Doce Toque escrita por LeleMarques


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/710490/chapter/1

Esse era o único momento em que eu não gostava do meu trabalho. Retirar a vida de uma criança inocente não era uma coisa que me deixava feliz. Não que retirar qualquer tipo de vida fosse algo agradável, mas com crianças era diferente. Crianças eram seres puros sem nenhum traço de maldade na alma.

Eu nunca questionava quando recebia uma nova missão. Nunca perguntava o porquê daquela morte. Com exceção desses casos específicos. Se tinha que encerrar um vida tão pura, eu precisava saber o motivo.

E ali estava eu, sentada num banco à sombra de uma cerejeira. Havia crianças por toda parte, brincando, correndo, gritando. Pais correndo atrás dos seus filhos que teimavam em não ir para casa, falando em um japonês rápido que me dificultou um pouco entender cada palavra. Apesar de já estar nesse mundo há muito tempo, não conseguia me acostumar com certos costumes e comportamentos em algumas culturas. Nunca iria entender, por exemplo, o que fazia uma pessoa sair de casa usando nada mais que pijamas com estampas de bichos infantis ou o que passava da cabeça das mulheres que pintavam os cabelos de rosa, verde, azul ou qualquer cor que pudesse ser encontrada em uma caixa de lápis de cor.

Pela altura do sol, faltava pouco para o final da manhã. A quantidade de pessoas no local já era grande e eu comecei a agir. Fiquei invisível aos olhos humanos e me encaminhei para o local onde se encontrava uma garotinha com seus quatro anos, que usava um vestido vermelho rodado e tranças no cabelo longo e preto. Ela brincava sozinha com sua boneca, sentada na grama, enquanto sua babá folheava uma revista, sentada num banco a poucos metros.

Silenciosamente parei em frente à garota que conversava com sua boneca. Ela parou de brincar quando me abaixei à sua frente e me olhou nos olhos.

Já ouvi muitos comentários de pessoas que disseram ter visto a Morte poucos segundos antes de morrer e que, por um milagre, voltaram à vida. Completa mentira. Eu não apareço para qualquer um. Na verdade, são raros os casos em que me deixo ser vista por algum humano. E também são raros os casos em que fico visível para retirar a vida de alguém. E, definitivamente, a pessoa que me vir não sobreviverá para contar nenhuma história de milagre. Mas as crianças podiam enxergar muito mais do que os adultos. Viam fantasmas e anjos. As velhas histórias dos amigos imaginários.

Olhei nos olhos daquela garotinha e ela sorriu para mim.

— Oi.

— Olá.

— Você é um anjo. — Aquilo não foi uma pergunta. Ao menos o seu vocabulário reduzido pela idade tornava mais fácil para eu entender o que ela falava.

— Sim — respondi num tom calmo enquanto me abaixava à sua frente.

Minha resposta era quase verdadeira, já que eu não era exatamente quem ela pensava. Eu era um anjo. Da morte. E ela era a minha missão.

— Você é bonita — ela disse estendendo a mão para acariciar meu rosto.

— Você também é linda. — Fiz o mesmo e toquei seu rosto, mas não como um carinho. No momento em que a toquei, seu coração parou de bater e ela caiu suavemente na grama, abraçada com sua boneca.

Diferente do que se viam nos filmes, sua alma não veio para mim. Eu não era a responsável por encaminhar ninguém para “a luz” como muitos chamavam. O destino de cada humano dependia apenas do seu comportamento enquanto vivo. A partir do momento em que eu separava a alma do corpo, sua alma iria para o local certo.

Olhei para o corpo da criança à minha frente, percebendo quando a babá veio correndo ver o que acontecera e gritou para alguém ligar para a emergência. Inútil. De nada adiantaria agora. Aquela morte era definitiva e necessária.

Necessária porque — de acordo com o que me foi informado — após sua morte, seu pai, um cientista renomado, se atiraria no trabalho para tentar esquecer a dor da perda. Mas com isso acabaria por descobrir uma fórmula para um medicamento que salvaria milhares de vidas no futuro.

Apenas nesses casos eu vinha pessoalmente retirar uma vida. Quando uma morte faria alguma mudança significativa na vida da humanidade.

As pessoas começaram a se aproximar para ver o que acontecera e eu resolvi sair logo dali. Estava invisível, mas não era um fantasma. Alguém poderia esbarrar em mim naquela confusão e isso poderia despertar o pânico. Antes de ir, no entanto, olhei mais uma vez para aquele rostinho doce que ainda guardava um pouco do sorriso que ela me dera. Só então, depois de alguns segundos de contemplação, fechei os olhos, respirei fundo e fui para casa.

Quando tornei a abrir os olhos, estava em frente a uma casa de dois andares de tijolos aparentes. Minha casa. Apesar de não ser humana, eu gostava de morar naquele lugar. Era menos cansativo me deslocar estando no mesmo mundo.

A casa ficava em uma rua tranquila e cheia de árvores que mantinham a privacidade dos moradores. O que era muito útil para mim porque assim eu poderia entrar e sair sem ninguém me ver.

Parei em frente à porta e olhei ao redor. Gostava muito daquele local. Ali eu podia ser eu mesma. Era noite e eu ouvia os sons dos animais noturnos, das corujas e cigarras. E pensar que eu acabara de vir de um país que estava no auge da manhã. Ri comigo mesma e entrei pela porta aberta, já que não tinha o costume de trancar. Não precisava fazer isso. Tinha meus próprios meios de proteger a minha casa.

Poucas semanas depois que me mudei para aquela cidade, dois homens tentaram invadir para roubar. Eu não estava em casa, mas assim que cheguei dei de cara com eles e não pude segurar o riso. Eles estavam pendurados de cabeça para baixo com os pés tocando o teto. A camiseta que eles usavam cobria suas cabeças e os braços balançavam moles. Estavam inconscientes. Provavelmente tanto sangue na cabeça deve ter lhes tirado a consciência. Liguei para a polícia depois que desci os dois. Alterei suas mentes, fazendo-os acreditar que tinham tropeçado nos degraus da escada que levava ao segundo andar e caído desmaiados no hall.

Depois disso, resolvi fazer outro tipo de proteção na casa. Algo que os impedisse de entrar ali. Afinal, não podia ficar inventando casos de sorte a todo instante. Poderia parecer suspeito. E também não queria encher minhas janelas de grades e trancas pelas portas. Gostava de me sentir livre. Assim, decidi acrescentar uma magia que impedisse qualquer humano com más intenções de se aproximar da casa. Não sei exatamente o que acontecia a essas pessoas. Quando recebi meu treinamento, aprendi essa magia específica, mas não lembrava o que ela causava nas pessoas. Ou talvez eles não tenham mencionado isso. O fato é que Anjos da Morte não se preocupavam muito com humanos, a não ser com sua morte. O que importava é que a magia funcionou. Nunca mais recebi visitas indesejadas.

Tirei meu casaco e subi os degraus em direção ao meu quarto. Me sentia um pouco cansada e resolvi deitar um pouco. Depois que comecei a passar mais tempo nesse mundo, passei a sentir coisas que não sentia antes. Fome, cansaço, sono, tédio. Tédio. Isso era o que eu mais sentia. Meu trabalho não era tão frequente quanto eu gostaria que fosse e me sobrava muito tempo para não fazer nada.

Mas nem todas as sensações eram tão frequentes em mim quanto num humano. Eu não dormia todos os dias nem comia três vezes por dia. Mas eu me sentia cansada. Meu corpo cansava igualmente, mas não minha mente.

Me deitei na cama para descansar um pouco e fiquei olhando para o teto tentando pensar em algo para fazer enquanto não aparecia uma nova missão. Sem querer, me peguei pensando na garotinha. Seu toque ainda queimava na minha pele, tão doce e puro.

O que era isso que estava sentido, afinal? Piedade? Tristeza? Não sabia dizer o quê exatamente. Estava triste por causa de uma morte que deveria acontecer? Que eu mesma tinha causado? Talvez o fato de matar crianças estivesse realmente me afetando agora. Talvez eu estivesse, depois de tanto tempo, começando a ter sentimentos iguais aos humanos.

— Era só o que me faltava! — resmunguei para mim mesma.

Cansada de pensar naquelas coisas confusas, resolvi ocupar minha mente com algo e fui para a cozinha preparar qualquer coisa para comer. No caminho liguei o som e coloquei o CD com músicas mais agitadas. Cheguei à cozinha e abri a geladeira enquanto acompanhava a letra da música alta. Como não estava com muita fome, me decidi por ovos à la coque. Era o meu prato preferido atualmente. Rápido, gostoso e nutritivo.

Coloquei dois ovos dentro de um recipiente com água, liguei o fogo e marquei o tempo, começando a me mover ao ritmo da música, finalmente esquecida da garotinha. Desliguei o fogo e retirei os ovos da panela.

— Olá, estranha! — falou uma voz atrás de mim. Sabia que se fosse humana, esses ovos provavelmente estariam no chão agora.

Nem me dei ao trabalho de me voltar. Sabia bem quem era. Tinha sentido sua presença antes mesmo dele aparecer na minha cozinha.

— Olá, Jason.

— Nossa! Quanta frieza.

— Ah, desculpe querido. Te confundi com outra pessoa. — Enchi a frase de ironia que não passou despercebida por Jason.

Ele se recostou no balcão e ficou olhando enquanto eu descascava os ovos.

— Não sei como você consegue comer isso. Está quase cru.

Não respondi a sua provocação, preferi ignorar sua opinião sobre meu gosto culinário.

— O que você quer, Jason?

— Eu? Nada! — Ele não mentia tão bem assim e sabia disso. Nós dois sabíamos. — Estava de passagem e resolvi dar um ‘oi’. Senti saudades.

Dessa vez ele tinha pegado tão pesado no sarcasmo que eu desviei a atenção do que fazia e o encarei brevemente.

— Em primeiro lugar, querido, você mora do outro lado do planeta, então não venha me dizer que estava de ‘passagem’. E em segundo lugar, nós nos vimos ontem. Não dá para sentir saudades assim tão rápido.

Terminei de preparar os ovos e me sentei à mesa. Jason fez o mesmo, sentando na cadeira em frente à minha.

— Ok, ok. Eu vim te trazer sua próxima missão.

O encarei com o cenho franzido ao ouvir suas palavras. Por essa eu não esperava.

Jason era igual a mim. Um Anjo da Morte. E, assim como eu, ele também optou por morar nesse mundo, mas vivia aqui há menos tempo, então ainda não sofria os efeitos como eu sentia. Ele não comia, nem dormia. E ele não era o responsável por trazer as minhas missões. Esse era o dever de Daniil, um Anjo Mensageiro. Sempre fora assim, desde que eu viera morar nesse mundo há muitos anos.

— Porque você? O que houve com o Daniil?

— Não sei. — Ver Jason sério me deixou ainda mais preocupada. Jason era o tipo de pessoa que levava a vida como uma grande piada e era sempre repreendido por nossos Superiores devido ao seu desapego às coisas. — Eu fui lá para conversar com Troni e descobri que Daniil havia sumido.

— Quando foi isso?

— Há algumas horas. Foi logo depois que ele te trouxe sua última missão. Parece que desapareceu em algum ponto no caminho de volta.

A missão da garotinha. Apesar de saber que tinha coisas mais sérias acontecendo no momento, não consegui evitar pensar nela mais uma vez.

Um anjo desaparecido. Sabia que precisava fazer alguma coisa para ajudar a encontrá-lo.

Como se lesse meus pensamentos, Jason continuou falando.

— Mas não se preocupe quanto a isso. Já temos uma equipe procurando pistas do que pode ter acontecido. Você tem uma missão. Será daqui a duas horas, então é melhor se apressar.

Saber que ele tinha razão não me fez ficar menos preocupada. Gostava muito de Daniil e sabia que não era comum um anjo desaparecer assim do nada. Na verdade, desde que eu me tornei um Anjo da Morte, houve apenas dois casos de anjos desaparecidos. E eles nunca foram encontrados. Mas eu não podia deixar minhas obrigações para trás.

Suspirando, peguei o papel que Jason me estendia sobre a mesa. Era apenas um simples pedaço de papel em branco, mas que ao nosso toque revelava a próxima missão ou algum recado secreto. A mensagem oculta só era revelada a quem ela era destinada.

Logo a seguir, a imagem do rosto de um homem, o lugar e a hora que eu deveria encontrá-lo, apareceram na minha mente. Como se tivesse passando uma espécie de slide desfocado. O local era em outro país e estava nevando muito. Suspirei novamente e me encostei na cadeira, enquanto amassava o papel depois que minha mente ficou em branco.

— Me avisa se tiver alguma novidade, por favor — pedi e Jason assentiu, se levantando em seguida. Eu fiz o mesmo e coloquei o recipiente na lava-louças antes de ir em direção às escadas.

— Aonde você vai? — ele perguntou encostado no corrimão da escada, me olhando desconfiado.

Eu bufei e me voltei para encará-lo.

— Vou me trocar. Está nevando lá — respondi impaciente cruzando os braços na altura dos seios. — Não precisa ficar me vigiando, Jason. Não vou procurá-lo. Sei das minhas obrigações.

— E por que vai tão cedo?

— Vou falar com Cezar. Ele precisa saber o que aconteceu com Daniil.

Uma expressão de compreensão cruzou seu rosto e ele torceu os lábios, parecendo se sentir tolo por não ter pensado naquilo antes.

— Tudo bem. Você tem razão. — Ele se desencostou e sorriu para mim. — Desculpe pela desconfiança.

Apenas continuei encarando-o sem dizer nada. Ele deu de ombros e sumiu no ar sem mais palavras.

Já no meu quarto, tomei um banho rápido, tentando não pensar demais no desaparecimento de Daniil. Ainda de tolha, fui até a mesinha de cabeceira ao lado da cama e peguei meu celular. Disquei o número enquanto me encaminhava para o closet para escolher uma roupa que me deixasse agasalhada no frio que viria a seguir. Uma mulher atendeu depois de três toques.

— Restaurante Aquarius, boa noite.

— Boa noite. Gostaria de falar com Cezar, por favor.

— No momento o Sr. Cezar está na cozinha e não poderá atender. Gostaria de deixar algum recado?

— Avise a ele que é Alyssa ao telefone. Eu aguardo.

— Senhorita, ele pediu para que eu anotasse os recados, pois está muito ocupado esta noite. Deixe seu telefone e direi que ligou.

Por não ter reconhecido meu nome, ela só poderia ser novata. Mas ainda assim perdi um pouco a paciência. Respirei fundo, porque ser paciente não era meu maior dom.

— Como é seu nome? — perguntei respirando fundo.

— Mariza.

— Você é novata aí, acertei?

— Sim, senhorita. Comecei aqui há duas semanas.

Ah, claro. Fazia mais de um mês que eu não aparecia ali, então resolvi esclarecer logo a situação.

— Certo, Mariza. Vou explicar uma coisa: sempre que eu ligar, você deve chamar seu chefe, independente do que ele esteja fazendo. E, acredite, ele não vai gostar nem um pouco se descobrir que liguei e você não o avisou. Então faça o favor de ir até a cozinha e avisá-lo que estou ao telefone.

— Só um momento, por favor. — Percebi que sua voz estava trêmula e me senti um pouco mal por deixar a garota naquele estado de nervos.

Menos de dois minutos depois eu ouvi a voz de Cezar se aproximando do telefone. Ele falava rápido e nervoso.

— Não se preocupe, Mariza. Eu esqueci de lhe avisar sobre isso, mas agora você já sabe. Se ela ligar de novo, posso estar com o Papa aqui , mas você me chama, ok?

— Sim, senhor.

— Alô, Alyssa? — ele falou já ao telefone.

— Oi, Cezar.

— Desculpe por isso. É que ela–

— Não se preocupe — me apressei a falar, interrompendo-o. Peguei um casaco branco de lã e o joguei em cima da cama junto com uma calça jeans escura e uma blusa de malha branca. — Preciso falar com você.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou ele alarmado.

— Sim, mas não posso falar por telefone — falei enquanto voltava para o closet para escolher os sapatos.

— Você vem aqui agora? Podemos jantar juntos.

— Eu acabei de comer — falei como se pedisse desculpas, já me arrependendo de ter comido.

— Ah, por favor. Eu preparo algo leve para você — ele falou com tom de súplica.

— Bem, pedindo assim. — Ri enquanto pegava as botas e voltava para o quarto. — Tudo bem. Eu vou. Você sabe que não resisto à sua comida.

Nos despedimos rapidamente e fui me vestir. O restaurante não ficava no mesmo local onde seria minha próxima missão, então eu não precisaria vestir o casaco agora. Deixei-o em cima da cama, peguei minha bolsa colocando o celular e a carteira dentro e saí da casa.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Vou postar os primeiros capítulos do meu livro aqui. Quem quiser ler ele completinho, é só ir lá no Amazon Brasil ;)
http://www.amazon.com.br/dp/B01LYL7ROE



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Doce Toque" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.