Profundezas escrita por Nathalia Schmitt


Capítulo 8
G-179




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Redes, bolhas, risadas e gritos agudos de globies ecoavam por todas as partes. Ela debatia-se e sentia sua pele sendo rasgada. Seus olhos enchiam-se com seu próprio sangue, suas guelras afogavam-se em seu torpor e, então, nada.

— Sabe, Ihoy, a colônia não está tão protegida quanto dizem nas reuniões. — Ihoy entendera a quem ela referia-se. — Na verdade, ela está até um pouco abandonada. — Sua voz soava doce, delicada, enquanto media as palavras dirigidas ao líder. — Quando voltei de Aurien, não havia nem um guarda ou vigilante. — comentara Rire, falando rápido depois de finalmente conseguir um tempo do tritão. Ihoy permanecia calado, escutando suas declarações com atenção. Seu olhar estava distante, completamente imerso nos próprios pensamentos.

A jovem suspirara, aproximando-se timidamente, parando à frente de Ihoy. Tocara em seu braço levemente com um semblante preocupado, esperando algumas palavras de conforto. Mas ele não podia dar algo que não possuía.

— Se você sabe de algo, Rire, precisa me dizer. — dissera apenas, sério. Sua voz saíra rouca e cansada, bem diferente da imagem forte e inabalável que ele mantinha em público. A jovem engolira em seco. Sua mente vagara pelas lembranças que tinha e seu coração saltitou entre receios e suposições próprias que escondia a todo custo.

— Não acho que eu saiba de qualquer coisa ainda, Ihoy. — mentira, encarando seus olhos. — Realmente queria ter algo, mas não acho que tenha.

— Me fale o que sabe e lhe digo se tem ou não. — Ihoy era difícil de enganar e, por mais que ele compreendesse que Rire era de confiança, sua atitude superprotetora era instintiva para com ela.

— Sinto muito. — a jovem afastara-se, baixando seu delicado rosto arredondado. Ihoy relaxara os ombros e respirara fundo em resposta.

O tritão despedira-se, por fim, tomando seu rumo de volta à grande toca, na direção oposta ao CT.

A jovem olhara ao redor, para tudo que havia ali, refletindo o grande vazio que a colônia se tornara. Triste, porém inconformada, achara conveniente passar pelo CT conforme Kia a orientara noite passada, pelo corredor dos fundos.

Hapori estava estranhamente solitária, sem movimento algum e o silêncio era aterrador. Não havia mais crianças brincando ou grupos socializando, treinando e familiares se visitando, apenas ruínas e o pesado fantasma de um ataque.

O Centro de Treinamento, sempre acolhedor, organizado e imponente, agora não passava de um grande prédio abandonado. Poucos tritões ainda treinavam, pois a maioria dos restantes fora deslocada com os globies feridos de volta para Aurien. Apenas meia dúzia de guardas ou guerreiros transitavam por lá e o escritório de Ihoy estava indefeso.

Os corredores tão estimados pelos frequentadores, abandonados e formando musgos estavam gélidos. As salas que possuíam portas estavam estranhamente trancadas. A solidão era quase palpável. Rire esgueirou-se até a sala de Ihoy, entrando sorrateira, o coração pulsava em sua garganta.

Os dois baús, acoplados embaixo da mesa de rocha do líder, permaneciam fechados, juntamente à rocha entalhada que guardava segredos da colônia. A respiração de Rire estava alterada de ansiedade e seu peito doía levemente, causando um leve incômodo, lembrando-a por tempo integral das consequências que sofreria por invasão ao CT e furto de informação secreta.

Quando criança, Rire brincara com a caixinha de comidas de Auho, quando ela não deixava-a aberta, até descobrir como arrombar a pequena trava. Desde então, treinava por pura curiosidade como destravar trancas. E ali estava sua chance de colocar o conhecimento adquirido em prática.

O primeiro baú fora escolhido e, com dois gravetos finos, rapidamente violado. As guelras de Rire estavam tensas, levemente comprimidas. Click. A tampa do baú destravara, no entanto, ali estavam depostos apenas documentos de ordem, comunicados e alguns presentes que Ihoy recebera de seus admiradores. Rire sentira um incômodo fisgando seu estômago e fechara o baú brutalmente.

Seus pequenos dedos ágeis demoraram menos tempo na fechadura delicada da rocha ao canto da sala. Logo, vários documentos foram descobertos, somente esperando que sua curiosidade os abrisse.

Dispostos em ordem alfabética, milimetricamente organizados, pareceria facilmente a olhos desatentos apenas um aglomerado de algas, mas para Rire fora fácil encontrar o arquivo da letra G. Apressada e levemente trêmula, abrira a pasta de alga grossa, encontrando documentos devidamente marcados com a numeração 179.

Sua respiração falhara ao descobrir a quem pertencia tal codinome e sua face, tomada de surpresa, fora coberta de repente por um semblante sombrio. Nada poderia prepará-la para aquela informação.

Guardara a folha em seu cinto, a pasta fora devolvida a seu lugar e a portinha de ossos fechada com cuidado. Saíra da saleta, nervosa e sem saber o que fazer.

 

Gritos e choros desesperados de crianças percorriam seus ouvidos, enchendo sua alma de medo e pavor. A névoa de sangue cobria o lugar de chão rústico onde seu inerte corpo jazia. Tentara se levantar, mas ao tensionar os músculos, seu corpo queimara em dor. As feridas lhe ardiam de tal forma que não sabia onde começavam e onde terminavam.

Quando dera-se conta, estava percorrendo o caminho para a toca de Ihoy. Fitara sua bolsinha, como se dali pudesse sair alguma resposta sobre qual atitude ela poderia tomar. Se ela falasse, porém, com certeza não diria nada sobre buscar ajuda e sim, sobre Rire ter mais coragem. A toca de Ihoy, alta e não tão longe, era intimidadora, como tudo o que lhe envolvia. Mordera os lábios e apertara os olhos como uma criança quando está prestes a fazer algo de errado e foi até lá.

À entrada da toca de Ihoy, parara. Se entrasse, poderia ser inconveniente, mas se não conversasse com ele, poderia não ter outra oportunidade tão cedo. Respirara fundo, encorajando-se, e o chamou, esperando-o do lado de fora. Ao vê-la, entretanto, a expressão de Ihoy fora de alívio.

— Tem uma coisa me incomodando e não vou conseguir dormir sem saber disso. — adiantara-se a jovem. Ihoy franzira o cenho e dera-lhe sinal para continuar. — Marama já matou alguém? Já deu alguma ordem? — o tritão ficara tenso e Rire apertou os lábios, percebendo sua atitude inconsequente.

— Marama já matou antes, alguns pequenos cerkans invasores, você sabe como gostam de tomar tocas de outras sereias e tritões. Aqueles bichinhos feios não são muito pacíficos. — respirou fundo antes de continuar. — Sobre as ordens… — seu maxilar enrijecera. — nunca me desafiou. Qualquer ordem imposta por ele era intervenção direta minha. Por quê? — Rire riu. Mais de nervoso do que pela curiosidade nada comum do mais velho.

— Deixe eu organizar meus pensamentos antes. Por acaso, quem foi que teve a ideia de juntar as crianças com cuidadoras em um só lugar? Sei que faz tempo, mas… — Ihoy a interrompera, aproximando-se da nereide.

— Essa organização tem mais de meio século. A ideia foi justamente das cuidadoras. — ele notara os grandes olhos negros de Rire brilharem de satisfação, como quem consegue capturar um peixe pela primeira vez. Ela sorrira.

Longos dedos finos apertavam seus pulsos para trás de seu corpo, enquanto outro par de mãos a vendava. Seus gritos ecoavam e misturavam-se aos choros dos filhotes, bem como seu próprio sangue. Sua cauda, forte e ferida, acertara o corpo ossudo e magrelo de alguém. Os ferimentos que haviam coagulado voltavam a sangrar com força e outros eram feitos ali. Sentia seu couro arder ao puxarem seus cabelos para, então, rasgarem seu pescoço com unhas afiadas.

Todos que ainda permaneciam na colônia estavam reunidos no Salão Central. Kia sentara-se ao lado de Rire, curiosa e inquieta pelos toques de urgência do clambor e Whakaaro aconchegara-se com toda seu resplendor e classe admiráveis na extremidade próxima à porta com seu véu feito de águas-vivas; uma das poucas nereides que usavam algo do tipo, já que tecidos só eram permitidos à elite. Porém, a tensão pela reunião de última hora arrepiava a todos que temiam o que poderia sair dali.

Ihoy levantara-se e o silêncio pairou pelo Salão de forma brusca. Exceto por um dos guerreiros.

— Estamos definindo guerra contra os globies. — o burburinho tomara conta do local, exaltando-se aos poucos. Ihoy pigarreou. — Mas mais do que isso, estamos em guerra aqui. Grupos menores e de confiança serão formados com a ajuda de Rire — a jovem arregalara os olhos e suas escamas arrepiaram-se, seu coração pulsava intenso e desregulado e ela tossira. Kia a olhara como se ela fosse uma criminosa, julgando que tinha algo a ver com o roubo de arquivo. —, e investigaremos tudo de perto. Cuidadoras, vocês ficarão responsáveis, junto dos Coletores, por guardar e separar um estoque maior de comida. Guerreiros virão comigo. Rire tomará conta da colônia enquanto Kahan não volta e talvez, por mais um tempo. — Rire encolhera-se com a pressão dos olhares curiosos sobre ela. — Já entrei em contato com duas de nossas sedes e estão mandando reforços. Removam todos que puderem para o subterrâneo. Agora.

O tumulto apressado enchera o Salão de conversas curiosas e pretensiosas sobre a decisão de Ihoy. Rire estava chocada e permanecera sentada, extasiada.

— Ihoy. — chamara, quando todos se foram. Sua voz, fraca e trêmula lhe soou quase irreconhecível.

— Sim? — a jovem vira de esguelha o tritão aproximando-se dela, mas mantinha seu olhar fixo na pedra vazia à sua frente.

— Eu não posso… é muita coisa… não sei se… — ela gaguejava. Ihoy sentara-se ao seu lado.

— No momento — ele olhara para o outro lado, medindo as palavras. —, você é a única em quem confio. Não sei o que você sabe, então só você poderá tomar decisões cabíveis à realidade. Eu… — ele hesitou. — preciso de você… da sua ajuda. — corrigiu.

A jovem esfregara o rosto e encolhera as mãos, tapando a boca, como fazia quando pequena toda vez que tinha medo. Encolher-se era um hábito. Ihoy fitara-a.

Rire assentiu, sem dizer nada.

— Me diga o que fazer e eu farei.

Estava presa, fraca, ferida e com fome. O sangue de sua cabeça manchava seus cabelos brancos e o corte próximo a seu olho havia inchado. A corda, fina e bem presa, cortava-lhe os pulsos. Atirada no que pensava ser um canto imundo, encostada em uma parede, ouvia gritos de vida e de morte, alguns que compreendia e outros que não sabia identificar. Sua fraqueza diminuía a dor externa, mas não a dor do pavor, que a consumia.

Rire parara para admirar a toca que dividia com Auho desde que tudo começara. Não saberia dizer quanto tempo mais viveria ali; sua amiga fazia questão de sua presença e até parecia mais feliz por tê-la por perto, mas sentia aquele lugar mais solitário e um tanto gélido. A temperatura, naturalmente, já era fria, mas algo ali estava lhe passando uma impressão de terror. Aproximara-se da entrada, encostando-se suavemente sob a rocha que a permeava. Seu corpo dolorido lhe implorava algumas horas de descanso, porém tempo não era algo negociável, que poderia ser cedido a seu bel prazer. A guerra despontava e, juntamente a ela, consequências de algo que Rire ainda não compreendia.

Observara sua arma e seus detalhes, solitária do outro lado daquele grande buraco cavernoso. Estava na hora de fazer mais pela colônia e menos por si. Ela havia crescido e estava cansada de birras egocêntricas, impaciente com seu próprio hábito de fuga e insegurança. A realidade batia à porta e não iria embora sem levar todos ali, de uma forma ou de outra.

Seu peito doía e parecia faltar-lhe o ar. Sequelas da tortura, medo e fome. Fome. Daria tudo para comer um pequeno siri que fosse. Os gritos não paravam, tampouco tornavam-se menos terríveis; muito pelo contrário, aquilo alimentava sua dor, como se os gritos que ouvia fizessem parte de si. O desespero para voltar para casa era intrínseco à ânsia de morrer ali mesmo. Tudo o que tinha era seus ferimentos, seu sangue e o vazio.

A jovem soltara os cabelos brancos que boiavam suavemente ao redor do seu rosto delicado, composto por seus grandes olhos negros como a imensidão do ambiente em que vivia. Com determinação, agarrara a arma e prendera os cabelos novamente, em resposta à inquietude que pairava sobre sua mente. Nadara até seu ninho, onde buscara ao redor algo para se munir. Optara por um pouco de comida em seu fiel cinto de utilidades, um potinho de veneno que roubara ainda criança e era uma das coisas que restara dos escombros que sua toca original tornara-se. Pegara algumas ervas de Auho — sabia que ela não se importaria — para ter o que comer.

Acima de tudo, estava pronta.

Saíra dali, apressada. “Tempo é vida”, pensara, enquanto aproximava-se das grandes paredes do Centro de Treinamento rústico e abandonado.

Eles não sabiam, mas ela ainda possuía consigo uma pequena adaga escondida em um bolso secreto de sua ombreira, em último caso. Com dificuldade, levara as mãos atadas até seu cabo, dando-se conta de que os braços também estavam cortados. Pensara em usar a adaga para fugir ou salvar-se, caso houvesse oportunidade, escondendo-a embaixo do corpo, mas sabia que as chances eram quase inexistentes. Agora, entretanto, aquela arma poderia ter mais utilidade mantendo sua dignidade intacta. Não morreria de forma ingrata. Não pelas mãos dos inimigos.

 

 


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