Doce Toque escrita por LeleMarques


Capítulo 3
Capítulo 3




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Me atirei na cama e fiquei olhando para o teto pensando em tudo que acontecera nas últimas horas. Primeiro aquela garotinha de tranças que não me saía da cabeça. Depois o sumiço de Daniil. Então esse humano chegou para complicar tudo de uma vez. Evitei sua morte e fui punida por isso.

E agora outra pessoa terminaria o serviço.

Mas o que eu estava pensando?! De que adiantara tudo que eu fiz? Acabara de ser punida por evitar a morte de um humano, não cumprindo meu dever. E agora deixaria outro completar minha missão? Eu acreditava que ele deveria continuar vivo. E embora não conseguisse explicar, eu sabia que estava certa.

Sem pensar duas vezes, tomei uma decisão que sabia que me traria mais problemas do que eu já tinha. Eu iria salvá-lo, não importando a punição que viria a seguir.

Fechei os olhos e me concentrei para localizar algum anjo Nível 5 em ação. Apesar de ter sido rebaixada, continuava com os mesmos poderes que me permitiam localizar meus iguais. Depois de alguns segundos consegui identificar dois. Um deles era Jason, mas ele estava em algum ponto da Itália. O humano deveria estar em um ponto próximo ao local que o encontrei há algumas horas. Só podia ser o outro anjo. Ele estava a pouco mais de cem quilômetros do local, mas ainda no mesmo país, Estados Unidos. E era para lá que eu iria.

Peguei o casaco e me transportei imediatamente para lá. No mesmo instante eu me arrependi de ter trocado as botas pelas sapatilhas. A noite estava muito mais fria do que eu imaginei. Apesar de não nevar mais, a calçada estava coberta de gelo e as árvores ao redor tinham uma fina camada branca que dava um ar quase mágico à rua. Estava em uma rua residencial, deserta e pouco iluminada com sombras por toda parte.

Não foi difícil localizar os dois a alguns metros, do outro lado da rua. O humano estava de costas para mim, andando em direção ao anjo, que estava oculto pelas sombras de uma árvore. Continuei invisível tanto para o humano quanto para Medin. Não sabia se o outro anjo já havia sido informado do que acontecera e não quis arriscar que ele apressasse tudo.

Atravessei a rua e me aproximei no mesmo instante que Medin saiu das sombras. O humano se assustou com a aparição repentina do outro e parou de andar.

— Desculpe — falou Medin num tom calmo. — Não quis assustá-lo.

— Sem problemas — ele respondeu no mesmo tom, embora seu coração estivesse acelerado. Medo. Ele provavelmente estava pensando que seria assaltado.

— Estava à sua espera.

— Quem é você? — perguntou, sua voz começando a transparecer o medo que sentia.

Senti Medin reunir a magia para por um fim àquilo. Ele riu para o humano e eu senti seu coração diminuir o ritmo. Eu estava a apenas dois metros às costas do humano e resolvi agir.

— Medin — chamei, ficando visível.

Minha voz e minha aparição foram suficientes para desconcentrar a ação dele. O humano virou-se na minha direção.

— Você! — ele exclamou surpreso.

Naquele instante, fiz o possível para evitar olhar nos seus olhos novamente. Precisava tirá-lo dali, mas não sabia como. Encarei Medin enquanto me aproximava e passava à frente do humano, ficando entre ele e o anjo.

— Olá.

— Olá — Medin cumprimentou de volta, me olhando confuso. — O que faz aqui? Pensei que estava fora desse serviço.

Certo. Ele sabia, mas ao que parecia, não estava informado dos detalhes. E não seria eu a fazê-lo, então continuei em silêncio. Nos encaramos por mais alguns segundos e eu podia ouvir os batimentos do coração do humano logo atrás de mim. Batia rápido, mas não era mais só pelo medo. Ele também estava ansioso, esperando o que viria a seguir.

Medin deu de ombros.

— Tudo bem então. Vá em frente! Você o viu primeiro.

Se eu ainda tinha dúvidas, agora estava confirmado. Medin não sabia que eu havia sido punida por não cumprir o meu dever. Continuei parada e em silêncio, apenas encarando-o sem saber o que fazer. Não podia simplesmente pedir para ele ir embora. Sabia que ele não o faria. Mas também não podia deixá-lo agir. Tinha que pensar em algo rápido.

— E então? — Medin interrompeu meus pensamentos. — Faça logo isso. Tenho outra missão daqui a alguns minutos — falou passando as mãos nos cabelos loiros e lisos. Ao ver que eu não me mexia, ele deu um passo à frente. — Se não vai fazer, saia da frente e me deixe terminar o serviço.

Recuei me posicionando à frente do humano numa nítida posição de proteção.

— O que está fazendo? Saia da frente!

— Não.

Ele me encarou num misto de confusão e incredulidade. Então, como se uma máscara caísse do seu rosto, ele pareceu compreender tudo.

— Você enlouqueceu — ele sussurrou, chocado demais para falar normalmente.

— Talvez.

— Será punida por isso.

— Já fui. — Mantinha minha voz o mais calma possível, enquanto tentava pensar num meio de tirá-lo daquele lugar.

— Saia da frente!

— Não.

Medin respirou fundo e novamente reuniu a magia para retirar a vida do humano, mas eu fui mais rápida e formei uma barreira de proteção em volta dele. Quando viu que sua magia não estava surtindo efeito, ele me encarou incrédulo e começou a esbravejar.

— Pare com isso agora mesmo! Eu vou completar a missão, quer você queira ou não.

— Eu não vou permitir — devolvi, mantendo minha voz calma.

O humano continuava calado, talvez confuso demais para formular alguma sentença, e eu agradecia por isso.

— Saia da minha frente! Eu não serei punido por sua causa. Saia! — Medin gritou.

— Não!

Senti sua magia aumentando de intensidade, tentando passar pela minha barreira, e eu também aumentei a minha magia. Mas usar barreiras de proteção era muito mais desgastante, e em alguns segundos eu comecei a senti-la enfraquecendo. Não demorou para que eu ouvisse o coração do humano diminuir os batimentos de novo. Precisava fazer algo, e rápido. Infelizmente, só me veio uma coisa à mente naquele momento. E eu não hesitei em fazê-la.

Ergui minha mão direita em direção ao anjo e lancei uma magia de ataque contra ele, fazendo-o cair inconsciente na calçada.

Nenhum anjo nunca atacara outro antes, e eu não sabia quais seriam as consequências do meu ato. Mas o humano estava a salvo agora. Só isso importava.

— Mas que diabos...?! — Ouvi a blasfêmia vinda do humano e me voltei para finalmente encará-lo. — O que está acontecendo aqui? Quem é você? — Ele me olhava como se não conseguisse acreditar no que seus olhos viam.

Foi então que senti a presença de outro anjo se aproximando. Ainda não dava para saber quem era, mas eu não ia perder tempo tentando identificá-lo.

— Venha comigo. — Estendi a mão esquerda na sua direção, mas ele apenas continuou me olhando confuso. — Por favor, confie em mim.

— Por que eu deveria?

— Caso não tenha percebido, eu acabei de te salvar.

— Foi isso mesmo que você fez?

Abaixei a mão e suspirei. Por que ele estava dificultando tudo logo agora?

— Por favor, vem comigo — pedi suplicante, sentindo o anjo cada vez mais perto. — Eu não tenho tempo para explicar. Prometo que responderei o que você quiser, assim que você estiver a salvo. Por favor.

Estendi minha mão novamente e dessa vez ele a pegou. Fui atingida mais uma vez por uma corrente elétrica que percorreu todo meu corpo, me aquecendo inteira. Minha vontade era ficar ali parada, tentando entender o que era aquilo, mas sabia que não podia. Puxei-o em direção a Medin e passamos por ele, que continuava desacordado.

Viramos a esquina e nos deparamos com uma rua ainda mais escura. Um pouco mais adiante, eu tive que parar abruptamente, fazendo com que o humano esbarrasse em mim. Me desequilibrei, mas ele me segurou pela cintura, evitando que eu caísse. Novamente senti como se meus ossos se transformassem em esponja. Meu coração disparou e meu corpo aqueceu de tal forma que chegou a doer. Como se já não bastasse, o ar abandonou meus pulmões me deixando ofegante.

— O que houve? — ele perguntou, e pude perceber que também tinha dificuldades para respirar. Sua voz estava rouca e ele teve que pigarrear para que soasse mais clara. — Por que parou?

O que eu tinha na cabeça? Eu parei porque o anjo iria aparecer ali a qualquer momento e agora estava parada com meu corpo colado ao de um humano, sentindo coisas que eu não entendia. Me afastei rapidamente, deixando um espaço de um metro entre nós dois. No mesmo instante o anjo se materializou na nossa frente.

Não! Ele não!

— Jason! — falei num fio de voz. Não podia acreditar que eles tinham mandado meu melhor amigo para me impedir. Não podia fazer nada contra ele. Ou podia?

— Sinto muito — ele disse no mesmo tom, e eu senti o que ele estava fazendo antes mesmo de ouvir o coração do humano enfraquecendo.

— Não! — gritei e ergui minha mão direita para atacá-lo, mas Jason parou antes que eu precisasse concluir a magia.

Jason recuou um passo, visivelmente assustado com minha atitude.

— Você teria coragem de atacar a mim também?

Eu vacilei. Jason era meu melhor amigo desde sempre e eu não seria capaz de machucá-lo. Insegura, baixei minha mão. Mas antes que pudesse completar o movimento, o humano pegou a minha outra mão e a apertou levemente como se tentasse me passar sua força. Isso foi o suficiente. Afinal, eu acreditava no que estava fazendo, certo? E Jason não iria morrer com o meu ataque. Diferente daquele humano que me deixava tão confusa.

— Sim! — respondi firme, tornando a erguer minha mão em sua direção.

Era como se Jason esperasse por essa resposta, porque na mesma hora ele abandonou sua postura de Anjo da Morte e relaxou os ombros, enquanto passava as mãos nos cabelos num gesto nervoso. Quem estava ali na minha frente agora era apenas meu melhor amigo. Me desvencilhei das mãos do humano e corri em direção a Jason que me recebeu me abraçando apertado.

— Por favor, me ajude — eu implorei num tom baixo.

— O que deu em você?! — ele sussurrava, ao mesmo tempo em que acariciava meus cabelos delicadamente. — Seider está furioso!

— Não me importo com ele. — Me afastei para encará-lo. — Como está Troni?

— Não dá tempo para falar sobre isso agora. Você precisa correr.

— Eu não sei o que fazer! — Minha voz transparecia o desespero que me corroía internamente. — Preciso de ajuda.

Jason pensou um pouco buscando uma solução e olhou para o humano. Fiz o mesmo vendo que ele continuava no mesmo lugar nos olhando curioso.

— Tudo isso por causa dele? — Não sabia o que responder, então apenas dei de ombros. Jason suspirou. — Leve-o para Cezar. Faça-o aceitar a presença de vocês. Você conhece as regras.

— Sim. — Como não havia pensado nisso antes? Era tão simples. — Mas isso me dará apenas algumas horas.

— Será o suficiente. Você precisa descansar. Então inverta a magia.

— Inverter a magia? — perguntei franzindo o cenho, sem entender dessa vez.

Nós dois sentimos uma aproximação. Várias. No mínimo três anjos estavam chegando.

— Vá. Rápido. — Jason me empurrou de volta na direção do humano.

Corri para pegar sua mão novamente, já pronta para me transportar.

— Espere! — Jason chamou no último instante. — Será que você poderia... — Ele apontou para o próprio corpo. — Não quero ficar como cúmplice.

Ele queria que eu o deixasse desacordado. Encarei-o franzindo as sobrancelhas e mordendo o lábio inferior, dividida entre a opção de machucá-lo ou de metê-lo em uma encrenca por minha causa.

— Vai logo. Eu aguento — ele disse num meio sorriso.

Bem, ele estava pedindo, certo?

— Sinto muito — sussurrei e ergui minha mão novamente em sua direção. Executei a magia, fazendo com que ele caísse desacordado, assim como acontecera com Medin.

Esperava que ele estivesse bem, mas não tinha tempo para verificar. Olhei para o humano, enquanto apertava sua mão direita na minha esquerda.

— Feche os olhos.

Dessa vez ele não questionou e fez o que eu pedi. Calculei rapidamente o fuso horário. Concentrei-me em localizar o melhor ponto para me transportar para perto do restaurante e fui para lá.

Senti seu corpo amolecer e ele teria caído se eu não o segurasse pelos cotovelos.

— Você está bem? — perguntei olhando nos seus olhos verdes que agora estavam levemente sem foco.

— Acho que sim — ele respondeu um pouco desnorteado.

Estávamos a menos de cinquenta metros do restaurante, em um beco escuro e sujo, com paredes pichadas e lixo transbordando da caçamba ao nosso lado. Eu me afastei quando tive certeza de que ele poderia se manter em pé sozinho e fiquei observando-o. Ele estava com as mãos nos joelhos e a cabeça baixa, respirando com dificuldade. Essa sensação de tontura e náusea era comum quando nos transportávamos, mas eu já fazia isso há tanto tempo que nem sentia mais.

— Não vou fazer nenhuma pergunta sobre isso agora — ele continuou falando depois de respirar fundo. — Só me dê um segundo para recuperar o equilíbrio.

Ele se ergueu com cuidado, respirando fundo mais uma vez. Com a pouca luz que vinha da rua às minhas costas, eu podia ver gotículas de suor em sua testa, e seu rosto estava pálido.

— Pronto? — perguntei estendendo minha mão, que ele olhou desconfiado.

— Não vamos fazer isso de novo, vamos?

— Não. Vamos andando. — Precisava tocá-lo para impedir que alguém o localizasse, mas o estranho era que eu queria fazer aquilo. Apesar do contato com a sua pele me deixar confusa, era algo que eu estava começando a apreciar.

Experimentei mais uma vez a sensação de leveza quando ele me tocou. Nossos olhares se encontraram e, estranhamente, tive a certeza de que ele sentia o mesmo que eu.

Que momento para me perder em sensações confusas. Justo quando precisava correr. Apertei sua mão na minha e andei apressada em direção à rua que, apesar de já passar das dez horas da noite, estava bastante movimentada. Mas eu não poderia esperar outra coisa da capital do país.

Chegamos à frente do restaurante, passando por uma fila de pessoas na calçada, que se vestiam com elegância, esperando para jantar em um dos restaurantes mais badalados do país. Arrastei o humano para dentro, ignorando os comentários que alguns fizeram à nossa passagem abrupta. Andei entre as pessoas que esperavam para serem atendidos por Mariza, que verificava a reserva de um casal no computador. Fui direto para onde ela estava, não me importando com a cara que a mulher me olhou por passar à sua frente.

— Onde está Cezar? — perguntei sem rodeios.

Mariza virou o rosto levemente na minha direção, e quando viu de quem se tratava, deu um salto da cadeira, da mesma forma que fizera algumas horas atrás.

— O-olá — gaguejou. Pelo visto Cezar não desfizera o engano sobre eu pertencer a alguma espécie de grupo mafioso. — E-ele está na cozinha. Vou chamá-lo.

— Não! — interrompi antes mesmo de ela sair de seu lugar. Sem mais conversa, andei para o outro lado do salão em direção à cozinha, ainda arrastando o humano comigo. As pessoas sentadas à mesa nos encaravam sem pudor enquanto passávamos por elas. Bati com os nós dos dedos no vidro da porta que dividia os ambientes, na tentativa de chamar a atenção de alguém. Um ajudante, que já me conhecia, me viu e foi imediatamente chamar Cezar, que veio com panela e tudo à porta. — Preciso da sua ajuda.

Ele olhou para o humano, mas não fez perguntas. Ele sabia que aquele não era o lugar.

— Vá para o meu escritório. Chego lá em dois minutos. — E entrou na cozinha novamente.

Fiz o que ele disse e andei até uma sala aos fundos do restaurante que dava para as escadas que levavam ao segundo andar, lugar onde ficava a administração. Subi e fui direto para a sala de Cezar que ficava no final do corredor. Entrei sem bater, dando de cara com duas mulheres lá dentro. Não sabia seus nomes, apenas que trabalhavam para Cezar.

— Saiam! — ordenei e fui atendida de imediato.

Era engraçado o fato de essas pessoas terem medo de mim mesmo sem saber quem eu era. Talvez isso se devesse ao fato de pensarem que eu era de algum tipo de máfia. Mas como será que eles se comportariam se descobrissem que eu poderia tirar-lhes a vida sem mexer um fio de cabelo sequer?

Sentei no sofá próximo à janela e apoiei rosto nas mãos, a exaustão finalmente me atingindo. Essa tinha sido a primeira vez que eu usei a magia de ataque para valer, sem contar os treinamentos. E o fiz duas vezes seguidas em uma única noite. Combinado com a magia de proteção, que por si só já era bastante desgastante, foi suficiente para acabar com a minha energia. Eu precisava descansar para dar continuidade ao plano.

Finalmente eu compreendia o que Jason havia dito. — Reverta a magia”. Tudo o que eu precisava fazer para manter esse humano a salvo era inverter a magia que protegia a minha casa, de forma a bloquear os meus iguais. Eu sabia que estaria desobedecendo outra regra, mas de todas que eu já havia quebrado, essa seria a menor. Mas no momento eu não estava em condições físicas para fazer isso.

— Estamos a salvo agora? — A voz interrompeu meu devaneio e eu levantei o rosto para encará-lo. Ele estava apoiado na mesa de Cezar com os braços cruzados e me observava intensamente.

Apenas meneei a cabeça negativamente e voltei a apoiá-la nas mãos, soltando um pesado suspiro. Cezar entrou em seguida, ainda de avental e chapéu de chef. Ele trancou a porta e me olhou preocupado, sentando ao meu lado, mas tomando cuidado para não me tocar.

— Certo. Aqui estou. Do que você precisa? Documentos?

— Não. Não dessa vez — respondi me recostando pesadamente no encosto do sofá.

— O que aconteceu? — Sua voz estava tão preocupada quanto a sua expressão e eu percebi que a sua mão tinha se erguido involuntariamente em minha direção, mas ele voltou no meio do caminho, lembrando quem eu era.

— Resumindo — comecei, pensando no que poderia falar sem revelar tudo ao humano, — ele era o meu trabalho — completei apontando para o homem à nossa frente.

Cezar o encarou assustado.

— Mas ele está... — ele não conseguiu pronunciar a palavra ‘vivo’, como eu sabia que estava pensando.

— Eu sei.

— Por quê? Como? — Cezar olhava de mim para o humano sem conseguir acreditar.

— Não pude. — Ele me encarou incrédulo e ficou assim por um tempo, como se me analisasse, e então, para a minha surpresa, abriu um enorme sorriso e me abraçou.

Eu fiquei sem saber o que falar ou fazer, mas depois que a minha surpresa passou, o afastei com cuidado, empurrando-o levemente pelos ombros.

— O que foi isso? — perguntei num tom baixo.

— Nada — ele respondeu um pouco constrangido, mas sem se afastar das minhas mãos, que permaneciam nos seus ombros. — Eu só... Gostei de ver esse seu lado mais...

— O quê? — perguntei quando ele não continuou.

— Humano — ele completou num sussurro.

— Ah. — Esbocei um sorriso tímido, novamente sem encontrar as palavras, e retirei as minhas mãos dos seus ombros, cruzando os braços nervosamente.

Enquanto todos os outros anjos e Superiores me reprovavam pelo meu comportamento, vinha Cezar e me parabenizava por quebrar uma das regras mais importantes do nosso mundo.

— Desculpe — ele pediu olhando para baixo.

— Não. Tudo bem. É só que... — Dei de ombros sem saber exatamente o que falar.

— Então — ele pigarreou tentando fazer a situação ficar menos embaraçosa. — Do que você precisa?

— Certo. — Era para isso que eu estava ali. Respirei fundo para clarear as ideias. — Preciso de um lugar para ficar. Só por algumas horas.

— Claro. Sem problema. Pode ficar na minha casa.

Era exatamente disso que eu precisava. Essa aceitação plena de Cezar, meu contato, seria suficiente para lançar sobre nós uma magia que nos deixaria invisíveis aos sensores dos anjos.

— Obrigada.

— Mais alguma coisa? — perguntou.

— As chaves — eu falei, prendendo uma mecha dos cabelos atrás da orelha e fiquei em pé.

— Chaves? Mas você não vai...?

— Sim, mas eu preciso das chaves para completar a sua decisão. Faz parte da magia.

Cezar olhou para o humano — que nos observava com interesse e ainda mantinha sua palavra de não fazer perguntas. Então foi até a sua mesa e retirou a chave de uma das gavetas. Voltou para perto de mim e estendeu a mão até a minha.

— Vai ficar tudo bem — ele murmurou enquanto apertava a minha mão levemente, deixando a chave ali. — Você fez a coisa certa.

É, eu sabia que tinha feito a coisa certa. Não imaginava o motivo, mas eu sabia. Me restava agora fazer com que meus Superiores vissem isso também.

Me afastei devagar de Cezar e andei em direção ao humano.

— Vamos. — Estendi a minha mão para pegar a sua e saímos da sala juntos.

Eu não precisava mais tocá-lo para protegê-lo, graças à proteção de Cezar, mas eu queria. Não sabia por que, mas eu me sentia bem assim.

Descemos as escadas e logo estávamos na rua novamente. As calçadas continuavam apinhadas, apesar de ser bem tarde, e eu olhei ao redor tentando localizar um local para que pudéssemos nos transportar. Mas antes que desse dois passos na direção do beco escuro, senti a minha magia esvaindo quase completamente. Fazia tempo que não me sentia tão fraca e cheguei até a sentir náuseas. Minha cabeça começou a latejar de dor.

Quando parei de andar, fiz com que o humano parasse também e me encarasse confuso.

— Você se importa de irmos de táxi? — perguntei. Ainda tinha magia para ir até a casa de Cezar, mas não conseguiria levá-lo junto.

— Eu agradeceria se fôssemos de táxi — ele respondeu aparentando estar aliviado. — Ainda estou zonzo pela última vez. — Sem esperar por mim, se afastou até a beira da calçada e parou um táxi que passava. Ele abriu a porta traseira e a segurou assim, esperando que eu entrasse.

Não gostei muito de vê-lo tomando a iniciativa em algo como se fosse o dono da situação, mas entrei no veículo sem falar nada.

Depois que passei o endereço para o motorista, o silêncio se instalou ali dentro e eu me senti incomodada com isso. Não que eu fosse a pessoa mais sociável do mundo, mas ainda assim quis conversar com ele.

— Você não parece incomodado de estar aqui.

Ele me encarou rapidamente e voltou a olhar pela janela do carro.

— Confesso que estou curioso.

— Com o quê?

— Com tudo — ele falou, voltando a me encarar. — Mas acho que esse não é o melhor lugar para começar a fazer as perguntas — ele completou, olhando significativamente para o motorista.

— Definitivamente, não.

— Me responde apenas duas coisas?

— Depende.

— Isso é um sequestro?

Eu percebi o motorista se mexer desconfortável e lançar olhares apreensivos através do retrovisor.

— Você acha que é? — Ele apenas deu de ombros. — Você não se recusou a vir comigo.

— Não achei que tivesse opções. Ou tinha? — ele perguntou arqueando uma sobrancelha.

— Talvez.

— Se me recusasse a vir com você, o que você teria feito?

— Essa é uma boa pergunta. Eu não sei. Mas acho que...

— O quê? — ele insistiu quando fiquei em silêncio.

— Acho que teria te trazido de qualquer forma.

— Então eu acho que não tinha opções — ele falou, mas não parecia chateado com isso.

— Qual é a outra pergunta?

— Hum... É impressão minha — ele pensou um pouco antes de continuar, mais uma vez olhando através da janela, — ou estamos em Washington?

O motorista olhou rapidamente por sobre o ombro, mas logo voltou a atenção para a estrada. Eu tinha quase certeza que ele estava pensando se deveria avisar a polícia.

— Você está correto. Estamos em Washington. Mas não se preocupe. Assim que isso acabar, prometo que te levo para casa.

— Eu não estou preocupado. Posso não saber quem você é, mas sei que você salvou a minha vida. E sou grato por isso. Não tenho pressa de ir para casa.

Acho que esse final de conversa foi o suficiente para tirar qualquer tipo de ideia delatora da mente do motorista.

O carro parou em frente ao imponente edifício onde Cezar morava e, dessa vez, eu gostei quando o humano tomou a iniciativa e pagou a corrida. Na pressa de sair de casa para salvá-lo, eu tinha deixado a minha carteira com documentos e dinheiro.

Já estivera ali algumas vezes e Cezar deixara claro a todos os porteiros que eu poderia entrar sem autorização. Assim, passamos direto pelo hall em direção ao elevador, sem sermos detidos.

Nenhuma palavra foi dita dentro do elevador, e o mesmo aconteceu quando andávamos pelo longo corredor até a porta do apartamento 1002.

Eu ainda sentia náuseas e acho que isso se devia ao fato da minha cabeça estar doendo tanto. Cada passo era um martírio.

Entramos no ambiente iluminado apenas pelas luzes da cidade que atravessavam as enormes janelas de vidro, e fechei a porta, trancando-a em seguida. Pude sentir a magia selando o local com a proteção concedida pela aceitação de Cezar e suspirei aliviada. Acendi as luzes e percebi que o humano olhava ao redor, analisando o apartamento espaçoso e bem decorado.

— Está com fome? — perguntei sem me virar em sua direção, enquanto tirava o casaco e o pendurava em um cabide próximo à porta. — Sede? Quer ir ao banheiro?

Eu poderia ainda não ter todas as necessidades humanas com a mesma frequência, mas já tinha sido humana uma vez. Fazia tempo, mas lembrava algumas coisas.

Seu riso baixo interrompeu meus pensamentos. Me voltei, confusa com o que poderia tê-lo feito rir.

— Eu estou bem — ele respondeu ainda sorrindo.

— Qual o motivo do riso? — perguntei séria e com o cenho franzido, e ele parou de rir no mesmo instante.

— Desculpe. É que você falou igual à minha mãe. Ela faz essas mesmas perguntas quando vou visitá-la.

— Ah.

Não sabia se tinha gostado de saber que ele tinha mãe. Quer dizer, é claro que eu sabia que ele tinha mãe, mas era a primeira vez que ouvia algo pessoal a respeito dele, e não costumava conversar com as minhas vítimas. Tudo bem que eu não iria mais matá-lo, mas ainda assim era estranho.

— Se você sentir fome, a cozinha é à esquerda. Fique à vontade.

— Você vai sair? — ele perguntou, tirando o casaco também e o pendurou ao lado do meu.

— Não — respondi simplesmente, andando pela sala até o sofá branco e espaçoso.

Apesar do apartamento de Cezar ser muito bem decorado, era notável a impessoalidade dos objetos. Um típico apartamento de solteiro sem qualquer toque feminino. E eu me sentia muito culpada por isso. Não pelo apartamento em si, mas pelo fato de Cezar não ter ninguém para compartilhar a vida.

Desde que descobrira que ser o meu contato era uma espécie de herança da sua família, ele se recusara a dar continuidade a isso. Por mais que ele se desse bem com muitos de nós, Cezar dizia que não queria o mesmo para um filho dele. Para ele, ser o contato de um Anjo da Morte era o mesmo que ser cúmplice de assassinato.

— O banheiro fica no final do corredor à direita — continuei, apontando para o local, enquanto tirava os sapatos e deitava no sofá. — Por favor, não faça barulho — pedi já de olhos fechados.

— Vai dormir? — ele perguntou de algum ponto da sala.

— É o que parece — respondi sem me dar ao trabalho de encará-lo.

— Simples assim? Depois de tudo que aconteceu hoje, você vai dormir?

Respirei fundo e abri os olhos, voltando o rosto na sua direção. Ele estava parado ao lado do bar, de braços cruzados e expressão altiva.

— Eu gastei minhas energias ao te proteger. Preciso descansar.

— Você está bem? — ele perguntou, a altivez imediatamente desaparecendo do seu semblante, sendo substituída por preocupação genuína.

— Sim. Apenas um pouco fraca. Nada que duas horas de descanso não resolva.

— Você quer água ou alguma coisa para–

— Eu só quero que você não faça barulho — eu o interrompi, voltando a fechar os olhos.

Ele não falou mais nada e eu apenas o ouvi sentando no sofá em frente ao que eu estava. Um pouco depois, caí no sono profundo.

O bom de ser um anjo era que não havia sonhos para atrapalhar o sono. Na verdade, anjos não dormiam. Diferente dos outros Anjos da Morte, por viver há muito tempo longe do meu mundo, eu dormia. Não tanto quanto um humano, mas dormia.


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Notas finais do capítulo

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