Doce Toque escrita por LeleMarques


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo para vocês :)



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Menos de um segundo depois eu estava em uma rua deserta. Não poderia me transportar diretamente para o restaurante, nem para nenhum lugar muito perto de lá porque o bairro era muito movimentado e alguém poderia ver. Então, todas as vezes em que eu ia visitar Cezar, eu me transportava para aquela rua que estava sempre deserta e escura devido à grande quantidade de árvores que faziam sombras por toda sua extensão.

Apesar de não estar nevando, fazia um frio intenso ali e eu me encolhi instintivamente, me arrependendo de não ter trazido o casaco. Normalmente eu andaria até o restaurante, mas dessa vez estava chovendo, então achei melhor pegar um táxi. Projetei um guarda-chuva vermelho em minha mão, me certificando primeiro de que não havia mesmo ninguém por perto e me encaminhei para a praça que ficava a apenas alguns metros dali. Havia dois táxis parados e eu entrei no primeiro.

— A senhorita é muito corajosa de andar por essas bandas sozinha, moça — o taxista comentou depois que eu dei o endereço do meu destino. Era um homem pequeno e careca com a pele muito bronzeada e um sorriso simpático no rosto.

— Por que diz isso?

— Essa área é muito perigosa, ainda mais para uma moça tão bonita e indefesa.

— Obrigada pelo “bonita”, mas não me considero indefesa. — Eu podia ser tudo, menos indefesa. E quanto ao “bonita”, bem, eu não me considerava linda, mas sabia que também não era feia.

Quando ainda era humana, sempre tivera muitos pretendentes, embora nunca me agradasse por nenhum. Minha aparência era comum com meus cabelos pretos e lisos que chegavam até a cintura. A única coisa que me tornava diferente era a cor dos meus olhos. Era de um tom de azul quase cinza, que se destacava na minha pele muito branca.

— Ora, e não é que ela é corajosa mesmo. — Ele riu enquanto ligava a seta e entrava na avenida movimentada. — Mas não acho que a senhorita teria alguma chance com os bandidos dessa região. Eles andam sempre em grupo e uma moça frágil e pequena como a senhorita seria uma presa fácil. Devia tomar mais cuidado. —

Eu ri com a ideia de humanos tentando me fazer algum mal. Sim, porque tudo que eles poderiam fazer era tentar. Isso realmente seria engraçado. Mas não podia deixar de ver a lógica do taxista. Ele só me via como uma jovem “pequena e frágil”, como ele mesmo dissera. Não sabia quem eu era, nem o que eu poderia fazer com esses bandidos.

— Bem, mas nada me aconteceu, certo? Vou tomar mais cuidado da próxima vez — falei com ironia que não foi notada por ele.

O táxi parou em frente ao restaurante e eu desci depois de pagar a corrida, abrindo o guarda-chuva imediatamente. A chuva aumentara e não queria me molhar já que daqui a pouco iria para um lugar onde estaria nevando. Não que eu fosse ficar doente ou morrer congelada, mas isso não me impedia de sentir frio.

A rua estava apinhada de pessoas. Algumas corriam para fugir da chuva e outras caminhavam tranquilamente debaixo de seus guarda-chuvas, todos carregados de sacolas cheias de presentes e artigos para o Natal que seria dali a uma semana.

Desviei com destreza das pessoas e entrei no restaurante enquanto fechava o guarda-chuva, que entreguei para um jovem que estava ao lado da porta guardando casacos e guarda-chuvas dos clientes. Me dirigi ao balcão onde havia uma jovem de cabelos ruivos e encaracolados, presos elegantemente em uma trança frouxa. Seu rosto era novo para mim, então só poderia ser a novata.

— Boa noite. Bem vinda ao Aquarius. A reserva está no nome de quem?

Não queria perder tempo, tampouco iria fazê-la passar por esse constrangimento novamente.

— Você deve ser Mariza. — Ela assentiu me olhando curiosa. — Alyssa — falei apontando para mim com um sorriso simpático no rosto.

Ela me olhou assustada e ficou vermelha como um pimentão. Levantou-se de um salto e se pôs a gaguejar enquanto seus olhos enchiam de lágrimas.

— Des-desculpe, senhorita. Vo-vou chamá-lo imediatamente — disse enquanto contornava o balcão e se afastava.

— Espere! — Ela parou no mesmo instante e me olhou alarmada. — Volte aqui.

Mariza parou na minha frente ainda com o mesmo olhar assustado e cheio de lágrimas. Me perguntava o que Cezar falara para ela se comportar daquela maneira.

— Po-pois não, senhorita?

— Nada de “senhorita”. Apenas Alyssa. — Dei o meu sorriso mais simpático e tranquilizador. — Quero pedir desculpas pela maneira como falei ao telefone. Reconheço que fui rude. Eu estava com a cabeça quente e acabei descontando em você. Me desculpe. — Toquei na sua mão para tentar acalmar os batimentos do seu coração, usando apenas um pouco de magia. E funcionou. O rubor diminuiu e ela parou de gaguejar.

— Claro. Sem problemas. — Ela riu sem jeito e se afastou em direção à cozinha.

Fiquei no mesmo lugar esperando por Cezar, enquanto olhava ao redor admirando o ambiente. Era tudo muito refinado, com mesas redondas cobertas com toalhas de linho branco e detalhes em vinho. As taças eram de cristal e os pratos de porcelana, e um arranjo floral de muito bom gosto decorava o centro de todas as mesas. Nas paredes pintadas de creme havia quadros com fotos em preto e branco dos pontos históricos da cidade.

Vi quando Cezar saiu da cozinha que ficava do outro lado do salão e veio em minha direção com um sorriso no rosto. No caminho ele cumprimentou diversos clientes, parando algumas vezes para falar algo mais.

Cezar tinha trinta e seis anos e um rosto muito simpático. Era careca por opção. Raspara os cabelos quando ganhara seu primeiro prêmio de melhor chef do país há sete anos e os mantinha assim até hoje.

Quando finalmente chegou onde eu estava, ele parou na minha frente e me cumprimentou com um aceno de cabeça. Eu ainda ria com isso. Cezar não gostava de me tocar. Ele sabia quem eu era e sabia como fazia tudo. Embora explicasse centenas de vezes que eu não matava qualquer um que me tocasse, ele ainda assim se recusava a fazer qualquer tipo de contato físico comigo. Isso desde o dia em que me vira em ação.

Cezar era um dos nossos contatos nesse mundo. Precisávamos de humanos para nos ajustar à cultura do local e para nos ajudar com a parte burocrática daqui. No nosso mundo não precisávamos de certidão de nascimento, carteira de motorista ou cartão de crédito, então esses contatos conseguiam toda essa documentação para quem quisesse viver entre os humanos. A escolha desses contatos não era aleatória. Era algo passado de geração para geração. No mundo todo havia apenas cinco contatos. Cezar era um deles. E antes foi seu pai.

Há cinco anos Cezar se tornara meu contato, depois da morte do pai em um descarrilamento de trem. Daniil foi o encarregado de explicar tudo sobre nós na ocasião e não preciso dizer que Cezar ficara muito alterado com tudo isso. Ele nunca fora muito religioso e custou a acreditar nas palavras do Anjo Mensageiro. Mas com toda a paciência, Daniil conseguiu acalmá-lo e fazê-lo enxergar a realidade. Depois disso os dois se tornaram amigos. E acabamos nos tornando amigos também, depois que Cezar superou seu medo por mim. Mas ainda assim não me tocava.

— Vem comigo — ele disse apontando para um ponto onde ficavam as mesas para duas pessoas. Lá teríamos mais privacidade.

Enquanto atravessávamos o salão, sentia as pessoas nos olhando curiosas. Não era comum Cezar ser visto fora da cozinha. Muito menos comum era ele receber alguém pessoalmente e ainda parar para comer junto com essa pessoa.

Evitando os olhares, sentei numa mesa no canto mais reservado possível. O restaurante estava completamente lotado, mas sempre havia uma mesa pronta para o caso de chegar algum cliente especial.

Cezar falou rapidamente com um garçom dando ordens para nos servir de imediato e se juntou a mim.

— Então, o que te traz aqui? — Era isso que gostava nele. Sem rodeios. E eu respondi do mesmo jeito.

— Daniil está desaparecido.

Cezar ficou me encarando como se esperasse que eu dissesse que era brincadeira, mas ele sabia bem que eu não brincaria com uma coisa dessas.

— Como? O que aconteceu?

— Não sabemos como. Só o que sabemos é que ele sumiu depois que encontrou comigo há algumas horas.

— Sumiu como? Nenhum anjo some assim do nada, não é? — Ele sussurrava para que ninguém ouvisse. — Digo, ele se transportou, não foi? Não foi andando nem nada.

Sentia o nervosismo na voz dele. Apesar de não saber todas as implicações do desaparecimento de um anjo, ele estava preocupado como o sumiço do seu amigo, antes de qualquer coisa.

— Alguém deve ter interferido quando ele se transportou. — Cezar ficou confuso e eu resolvi esclarecer a situação. — Quando nos transportamos de um mundo para outro, temos que passar em diversas dimensões. Por isso é tão cansativo ficar entre uma dimensão e outra o tempo todo. Esse foi um dos motivos que me fez escolher ficar aqui.

— Então... — ele falou, mas ainda estava um pouco confuso e esperou que eu continuasse.

— Ele deve ter sido capturado em uma dessas dimensões, mas não sabemos qual. E não é fácil descobrir. — Preferi não dizer que era praticamente impossível. Nem falei tampouco a respeito dos outros casos semelhantes. Não havia motivos para deixá-lo mais preocupado quando sabia que ele não poderia ajudar em nada. — Já temos uma equipe responsável por procurá-lo, mas por enquanto não há pistas. —

Cezar ia perguntar algo, mas o garçom chegou com nossos pratos e ele esperou enquanto éramos servidos.

— O que é isso? — perguntei, depois que o garçom se retirou, olhando para o prato com algo verde dentro.

— Salada de agrião e damasco.

— Vou gostar?

Cezar riu enquanto espetava um garfo na sua salada.

— Prove e me diga.

Fiz o que ele disse depois que ele temperou as folhas do meu prato com dois molhos que eu não reconheci. Levei a salada à boca um tanto desconfiada, mas me surpreendi com o paladar. Era simplesmente delicioso, como tudo que ele cozinhava.

— Então... — Decidi sair do assunto sobre o sumiço de Daniil antes que ele fizesse perguntas que eu não queria responder. — Soube que ganhou mais uma vez o prêmio de melhor chef. Parabéns!

— Obrigado. — Cezar não era do tipo vaidoso e ficou vermelho com o elogio.

— Esse já é o sétimo ano seguido, certo?

— É.

— Ainda tem espaço para mais prêmios na sua parede? — perguntei sarcasticamente enquanto espetava mais um pouco de salada com o garfo e levava à boca.

— Ok. Pode parar. — Ele ficou ainda mais vermelho e eu ri.

Continuamos a conversar sobre assuntos banais enquanto comíamos. Depois da salada veio o prato principal, penne com paio. A sobremesa veio logo a seguir: mousse de pêssego. Cada prato era melhor que o outro, e a companhia também ajudava. Era muito fácil conversar com Cezar. Com ele eu não precisava medir as palavras e o tempo passava rápido. Tão rápido que quando dei por mim faltava apenas quinze minutos para a próxima missão.

— Tenho que ir.

— Trabalhar? — ele perguntou displicentemente, mas eu sabia que aquela displicência era fingimento. Ele acreditava em tudo e confiava em mim, mas não gostava de saber quando eu ia tirar a vida de alguém.

— Sim. Desculpe por comer e sair, mas ainda tenho que passar em casa.

— Tudo bem.

Me levantei, ele fez o mesmo e me acompanhou até a entrada. Vi Mariza em pé próxima à cozinha e me lembrei de algo.

— Cezar, o que você disse para ela? — perguntei apontando com a cabeça para indicar sobre quem eu falava.

— Ah, nada demais — ele falou dando de ombros, mas pareceu um tanto constrangido. Eu o encarei com uma sobrancelha erguida e ele logo resolveu falar. — Eu disse que você fazia parte de uma organização muito antiga e poderosa, e que deveria ser posta à frente de tudo.

— Você disse que eu era da máfia? — perguntei, divida entre a raiva e o riso.

— Não. Claro que não. Mas eu acho que ela interpretou assim.

— Qualquer um interpretaria assim. Não me surpreende o fato dela ter ficado tão nervosa quando cheguei.

— Desculpe por isso, mas na hora não me veio nada à cabeça.

Nós dois rimos e eu olhei para o relógio em meu pulso, vendo que ia acabar me atrasando.

— Agora eu realmente preciso ir.

— Tudo bem. Você me mantém informado?

— Claro. Qualquer novidade eu te aviso. — Peguei o guarda-chuva que o rapaz me estendia. — Estava tudo delicioso, Cezar. Acho que vou ficar uns três dias sem comer nada depois dessa.

Ele riu e nos despedimos com mais um aceno de cabeça.

Tinha parado de chover, então fui andando em busca de um lugar que pudesse me transportar sem ser vista. Achei um beco a alguns metros do restaurante e entrei nele depois de olhar para o céu cinza que indicava que a neve logo cairia. Me certifiquei de que ninguém olhava para aquele ponto vazio e escuro, e só então me transportei.

Cheguei em casa, indo direto para o meu quarto. Deixei a bolsa em cima da cama, já que não ia precisar dela, e vesti o casaco para sair novamente.

Dessa vez eu senti o local antes mesmo de abrir os olhos. O frio me atingiu em cheio no rosto, despenteando meus cabelos. Estava na cobertura de um prédio muito alto, que tinha sido o melhor lugar que encontrara para me transportar, próximo ao destino final. Me aproximei do parapeito e olhei para baixo, observando a movimentação da cidade. Uma multidão semelhante à da rua do restaurante passava pela rua logo abaixo e eu sabia que isso não iria ser fácil. Como poderia ficar invisível em um local lotado como aquele? Não poderia correr o risco de esbarrar em ninguém.

Conjurei uma luva branca que não tinha julgado ser necessária, antes de prender o cabelo rapidamente. Entrei no prédio e desci pelo elevador. O melhor a fazer era ficar visível. Ninguém iria notar minha ação no meio de toda aquela gente.

Cheguei à rua e me dirigi rapidamente ao local. Ficava a apenas alguns metros dali, mas com todos aqueles humanos andando em várias direções, era difícil seguir em linha reta. Estava muito frio e eu friccionei as mãos uma na outra na tentativa de me aquecer. Virei a esquina ao lado de uma loja de joias e foi então que eu o vi. Ele estava parado na outra ponta do quarteirão esperando o sinal para atravessar a rua. Sabia que precisava me apressar. Empurrei delicadamente algumas pessoas e finalmente cheguei ao meu destino.

Retirei a luva da mão direita e me aproximei aos poucos esperando o momento certo. Só poderia agir quando tivesse certeza de que ninguém nos observava. Ele estava prestes a atravessar a rua quando finalmente achei a brecha e segurei sua mão esquerda na minha, me concentrando de imediato no meu dever. Já sentia seu coração diminuindo os batimentos quando ele me olhou nos olhos com os seus verdes e curiosos.

Por um momento perdi a concentração ao mergulhar naquele olhar profundo. Seu olhar transmitia tanta ternura e amor que me deixou paralisada. Me senti embriagada e tonta, e meus joelhos fracos como se fossem ceder sob o meu peso. No mesmo instante uma corrente elétrica percorreu todo meu corpo, partindo da mão que ainda segurava a dele.

Ficamos ali parados nos olhando por não sei quanto tempo – que para mim pareceram horas, mas que não deveria ter sido mais que alguns segundos –,até que ouvi ao longe o som de uma buzina que me despertou do transe.

O que eu estava fazendo? Precisava cumprir a minha missão. Precisava tirar a vida daquele homem. Mas algo naquele olhar, ou nele por completo, me tirou toda a energia. Não conseguia fazer aquilo. Não podia retirar a vida dele.

A quem estava tentando enganar? Eu não queria matá-lo. E não iria fazer isso.

Estava descumprindo uma das regras mais importantes deixando de fazer o meu trabalho, mas eu simplesmente não conseguia completar a missão. Desviei o olhar com muito esforço e olhei para nossas mãos ainda unidas. O que era aquilo que estava acontecendo? Eu estava ficando louca? Será que anjos poderiam enlouquecer?

Precisava sair dali o mais rápido possível antes que acabasse fazendo uma loucura.

Reunindo todas as minhas forças, recuei e lentamente me afastei dele. Aproveitei um grupo de pessoas que ia passando por nós e me misturei à multidão. Podia ouvi-lo me chamar enquanto me afastava a passos rápidos, me obrigando a ir embora.

Corri por vários quarteirões até achar um local para me transportar de volta para casa e já estava ofegante quando finalmente achei uma rua deserta. Me escondi atrás de uma árvore, certificando de que ninguém me observava, e fui para casa.

Meu coração batia tão rápido que era como se quisesse sair pela boca. Minhas mãos tremiam enquanto eu tirava as luvas e me esforçava para abrir os botões do casaco. Joguei tudo de qualquer jeito no chão e me atirei na cama.

Por Deus, o que eu fiz? O que aconteceu comigo? Por que eu não consegui tirar aquela vida? Fazia isso há tanto tempo. Como pude falhar dessa vez?

Todas essas perguntas se repetiam a cada instante na minha mente e eu sabia que só podia estar enlouquecendo. Não havia outra explicação. Mas por que ele? O que ele tinha de diferente de todos os outros humanos? Era como se eu sentisse que não deveria matá-lo. Que havia alternativas.

Ainda podia ver seu rosto com clareza como se ele estivesse na minha frente. Seus olhos verdes, brilhantes como esmeraldas, me encarando através dos cílios longos e quase infantis. Seu toque ainda queimava minha mão como se estivesse em brasas. Um arrepio percorreu a minha espinha enquanto lembrava a sensação da sua mão na minha.

Não muito tempo depois, senti um arrepio diferente, seguido de uma voz em minha mente. Estava sendo intimada. Meus Superiores sem dúvida já tinham descoberto o que fiz e agora eu teria que enfrentar as consequências do meu ato. Levantei calmamente enquanto arrumava os cabelos emaranhados, troquei as botas por uma sapatilha mais confortável e me transportei.

Quando abri os olhos estava em frente a uma porta branca de madeira muito antiga. Ao lado da porta havia uma mulher sentada atrás de uma escrivaninha.

— Eles estão lhe esperando — ela disse simplesmente me indicando para entrar.

Não me importei em bater. Eles já sabiam que eu estava ali.

Entrei e vi que todas as cadeiras da grande mesa oval estavam ocupadas. Todos os Superiores estavam ali preparados para me ouvir e, principalmente, para me punir. Respirei fundo e olhei diretamente para o homem que estava sentado à ponta da mesa do lado oposto. Ele acenou para que me aproximasse e eu o fiz evitando olhar para qualquer um. Só precisava falar com Troni. A opinião dos outros não me importava. O que mais me doía era ter decepcionado o meu grande mentor pela primeira vez, depois de tanto tempo.

— Pensou que não iríamos descobrir o fez? Achou que poderia se esconder? — Ouvi a voz irritante do homem sentado a três cadeiras da de Troni, mas continuei olhando para o meu mentor quando respondi.

— Não tenho motivos para me esconder. Não vim imediatamente porque precisava pensar. — Minha voz era firme e alta o suficiente para que todos pudessem ouvir.

— Você será punida por quebrar a regr–

— Já chega, Seider! — A ordem partiu de Troni e foi o suficiente para calá-lo e evitar que qualquer outro falasse mais alguma coisa.

Troni olhou para mim com se tentasse entender o que acontecera. Antes que ele falasse algo, me adiantei.

— Sei que falhei no meu dever, mas não me arrependo do que fiz. — E, por mais que aquilo soasse insano, não me arrependia mesmo. Seider fez menção de que iria falar novamente, mas eu o interrompi, ainda olhando apenas para Troni. — Algo em mim me impediu de retirar a vida daquele humano. Eu simplesmente não consegui matá-lo. E sinto que fiz a coisa certa.

Ele me olhava curioso e eu podia ver pela minha visão periférica que todos os outros se mexiam inquietos em suas cadeiras, mas não falaram nada.

— Se você sente que fez a coisa certa, então porque está se explicando?

— Porque preciso questionar.

— Questionar? — ele perguntou, agora visivelmente curioso, mudando de posição na cadeira para me olhar melhor.

— O motivo.

— Eu acho que não estou entendendo o que você quer, Alyssa. — Troni era um dos poucos desse mundo com quem eu ainda mantinha algum contato desde que fui morar no mundo dos humanos. Ele era meu mentor e meu amigo, e agora estava mais confuso do que curioso.

— Eu quero saber o motivo da morte dele.

— Isso não é da sua conta — ele falou num tom firme, mas sem ser rude.

— Mas eu preciso saber.

Troni levantou e olhou diretamente nos meus olhos, sua expressão muito séria. Ele estava adotando a posição de líder agora.

— Você já recebe as respostas quando a missão se refere às crianças. Qual é a sua justificativa agora?

— Eu não sei. — Passei as mãos nos cabelos, frustrada por não ter essa resposta. — Só o que sei é que sinto que ele não deve morrer.

— Isso não cabe a você decidir.

— Por favor, Troni, me diga o motivo. Talvez assim eu compreenda. — Eu estava nervosa e me sentia ainda mais aflita com a situação.

— Eu sinto muito, mas não posso. — Ele me olhou como se pedisse desculpas por tudo aquilo, depois retornou à sua postura de líder e me encarou sério. — Você vai concluir a sua missão?

— Eu não posso — respondi num fio de voz.

— Então ela será passada para outro. E você receberá a punição pelos seus atos. Volte para a sua casa e não saia de lá. Você receberá a visita de um Mensageiro lhe informando qual será a punição.

— Certo. Alguma notícia sobre Daniil? — perguntei mudando de assunto repentinamente, apenas porque sabia que não adiantaria continuar falando sobre algo que não tinha como mudar.

— Ainda não. — Troni voltou a sentar à mesa e suspirou. — Estamos fazendo de tudo para localizá-lo, mas não temos nenhuma pista do que pode ter acontecido. — Ele suspirou novamente. Sabia o quanto aquilo o deixava abalado. Tanto quanto eu, ele se lembrava dos outros casos que permaneciam sem solução. — Agora vá. Precisamos discutir sobre a sua sentença.

Não esperei segunda ordem. Não queria dar oportunidade para Seider fazer algum comentário sobre a sua sugestão de punição.

Fui para casa e fiquei esperando o Anjo Mensageiro. Sentei no topo da escadaria, passei os braços em volta dos joelhos e apoiei meu queixo neles. Alguns minutos depois ele apareceu ao pé das escadas, ergueu e me lançou um olhar, como se pedisse desculpas. Meny não falou nada, apenas enviando pelo ar um pedaço de papel que eu sabia que continha a sentença. Observei o papel se aproximando, embora já soubesse o que teria nele. Vi a esfera negra que estava nas mãos de Meny. Ainda assim peguei o papel nas mãos e vi a mensagem que era destinada apenas a mim.

“Por decisão unânime do Superiores dos Anjos da Morte, você, Alyssa Feehan, será, a partir deste momento, um Anjo da Morte Nível 3. O que significa que você ficará encarregada de retirar vidas em situações de confrontos em área civil, ou acidentes.

Você deverá manter a esfera que lhe será entregue sempre junto ao seu corpo. O aumento da temperatura da mesma significa que há uma nova missão. Quando isso acontecer você deverá se encaminhar para o local que será indicado, no horário pré-estabelecido.

Para retirar as vidas, você deverá apenas pronunciar seus nomes completos com clareza.”

Bem, desci dois níveis. Poderia ter sido pior, pensei. Levantei lentamente e desci as escadas para pegar a esfera das mãos de Meny. Mais uma vez ele não falou nada, e apenas me encarou com os olhos tristes antes de ir embora.

Soltei um longo suspiro e subi novamente as escadas em direção ao meu quarto. No caminho executei uma magia que faria com que a esfera — que era um pouco maior que uma bola de tênis e era lisa como se feita de vidro, embora fosse inquebrável — estivesse sempre comigo, dentro de mim. Assim não precisaria ficar carregando-a para cima e para baixo. Sabia exatamente o porque de essa ter sido minha punição. Diferente das vidas que eu estava acostumada a tirar, essas já estavam destinadas a acontecer, independente de haver ou não um anjo para agir. A diferença era que essas pessoas, sem a ação de um de nós, ficariam em estado vegetativo até terem suas almas retiradas.


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Notas finais do capítulo

E aí, o que estão achando?
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