia frutas em pedaços e comprou uma fatia de melancia e outra de melão. Isso devia aplacar a fome imensa que estava sentindo. Completou o almoço com duas barras de cereal. Lanche feito voltou a registrar tudo que conseguia.

Ouvia muitos idiomas diferentes. A maioria não chegava a reconhecer. Sentia-se num mundo paralelo. Registrou pessoas idosas sentadas pelas vielas seus olhos expressavam cansaço pela vida assim como seus corpos macilentos e com certeza pouco nutridos. As crianças descalças eram sorridentes e indiferentes a sua condição de miséria.  

Próximo das quinze horas rumou para o ponto de encontro para voltar com o grupo para o hotel. Encontrou os colegas de viagem muito sorridentes e alegres. Falavam baixinho como se dividissem algum segredo que não podia se espalhar. Já faziam planos para a volta no dia seguinte.  Havia muito para ver ainda.

No hotel, preferiu comer no quarto e descansar. Pediu uma refeição leve pro fim da tarde. Porém, após a refeição, estava inquieta. Considerou que seria bom fazer um passeio nos jardins do hotel antes de deitar-se. Afinal ainda era muito cedo para dormir, mesmo tendo que levantar-se novamente muito cedo no dia seguinte. O hotel parecia uma pequena vila. Eles haviam ficado no prédio principal, mas havia muitos bangalôs que podiam abrigar famílias inteiras ou apenas casais. Não sabia dizer de onde vinha, mas era agradável o cheiro de essência que enchia o ar. Uma mistura herbal amadeirada. De um jardim do lado do prédio principal a brisa trazia o aroma de jasmins e rosas.

Sentou-se num banco e passou a contemplar o pôr do sol e as primeiras estrelas que surgiam no céu. Não lembrava de quando havia feito isso pela última vez. Naquele instante ninguém precisava dela. Estava em paz. Todas as sensações daquele dia lhe devolveram vida correndo em suas veias. Tirou as sandálias e afundou os pés na grama. Era bom o frescor e a textura levemente áspera. Fechou os olhos e se transportou no tempo.

Casara-se cedo. Terminou a faculdade depois de casada. Logo os filhos chegaram. E havia sido um período de grandes desafios. O casamento não fora o que esperava ou desejara. Nunca esperara um conto de fadas, mas a realidade desde o primeiro dia tinha sido áspera e solitária. Pensara em divorciar-se, mas a chegada dos filhos fez com que recuasse nesse propósito.

O tempo tornara o marido mais duro a cada dia, mais irritado e grosseiro em atitudes e palavras. A violência aparecia em copos e pratos atirados nas paredes por razões fúteis entre outros objetos. A primeira vez que a atingiu foi na gravidez do primeiro filho. As agressões deixaram de ser apenas verbais e também se tornaram físicas, vez ou outra. Não admitia ser contrariado. Apenas a sua vontade era feita dentro de casa. Comia-se, bebia-se somente o que ele desejava.

O marido nunca estava presente. Sempre estava fora trabalhando ou sabe Deus onde andava, pois nunca dera satisfações de onde ia. A desculpa ou verdade, sempre fora de que estava trabalhando, mas o ganho nem sempre correspondera as muitas horas fora de casa. Até mesmo nos fins de semana e feriados ele se ausentava e ela ficava só com as crianças.

Os filhos cresceram e quando deixaram de precisar de seus cuidados começou a dedicar-se ao artesanato e as artes plásticas em um tempo maior do que anteriormente. O marido a havia proibido de trabalhar fora de casa seguindo uma carreira. Mas como sentia falta de fazer algo além de cuidar da casa e dos filhos, começou a fazer cursos enquanto as crianças estavam no colégio. O hobby mantivera a sua lucidez e acabou preenchendo as horas intermináveis de solidão que tinha. Com o tempo, amigos e parentes que recebiam os mimos que fazia, começaram a indicar seu trabalho. O número de clientes cresceu gradualmente ao ponto de montar um ateliê para atender a demanda dos pedidos. Isso enfurecia o marido, mas ela não se importava mais. Nem mesmo a hora do sexo era respeitada. Nesses momentos também era recriminada e humilhada. Muitas vezes depois da violência verbal e até a física ele a obrigava ao sexo. Ela sentia-se violentada. Com o tempo deixou de sentir-se mulher. Ligara há muitos anos o piloto automático e assim vivia desde então.

Dois anos antes o marido teve um desmaio. Levado pro hospital descobriram que estava com nódulos  nas axilas e uma arritmia no coração. Mas como muitas outras coisas importantes na vida, ele levou essas informações sem dar importância ou tratamento adequado. Quando novamente foi parar no hospital o problema havia piorado e o diagnóstico  confirmou um câncer se espalhando pelos  pulmões e fígado. Dalí para frente foi ladeira a baixo. Um dia pior do que o anterior. Tentaram fazer quimioterapia e radioterapia, mas a doença resistiu aos tratamentos.

Dois anos de lamentos praguejantes.  Foi dedicação integral. Não saía a não ser para fazer as compras de mercado, farmácia, ir ao hospital e comprar algum item para o ateliê, onde ia para fugir do desespero de vez em quando. Ficava num cômodo isolado da casa. Para lá fugia, quando ele dormia sob o efeito dos remédios. O marido seguiu definhando dia-a-dia. Nas últimas semanas de vida ele havia sido internado para que tivesse mais conforto nessa fase final. E ela seguiu acompanhando até o último instante. Respirou com ele seu derradeiro suspiro. Quase parara de respirar junto com ele.

A morte dele não a libertara. Continuava vivendo como se ele estivesse presente. Fazendo tudo exatamente como exigia. A única mudança era que passava mais tempo no ateliê. Mas nem mesmo ali conseguia sentir satisfação ou alegria.

O reprise mental a exauriu. O sono foi profundo e sem interrupções. Quando o celular a despertou relutou em sair da cama, mas não queria deixar o grupo preocupado ou esperando. No dia anterior havia comprado bolachas, algumas castanhas e frutas secas para levar de lanche. As frutas que comera no dia anterior ajudaram a manter-se hidratada, mas era insuficiente.

O grupo novamente iria recepcionar o sol meditando e fazendo exercícios de Yoga. Ela escolheu um lugar e ângulos diferentes para registrar o Sol nascendo. Visitou prédios que não vira no dia anterior. Procurou vistas diferentes, mas principalmente registrou pessoas que considerou exóticas, diferentes. Era um lugar que recebia gente do mundo inteiro. Rostos com as mais diferentes expressões. Começou a pedir permissão e passou a registrar os rostos. Desejava marcar o olhar e as infinitas possibilidades de pensamentos que deviam estar passando pelas muitas cabeças que andavam pelas alamedas dos templos.

O dia passara tão rápido que olhou assustada quando lhe puxaram pelo braço. Uma das colegas de viagem a chamava para voltarem para o hotel. Nessa noite resolveu sair com o grupo. Levou a máquina junto. Desejava registrar o máximo que pudesse. E conseguiu muito material.

Todos os sabores do Oriente estavam presentes na comida cambojana, mas de uma maneira mais suave e discreta. Não era tão apimentada como em outros lugares. A harmonização dos temperos e os colorido dos pratos era um prazer a parte.

No dia seguinte não acompanhou o grupo. Dormiu até mais tarde e depois escolheu andar pelo mercado. O sons de idiomas variados, os cheiros e as cores se transformaram num espetáculo para todos os sentidos. Fotografou as pessoas em atividade nas barracas do mercado. Crianças correndo descalças e velhos sentados nas sarjetas das calçadas, olhando o tempo e esperando a caridade dos turistas.

Comprou alguns objetos antes de voltar para o hotel. Alguns para seu trabalho. Presentes para a vizinha.  Estava exausta e com um pensamento fixo na mente.  Não podia continuar vivendo da forma como estava. Sua vida estava sem sabor, cor e nem lembrava quando pudera dizer com todas as letras que sentira alegria... felicidade. O termo que usava como brincadeira retratava exatamente o que sentia... vácuo.

Deitada na banheira entrou novamente no túnel do tempo. Concluíra a faculdade como destaque da sua turma e do curso. Isso suscitara muita discussão e mais alguns acessos de violência dentro de casa. Por causa da homenagem feita pelos colegas da turma. Um vaso voara contra a parede espalhando água e pedrinhas pela sala.  Alguns livros foram rasgados e uma marca de dedos ficou estampada em seu rosto. O dia da formatura se tornou um pesadelo em vez de alegria.

Encolhera-se de vez. Dia a dia sufocara suas vontades e desejos. A casa era rigorosamente arrumada dentro daquilo que o marido ordenava. Até  mesmo as folhagens e flores que havia em seu jardim de inverno e jardim externo estavam de acordo com as ordens e ideias do marido.  

O artesanato em sua vida, começou para resolver pequenas necessidades dos filhos e acabou crescendo. Fazia colchas com mensagens e imagens de mães ou pais que desejavam que seus filhos lembrassem deles ao se mudarem para a universidade. Álbuns personalizados. Painéis de ornamentação para cantinhos especiais em apartamentos e jardins de inverno. De certa forma fazia para os outros e suas casas o que gostaria de ter feito na sua. Conforme as crianças cresceram e o tempo ia sobrando, passou a fazer mais cursos. Esses trabalhos também iam se tornando frequentes até que o marido adoeceu e ela precisou largar tudo.

No último ano e meio sua apatia tinha se tornado palpável e insuportável. Mas não encontrava uma saída. Até aquele fim de tarde. Dormiu tranquila como não acontecia em muitos anos. Nem precisara de auxílio de remédio como em geral fazia. Talvez fosse a paz que almejara nos últimos anos.

O programa do dia era um passeio pelo litoral e ver o pôr do sol em uma praia. O dia foi perfeito. Programa típico para turistas. Muitas paisagens fantásticas e lugares incríveis. Comida saborosa e muitas pessoas agradáveis. Fez compras para os filhos, netos, nora e genro. Colocou o nome nos pacotes. Assim ficaria mais fácil para cada um saber qual era o seu.

O fim do dia se aproximava. Colocou todas as suas coisas dentro da sacola grande que comprara no dia anterior, incluindo a máquina  fotográfica. O micro-ônibus parou no destino final daquele dia. Tiraram fotos, andaram na praia e por fim cada um podia fazer o que quisesse. Lavínia  estava pronta para dar fim a sua vida de vácuo existencial. De vazio de significado.

Tirou a túnica que estava por cima da sua roupa de banho e se dirigiu para a faixa onde o mar encontrava a areia. Entrou devagar  sentindo o calor da água. Era tão gostoso que parecia um abraço morno e convidativo. Escolheu um trecho da praia mais vazio, onde tinha apenas um casal namorando distraído. Melhor assim. Ninguém veria e poderia ser bem sucedida no que pretendia.

Avançou aos poucos mar a dentro se acostumando com a água envolvendo seu corpo. Seguiu em frente até a água estar na altura do seu umbigo. Era interessante a paz que sentia. Contemplou o horizonte. O dia virando noite. Parecia poesia. Aquelas trágicas, mas belas. Morreria naquele instante toda a sua dor, a angústia que sentira por anos, a solidão de dias intermináveis. Foi deixando o corpo baixar dentro da água como se estivesse ajoelhando. O mar estava calmo como um lago. A água foi lentamente subindo por seu peito, cobrindo seus ombros e pescoço. Finalmente estava totalmente imersa. Seus olhos estavam fechados. Soltou o corpo e deixou-se ficar. Naquele instante Lavínia permitiu-se morrer.

O corpo e a água não se fundem, não se misturam, mas um conduz o outro. E nesse período entre soltar o corpo e o mar o carregar até a praia a água em seu caminho foi retirando todas as dores, todos aqueles anos de desespero, solidão e angustias. Boiando em sua cama fluída Lavínia foi esvaziada.

Com os olhos fechados e flutuando, a vida foi preenchendo o corpo vazio. Não era uma fênix renascida das chamas. Lavínia renascia das águas. Quando sentiu o solo da praia, ergueu-se de seu túmulo e respirou profundamente. O ar invadia de uma forma mágica renovando cada músculo, cada nervo, cada neurônio. Um riso aflorou  alto. Estava agradecida pela vida.

Renascimento. Ressurreição. Fazer nova a vida. Ver as pessoas, seus olhares, todas as coisas naquele lugar a perturbaram. Não seria resignada. Não tinha carma. Não tinha destino. Ela construiria como quisesse o seu futuro. Era uma mulher que acabara de chegar nos quarenta e oito anos. Tinha profissão. Adquirira outros conhecimentos ao longo dos anos. Mesmo cerceada pelo carrasco do marido, não parara de aprender. Desenvolvera-se. Aprendera muito. Era culta. Começaria a usar todo esse conhecimento em sua nova vida.

Programaria uma exposição para apresentar seu trabalho ao grande público. Produzira material suficiente no período que ficou cuidando do marido doente. E havia vários guardados. E com certeza alguns de seus clientes poderiam emprestar algumas obras para a exposição. Faria, quem sabe uma publicação com as fotos dessa viagem. Estavam ficando magníficas. Projetos, projetos e mais projetos. Queria viajar mais e explorar  seu dom fotográfico.

Saiu da água andando de cabeça erguida. Sorriso nos lábios e mil planos na cabeça. Os outros membros do grupo quiseram saber se havia consumido drogas. Achou melhor dizer que tivera uma iluminação. Um encontro consigo mesma. Essa explicação eles entenderiam. Assim  não lhe fariam mais perguntas e não estava mentindo.

Ligou pros filhos quando chegou no hotel. Contou sobre o que vira naqueles dias e os planos que estava elaborando. Os filhos a princípio ficaram preocupados com tanto entusiasmo, mas depois concluíram que finalmente o luto da mãe passara e estava começando uma nova etapa na vida. Incentivaram-na e começaram a sonhar junto com ela. Iriam se programar para tirarem férias juntos no ano seguinte e fariam o passeio que ela estava fazendo agora.

A vida é um dom precioso. As oportunidades passam pelos nossos dias. Muitas vezes as circunstâncias nos impedem de seguir o curso da forma que sonhamos, mas nos apresenta outros caminhos. Aprimora a confiança, desenvolve a paciência e a observação. Nos mantém seguindo em frente pela resiliência, característica dos mais fortes, dos vencedores. Ela era uma sobrevivente que desenvolvera a resiliência. Estava pronta para a Próxima etapa do caminho da vida. Esse seria mais produtivo e de sucesso garantido, pois renascera para vencer. Podemos fazer o futuro e a vida presenteia os persistentes com doces momentos de pura e verdadeira magia.

No silêncio da noite que invadia todos os  espaços, Lavínia pegou caneta e papel e começou a escrever. Fazia muito tempo que não fazia isto. Outros precisavam conhecer aquela história. No alto da página centralizado escreveu “Renascida no Oriente”.


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Notas finais do capítulo

Os sonhos são a respiração da alma humana. Eles movem o ser humano, superam o passado e projetam o futuro.



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