Moon Creatures escrita por Ana


Capítulo 3
Cap. 3 - Memória


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo demorou pra sair, mas foi porque tinha muito o que se trabalhar aqui. Inclusive ficou gigante, mas faz parte da minha mania de dividir as coisas de um determinado modo, muita coisa teve que caber aqui.
Boa leitura :)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/711724/chapter/3

A caminhada pelas montanhas foi lenta e desconfortável, era estranho como a proximidade na qual nos encontrávamos agora não conseguia transpor a distância que instaurara ali. Eu sabia que era possível com apenas um leve movimento atravessar os centímetros físicos que nos separavam, mas eu também sabia que seriam apenas os que separavam nossos corpos, porque as mentes estavam muito para além do alcance dele ou do meu. Eu estava presa no meu medo e ele perdido em alguma lembrança, talvez a de poucos minutos quando ainda discutíamos, e não trocar palavra alguma não ajudava nem um pouco, apenas confirmava que estávamos sozinhos, mesmo estando juntos.

Cada um fazia o que podia para se distrair daquela tensão, o que foi ficando mais fácil conforme descíamos e a floresta começava a aparecer, a mudança nas formas e tamanho das plantas e as várias espécies bichos que existiam ali capturavam a atenção. Era impressionante como tudo era muito mais rico ali, poucas espécies suportavam o frio e a altitude das montanhas, sem falar na menor oferta de oxigênio, ali, ao contrário, o ar era mais úmido e mais saboroso.

Jack olhava os bichos e às vezes dirigia um olhar um pouco perdido para o céu, experimentei fazer isso algumas vezes, mas o dia sem sol não me chamava atenção, resolvi então pelo caminho oposto, fitando o chão, desviando das raízes, e pisando em galhos e folhas secas. Quanto mais entrávamos na floresta, mais fácil minha nova distração ficava, embora não tirasse totalmente o pavor que aquele lugar provocava.

O ponto para o qual nos dirigíamos era próximo de um reino, e era isso que fazia com que fosse tão difícil voltar ali, uma ocupação humana era uma ideia assustadora e essa, em especial, me deixava apavorada. Existe algo sobre nós, seres criados pela Lua, que nos torna invisíveis aos olhos humanos, na verdade nós nem existimos para eles, não escutam nossa voz, não nos veem, não nos sentem, é como se não fôssemos nem matéria. Infelizmente isso não era o suficiente para que eu me sentisse tranquila perto deles, um pânico irracional começava e simplesmente ficava fora de controle, e aí que está o problema. Nós não podemos ter contato nenhum com seres humanos, mas nossos poderes podem, e alguém com poderes como o meu pode, sem grandes dificuldades, machucar alguém ou até matar.

— Você está bem? – o tom preocupado da voz e o carinho que imprimiu nela já respondiam a pergunta, eu deveria estar deixando transparecer meu medo, eu era boa em esconder as coisas, mas não sentia a necessidade de esconder dele.

 - É... – com a voz sumida, acenei rapidamente a cabeça na tentativa de reforçar a resposta tosca.

— Olha pra mim – com delicadeza ergueu meu rosto, forçando um contato visual que eu vinha buscando evitar – Eu estou aqui se você precisar, você não está sozinha e nós vamos fazer isso juntos, certo?

— Obrigada – afundei meu rosto em seu peito e o envolvi em um abraço. Ali, pela primeira vez, desde que havíamos deixado a casa, senti que estávamos lá, corpo e alma, eu não estava mais sozinha.

Agora mais próxima pude notar um reflexo luminoso no casaco de Jack e, dirigindo meus olhos para a direção oposta do brilho, percebi que parecia ser causado por um cristal. Sem dizer nada, fugi do abraço e me dirigi a base de um tronco, ali, pouco acima das raízes, um cristal pontiagudo estava fixado, mas não era um cristal comum, aquilo era meu, não fazia a menor ideia de como, mas aquele cristal de gelo era meu.

Olhando mais à frente pude ver mais alguns, todos do mesmo tipo, mas de formas diferentes. Criavam um aspecto mágico a aquele lugar ao refletir a luz do sol. Era quase como se uma explosão tivesse os colocado ali, pela forma desencontrada e violenta a qual haviam se prendido.

— Não é estranho que isso ainda esteja assim? – perguntei muito interessada em outro pedaço que acabara de achar.

— Assim como? – Jack respondeu enquanto procurava outros mais a frente.

— Pela estação, sabe, aqui não é como as montanhas – Eles não deviam derreter? Porque invariavelmente as coisas que a gente faz derretem, só em lugares frios que elas realmente duram sem a nossa presença.

— Senhorita Anna? Temos de ir logo, sabe que não podemos demorar muito aqui – Uma voz masculina não muito longe dali nos alarmou, Jack segurando minha mão nos conduziu em silêncio até a margem, de onde a voz parecia vir.

Mesmo com as pernas não obedecendo, segui. Já estávamos ali e de qualquer forma era melhor saber do que se tratava. Uma garota, que devia ter em torno dos mesmos anos que eu, embora sua postura fosse muito mais séria que a minha, fitava o rio, o mesmo para o qual estávamos indo. A menina tinha cabelos ruivos, quase castanhos, presos a um coque, era magra, de estatura média e tinha aquela graça natural que nasce com algumas pessoas. Suas vestes eram escuras, púrpura, mas nem por isso menos graciosas. Ela parecia um estátua fria olhando para as águas, dela não tive medo.

Virou o rosto por um instante, com uma expressão de impaciência, o que fez com o que parecia ser um criado se desculpasse com uma reverência. Tinha um rosto repleto de sardas e dois grandes olhos azuis, ligeiramente esverdeados.

— Sabe? – a garota falava pela primeira vez – Faz muito tempo, mas gosto de estar aqui... E é além disso, na verdade, preciso estar.

— Eu sei madame, me desculpe – e fazendo uma reverência mais pomposa que a anterior, o criado se retirou para um coche que esperava a uns quinze metros de distância.

Os cristais, aquelas vozes, aquele rosto, era como se toda aquela situação tivesse desbloqueado uma série de pequenas lembranças que agora dançavam confusas na minha cabeça, fazendo uma verdadeira bagunça.  Eu não conseguia pensar direito. Aquela garota, principalmente, me intrigava, havia algo ali, mas tudo não passavam de pequenos flashes que iam e vinham contra a minha vontade.

Havia algo a mais naquele rosto sardento, eu sabia quem ela era.

 

 

— A sua irmã morreu. Por sua causa!

A voz continha a sentença mais dura que eu já havia escutado, e por mais que a mesma me assombrasse nos pesadelos, nunca imaginei que a dor seria tão profunda. Todo meu corpo respondia a emoção naquele momento, era com se eu agora morresse, aquela era a minha sentença e ele, meu carrasco.

Meus poderes, meus pais, todos os meus medos, um a um saindo de um plano imaginário e vindo me atormentar na realidade. Eu havia esperado por toda uma vida ouvir aquilo e sabia que era inevitável, a cada tentativa estúpida de anular o destino, eu tinha mais certeza. Eu, Elsa, iria um dia matar minha irmã, independente do quanto eu a amasse ou a quisesse bem.

Todos os esforços através dos anos naquele quarto escuro, tinham sido em vão. Um a um, todos os que me amaram foram destruídos. Eu era como a doença que se alastrava e infectava qualquer um que se aproximasse demais. Ali, no cenário que eu mesma criei, condenando a todos a um túmulo gelado, eu desmoronei, não havia força no meu corpo, as pernas não respondiam e tudo parecia passar rápido e lento demais, estava em um tempo diferente agora, no lugar dos pesadelos, exceto que dessa vez eu não iria acordar.

O único objetivo ao qual eu me ative a uma vida toda estava morto, e por minha culpa. Anna era boa e ingênua, conseguia ver beleza na minha monstruosidade, e por ser a única que foi capaz de ver algo bom em mim, morreu, pelo meu próprio encanto.

Pude escutar a lâmina que Hans brandia, acreditando que me mataria pelas costas. Não o culpo por isso, eu mesma me mataria se não fosse tão covarde, mas ele faria isso por mim, me libertar daquela existência que só fazia machucar as pessoas, e ele, teria sangue nas mãos e uma existência atormentada pela minha morte, mas agora eu podia ser egoísta, eu queria desaparecer. Abaixei-me e com o corpo curvado no chão esperei que a espada decepasse minha cabeça. Não teria eu, uma rainha, uma morte mais digna que as galinhas que haviam sido preparadas para o banquete no castelo.

Um estrondo diferente irrompeu o lugar, a lâmina havia se partido, e Anna era agora a estátua de gelo que havia me salvo a vida. Seu rosto estava petrificado numa expressão ambígua, podia se ver o medo, a mágoa e tristeza clara em seus olhos, mas uma imensa coragem em sua expressão era agora gelo, assim como eu.

As lágrimas corriam pelo meu rosto, o desespero estava muito claro agora, não sentia mais vida em mim, como se eu agora fosse a estátua de gelo. Aquele rosto que me trazia tanta alegria, não era agora nada diferente de uma estátua de jardim. Meus pulmões queimavam e eu me sentia morrendo ali, morrendo no lugar dela. Uma onda do mais puro ódio percorreu meu corpo, ódio de mim mesma e ódio daquele mundo, que não era capaz de salvar aquele anjo, a única criatura boa que havia caído ali.

Com um grito agudo que cortou todo o reino, reuni naquele rompante toda a força que ainda me restava, as lembranças mais amargas me vinham naqueles momentos, meus pais, meu cárcere, minhas mãos sujas de sangue. Senti pela primeira vez o frio no meu corpo, cortava como lâminas e fazia sangrar, todo o inverno e frio que eu havia provocado voltava agora pra mim, e eu sabia que no final estaria morta, mas se Anna estivesse viva, teria valido a pena.

Todo meu corpo sangrava, no entanto não sentia dor alguma, apenas um gosto metálico na boca e o resto de uma respiração ofegante que ia pouco a pouco de acalmando. Não podia mais me manter em pé, estava fraca agora. Com o impacto da queda, soube que seria ali onde eu veria as últimas imagens do mundo, um lugar hostil e perigoso, mas onde às vezes é possível achar alguém como ela. Olhei uma última vez para a minha irmã, estava confusa e assustada olhando pra mim com os grandes olhos verdes.

— Anna! – disse com o resto de força que ainda guardava, meus olhos cheios de lágrimas se contentaram em ver sua imagem embaçada uma última vez, antes de afundar no rio, cuja a camada sólida de gelo derretia. Não havia mais frio em Arendelle, não havia mais frio em mim.

 

 

As coisas ainda não se organizavam na minha cabeça, mas eu sabia agora que essa que estava a alguns metros de mim era a minha irmã, e que ela estava a salvo. Eu não podia entender como os outros não tinham um passado se eu tinha um, talvez Jack tivesse razão ao dizer que eu era diferente, mas isso não importava agora, eu tinha que entender o que aqueles momentos que me vinham à cabeça significavam. Havia muitas perguntas que eu não conseguia responder, e eu estava genuinamente feliz, ela estava a salvo e esse era o único sentimento que eu entendia.

Após alguns instantes tentando me recompor sem conseguir conter os risos e as lágrimas, me aproximei, ignorando os gritos de Frost que não queria deixar a segurança da floresta. Ela estava linda e mais velha do que eu me lembrava, seu rosto tinha perdido um pouco das bochechas que davam a ela o ar infantil, mas era ela, era Anna.

Seu rosto virou-se para mim, sem que eu precisasse dizer nada, e nele algo me preocupou, seus olhos não carregam mais aquele brilho, a tristeza estava profundamente cristalizada neles, não eram os olhos dela, eram como os meus quando vivia naquele castelo. Detive-me com essa surpresa, como podia aquele espírito tão alegre carregar uma dor tão grande? Não entendia, e essa era só mais uma das coisas que não faziam sentido agora.

Desfez a expressão séria em um último sorriso melancólico, virou-se e dirigiu- se ao coche, onde os criados aliviados se preparavam para partir.

— Anna espera! – colocando-me a sua frente, tentei impedir que fosse embora imprimindo todo o entusiasmo possível na voz – Sou eu, você se lembra de mim, não se lembra?

Sem olhar para mim ela continuou, como se eu não existisse, e algo do que já ouvira algumas vezes aconteceu. Ela passou por mim, me atravessou, como a uma sombra, como se eu não fosse real, e por mais que eu soubesse que aquilo ia acontecer, eu preferi não acreditar, aquilo doía, machucava, e eu pude sentir o frio cortante atravessando meu corpo por uma segunda vez. Paralisada no chão, não consegui me virar, foi ouvindo apenas o barulho das rodas na lama que soube que tinha partido. Agora meu castigo era saber que ela precisava de mim, e que eu estava ali, mas apenas pra assistir o sofrimento dela.

— Elsa o que aconteceu? – perguntava a voz preocupada de Jack, que finalmente saía da floresta – Você precisa de ajuda? Tá tudo bem?

Não pude responder, um impulso, um sentimento tomou conta de mim mais uma vez, eu queria correr, eu queria fugir e tal qual um bicho acuado, corri sem ver pra onde, só queria sair dali. No meio da emoção o trajeto se apagava na minha cabeça e novas memórias apareciam, tentava impedir que elas voltassem, mas não era algo opcional, tudo parecia confuso e horrível, eu não conseguia raciocinar agora.

Não sei por quanto tempo fiz isso, ou pra onde fui, só pude entender novamente o que se passava quando a neve da montanha amorteceu minha queda. No desespero que me dominara, algo havia se prendido ao meu pé e me derrubado, ali mesmo, sem nem me mover, chorei toda a angústia que aquela ideia estúpida havia trazido de volta.

Após alguns minutos me levantei, precisava voltar pra casa, precisava descansar e dormir um pouco, era hora de pensar e não de fugir. Buscando o que havia causado a queda achei atado a meu pé algo como uma corda ou tecido, não conseguia identificar, se propagava por metros na neve branca, algo dourado como grossos fios de ouro. Enquanto tentava livrar-me do impecílio, um pensamento estranho cruzou minha cabeça.

—Isso é... Cabelo?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Moon Creatures" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.